segunda-feira, 26 de abril de 2010


DE PROFUNDIS


Quando de novo a velha Terra for

bola de fogo, de gelo ou areia;

quando escarlate for de novo a cor

de nossa esfera, ou outra morta e feia

coloração cobrir o seu cadáver,

louco esqueleto em macabra dança,

nau à deriva, seca, morta, instável

– mero pião nas mãos de Caos Criança –

por muito tempo um silêncio profundo

respeitará a morte deste mundo.

Mas certamente os raios e trovões

despertarão gasosas explosões,

como a lembrar que n’algum canto existe

muita saudade em um poema triste.



Antônio Adriano de Medeiros

sexta-feira, 23 de abril de 2010


UMA FLOR TÃO RARA


 
                [À memória de Ezemita Fernandes]

Certa vez que estava num jardim
encontrei uma flor inesperada
que causou grande alvoroço em mim.
Uma flor tão bonita...  – Minha amada!

Por maldade de algum deus ruim
do jardim da infância foi roubada
e para sempre há de ficar assim,
uma rosa inda em botão eternizada.


Comentários ouvi da triste sorte
de um lar que perdeu a flor mais bela.
Não lembrava, porém, que fosse... Ela!

– Ó rara flor do jardim de Dona Morte
cedo arrastada para a eternidade:
me fiz poeta pra cantar essa saudade!

             Antônio Adriano de Medeiros


[Tinha cerca de nove ou dez anos quando um surto de meningite arrastou algumas crianças para o Jardim de Dona Morte, e dois amigos meus foram, Antônio Lisboa de Medeiros, ainda meu primo, e a bela Ezemita Fernandes, de louros cabelos e bochechas rosadas. Lembrava apenas vagamente que ela tinha morrido, mas talvez como defesa não a ligava à figura da Musa daquela época, paquerada na igreja e na escola, tão desejada, tão educada e com quem trocava algumas palavras e me sentia muito bem Há algum tempo, porém fui ao cemitério de minha cidade e, após visitar jazigos familiares, dei de vagar entre os túmulos tão cheios de flores e fotos. Grande foi minha emoção ao chegar no túmulo da família de Dona Carmita, minha professora da oitava série ainda hoje tão saudável, e encontrar ali a foto daquela menininha loura de bochechinhas rosadas que tanto amei na infância, e lembrei então que na época padecera grande dor...]

sábado, 17 de abril de 2010

                               Tríptico Carioca



"Posso resistir a tudo, menos às Tentações", como dizia Oscar Wilde.

1. CIDADE MARAVILHOSA

Sobrevoava uma tarde o litoral do Brasil
quando algo, lá embaixo, a visão me atraiu.
Era uma bela cidade, eu vi ao chegar mais perto,
protegida pelo Cristo, entre montanhas e o mar aberto.

Toda alma tem um fraco pelas coisas belas,
e ao ver suas montanhas tão perto da praia,
belas jovens sorridentes... - Ó, tomara que caia! -
Eram tantas maravilhas que quis morar entre elas.

Mas não durou muito tempo a imagem de paraíso:
as montanhas têm espinhos, o mar é frio e voraz,
as mulheres são bonitas mas é de outro o seu sorriso.

E examinando o Cristo, eu vi, mesmo a olho nu,
que ele está petrificado, é um fantoche e nada mais,
pois quem domina a cidade, na verdade, é Belzebu.


2. VERÃO NO RIO

É em dezembro, janeiro e fevereiro,
quando mais ardem as suas artérias,
que a cidade do Rio de Janeiro
abre as pernas a todos os turistas, em férias.

A velha capital, cansada da árida e amarga luta
de nove meses em que finge ser uma jovem executiva,
pode então descansar. E, já sem máscara, exibe, altiva,
sua verdadeira face, seu corpo de eterna prostituta.

Nenhuma outra consegue igualar-se, em beleza,
àquela cortesã que de tão meiga e sedutora
foi capital de um império e enlouqueceu a realeza,

nesses dias em que mais brilha o sol dourado.
- Ah, como foi gostoso aquele dia, em que uma loura
me fez ver, Rio, que teu ócio é o cio acentuado.


3. RIO, EU NÃO TE AMO TANTO ASSIM
E os pobres? E esses marginais, e esses bandidos?
Que destino reservas aos homens vulgares?
O de desaparecer sempre atrás de estampidos?
Ou de morrer de fome? Ou cair de teus patamares?

Se respondes, linda mulher, eu me calo.
A tua voz impõe tua presença,
e eu não resisto a ti, e entalo.
- Se me consomes aos poucos, acho gostosa a doença.

É a Beleza - Tinha que ser a maldita! -
que me faz perdoar-te a cada hora
e te amar ainda demais...

Mas teu orgulho é tanto, feiticeira bonita,
que de repente eu posso ir-me embora
e não voltar nunca mais!

Antônio Adriano de Medeiros

[Foi entre janeiro de 1986 e março de 1989 que escrevi esses sonetos, procurando também cantar, ao meu modo de nordestino estudante e jovem, a mais cantada das cidades do Brasil. Porque além de bonita e gostosa e cosmopolita, ela é apaixonante.]

segunda-feira, 12 de abril de 2010

LE BEAU DE L'AIR



[Para Charles Baudelaire]


Como um albatroz que reina pelos ares

mas que por sobre a terra anda desajeitado,

o Poeta que em vida foi um degenerado

depois de morto é deus em secretos altares.



Cantou lésbicas, carniça e mártires degoladas;

dançou com esqueletos em orgíaca embriaguez;

e provou dos paraísos que as almas limitadas

ainda hoje abominam em sua pequenez.



No jardim da estética colheu flores do mal

e, adubando seu cérebro com Sífilis e veneno,

criou uma poesia tão bela e original



que ofuscou os olhos de algum cego obsceno.

- E o pássaro condenado um dia à execração

hoje voa imortal, e se ri da ingratidão.



Antônio Adriano de Medeiros.




O Título do poema poderia ser traduzido como “O belo do ar”, e Baudelaire tem um poema em que compara o poeta a um pássaro que voa muito bem, mas que não consegue andar direito, tem que dar saltos, extaamente pelo tamanho de suas asas: “as asas de gigante impedem-no de andar”. Como traduziu Ivan Junqueira. Charles Baudelaire escreveu, entre outras coisas, Flores do Mal e Os Paraísos Artificiais (O Ópio, o Vinho e o Haxixe); há no soneto menção a alguns poemas de Fleurs du Mal, como O Albatroz, Lesbos, Mulheres Malditas, Uma Mártir, Dança Macabra, e Ao Leitor. Seis (número sugestivo, a Imperfeição) poemas de Fleurs du Mal foram considerados "atentatórios à moral e aos bons costumes) por um Tribunal Correcional francês, e condenados, obrigados a serem retirados da 1ª edição(1857, salvo engano) e somente no presente século é que foram "reabilitados". Acredito (dou tal tese de graça a você, leitor acadêmico: desenvolva-a!) que o verdadeiro motivo da condenação dos poemas das Flores do Mal foi o fato de o Poeta, em seu primeiro livro (imediatamente anterior às Flores), Os Paraísos Artificiais, ter ironizado sarcasticamente logo na Introdução, com o juiz que escrevera recentemente sobre o vinho. Na época do processo, ele pagou alta multa por ter escrito os seis poemas. Também há menção ao fato de Baudelaire, entre outros safados, ter sido um dos participantes do Clube dos Haxixins, na Paris de meados do século XIX. Morreu após sofrer uma hemorragia cerebral, conseqüência da Sífilis que adquirira na juventude; seu amor pela morena Jeanne Duval, dama da noite, pansexual, amiga de Baco, desesperou a família a ponto de lhe obrigar a uma volta ao mundo; não adiantou: desceu no primeiro porto da África, escreveu "A une dame créole" dizem pra mulher de quem o hospedou, e voltou a Paris amar Jeanne até a troca de treponemas e parir as Flores do Mal; ficou uns meses prostrado no leito antes de morrer, afásico.

domingo, 11 de abril de 2010

DELIRIUM TREMENS


[A Edgar Allan Poe]


Para o bom conhecedor das artes da natura
que sabe das monstruosidades que a vida nutre,
não é difícil imaginar que a humana criatura
possa também ter o seu lado de abutre.
Pois minha imaginação, treinada desde tenra idade,
diverte-se constantemente com fantasias banais
onde ora vê os homens com traços de animais,
e ora atribui às feras características da humanidade.
Mas como é assustador perder o controle voluntário
sobre minha imaginação e seu apetite zôo-funerário”
– Noites há em que me toma uma sensação esquisita
e em meu quarto vejo chegar estranhíssima visita
que me amedronta declamando suas pragas ancestrais:
é o negro e maldito Corvo, a repetir: "Nunca mais!"

Antônio Adriano de Medeiros

segunda-feira, 5 de abril de 2010


 A METÁFORA DO GÓLGOTA



Talvez existisse ainda uma metáfora
nas cruzes de Roma no Monte da Caveira.
Talvez houvesse nas pendidas escápulas
um retrato da humanidade inteira.
Um terço de justos e dois terços de ladrões
talvez seja realmente a porcentagem
que retrata, nas mais devidas proporções,
os seres que trajam de homens a roupagem.
Um terço de ingênuos vive e morre em vão:
são os melhores homens, que têm um ideal.
Dos dois terços restantes, chamam de “mau ladrão”
àquele criminoso, o que perpetra o Mal.
O que sobra, afinal, é homem de valor,
pois todo bom ladrão é um empreendedor.

Antonio Adriano de Medeiros