sábado, 26 de junho de 2010

DESAFIO À PARAÍBA




Um desafio de repente
no sertão da Paraíba,
tem que ter coice e facada,
tem que ter a boa briga,
a foiçada, o tiroteio
e a riscada na barriga.

É no norte a Paraíba,
do Rio Grande abaixo,
e é lá que no meu Brasil
nasce o melhor cabra macho:
resolve as coisas no grito,
dá porrada e golpe baixo.

Não visite a Paraíba
sem deixar de conhecer
a melhor das atrações
que ela pode oferecer:
um cantador de viola
botar outro pra correr!

Antônio Adriano de Medeiros

quinta-feira, 24 de junho de 2010

AS QUEIXAS DE LÚCIFER








"O Satan, prends pitié de ma longue misère!"


Quando os meus sócios, sorridentes,
saem da missa no domingo
e vão felizes para casa, bem contentes,
fico tão triste que, confesso, choramingo...

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Pois que de todos os que vagam eternamente
no cárcere do Inferno derradeiro,
Satanás perseguido é o primeiro,
vítima da fúria de Deus Pai Onipotente.

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Mas não fora minha pena por demais exagerada?
Não que da justiça divina pretenda tirar o mérito,
mas a justiça hoje em dia anda tão mudada...
Seria mesmo impossível reabrir o meu inquérito?

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Se me permite uma réplica o Maior Legislador,
digo que o Seu Veredicto hoje é insatisfatório:
pois as penas radicais já perderam o seu valor
e a imprensa pode pensar que fui um bode expiatório...

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Os gestos autoritários andam tão fora de moda...
E diante da oferta que há de tantos salvadores,
um deus assim radical tem até seus seguidores,
mas no Mercado da Fé essa má fama incomoda...

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

A Tua Igreja está perdendo fiéis
para seitas mais modernas e menores,
algumas até cujos profetas, uns dez,
vêm sempre em busca de meus favores.

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Não que goste de ajudar a esses lunáticos,
mas tu bem sabes que aprecio a diversão
e adoro ver o tolo bando de fanáticos:
já condenados prometendo a Salvação!

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

E considerando que aqueles pobres rebanhos
que a falsos profetas seguem, inocentes do Mal,
virão todos receber meus quentes banhos,
já temo, preocupado, a lotação infernal!

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Pois como se não bastasse a minha sina
de o príncipe do eterno exílio para sempre ser,
tal sobrecarga de trabalho as minhas forças mina...
Ai, com tanto sofrimento eu posso até morrer!

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

E minha morte para ti seria o caos,
pois, desaparecendo da doutrina a ameaça,
não seria mais possível amedrontar os maus,
e o Teu Império todo cairia em desgraça!

- Deixa-me voltar, ó bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

É claro, Bom Criador, que não tenho a pretensão
de para sempre ir viver no Reino do Paraíso:
o que te peço são férias, breve interrupção
do trabalho incessante que há tempos realizo.

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

E assim quero, para melhor cuidar dos ateus,
e para que possamos superar tamanhos sustos,
que me permitas de novo ser recebido entre os Teus...
Quanto a despesas de viagem, cobrirei todos os custos.

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!


Antônio Adriano de Medeiros
1988

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O POETA SIMPLES





Naquela noite de lua
depois que acabou a feira
Chico ficou pela rua;
nos quartos, sua peixeira.

- Chico é um poeta simples
e, ás vezes, faz besteira.

Chegou no bar de Luzia
tomou uma talagada,
e com quem aparecia
Chico dizia piada.

- Chico é um poeta simples,
da poesia improvisada.

Chamou Seu Luiz de corno,
Zé Magrelo de ladrão,
e gritou: - "Hoje eu entorno
um litro de alcatrão!"

- Chico é um poeta simples,
mas toca bem violão.

Logo surge uma viola,
ele dá de improvisar,
fumando qualquer piola
que alguém quisesse lhe dar.

-Chico é um poeta simples,
nem bem sabe o bê-a-bá!

Começou o improviso
já xingando o delegado,
provocadno muito riso
ao chamá-lo de "viado".

- Chico é um poeta simples,
pobre e meio adoidaiado.

Logo no bar da amiga
encostou um camburão;
os versos deram em intriga
e foi grande a confusão.

- Chico é um poeta simples,
mas não quis ir pra prisão.

Tacaram bala em Chico
pois que el tava armado...
e quando caiu o mico
inda o levaram algemado.

- Chico é um poeta simples
e assim deve ser tratado...

As mocinhas da cidade
quiseram fazer poesia,
mas tal sensibilidade
não passou de histeria.

Chico é um poeta simples:
se enterrou como devia.

Antônio Adriano de Medeiros

sábado, 19 de junho de 2010

MISTÉRIOS DE ELÊUSIS


Inicialmente o ritual dos Mistérios de Elêusis encontrava expressão na lenda da deusa Deméter e sua filha Perséfone, raptada por Hades (Plutão), rei do Mundo Inferior, quando colhia flores com suas amigas, as Oceânidas, no vale de Nisa. Depois incluíram Dioniso, com o nome de Iaco. Deméter, ao tomar conhecimento do rapto, ficou tão amargurada que deixou de cuidar das plantações dos homens aos quais havia ensinado a agricultura. Os homens morriam de fome, até que Zeus (Júpiter), que havia permitido a seu irmão Hades raptar Perséfone, resolveu encontrar uma forma de reparar o mal cometido' Decidiu, então, que Perséfone deveria voltar à Terra durante seis meses para visitar sua mãe e Outros seis meses passaria com Hades.
Procuramos, nos títulos de alguns poemas, dar uma espécie de duplo sentido: Deméter dolorosa, Da Mater Dolorosa; Romã por amor inverso, o amor de Hades, deus raivoso; em Bela Que Se Disputa queremos fazer menção ao fato de que Perséfone ficou mal falada por ter sido vista por Ascálafo, seu guardião nos Infernos, com um bago de romã na boca que lhe fora ofertado por Hades; e esta foi a razão pela qual não mais poderia deixar os Infernos: quem comesse algo de lá, jamais poderia sair. Ascálafo foi transformado em coruja por Deméter por ser falador... Ah, tentamos escrever em dodecassílabos.

Bom, eis então nossa versão para os




MISTÉRIOS DE ELÊUSIS







"amor inverso em versos do Odioso..."





I




O RAPTO DE PERSÉFONE


Mistério e rosa era Perséfone, delícia
aos olhos sequiosos do duplitio, deus
que reinava solitário nas profundezas
da Terra entediado com as riquezas, muitas
que possuía: todos os minérios e plantas
e o sempre crescente rebanho dos mortos.
Com justeza alcunhado o Rico – Plutão – era
a um só tempo muito pobre, porque lhe faltava
a carne viva, o perfume ambrosíaco da filha
de Deméter, gema e flor. Eis que certa manhã
a bela saíra a brincar com as suas amigas
Ninfas e com Atena e Diana artes mil
perpetrando: brincavam com flores e plantas.
O Raptor arrebatou-a – Tão perfumada flor! –
quando a jovem ensaiava pegar um narciso:
arrastou-a célere ao abismo da trevas. Ai
de Perséfone: Hades, jardineiro invisível,
colheu a rosa e decifrou-lhe seu mistério.


II



DEMÉTER DOLOROSA



A errar pelo mundo, imunda e insone, anorexa
e hidrófoba qual cadela malsã, ninguém
reconheceria ali Deméter, a Nutriz
símile a Terra, pois agora desértica à busca
da filha em flor. Ai, que da filha ouvira o grito
à hora súplice! Por uma novena dolorosa
ninguém revelara do pérfido Raptor o nome
para que as Queres lhe bebessem o sangue
e das malignas progênie e prole. Todavia,
pelo décimo dia de tântalo a hidrófoba
encontrou uma cadela de verdade, a deusa
Hécate – de quem vêm todas as feiticeiras –
mas ainda assim velado permaneceu o nome
do Raptor, mais odioso entre numes imortais,
que a Bruxa acorrera ao escutar da jovem o clamor
aflito mas não desvendara do Invisível
a odiosa face, ora encoberta por artes vis
da Velha Noite, a quem é dileto o deus trevoso.
Onipresente Sol, olho que a tudo pode ver,
enternecido com a dor da Mãe, revelou
o nome daquele odioso deus a quem o Pai
permitira o rapto da ninfa em vão buscada.
Prostrou-se a Mãe em Elêusis, tomada de dor
profunda, apática, atônita, cataléptica.
E toda a Terra se tornou pedra sem alegria.



III



ROMÃ


E enquanto penava Deméter em desvario,
envilecida e envelhecida à superfície
da Terra, nas entranhas a perseguida Perséfone
exultava, de medo a princípio, mas depois
de gozo ao provar do fruto do amor de Hades
– romã – amor inverso na palavra, ora oculto
por artimanhas do deus maldito (com escusas
a Homero, verdadeiro pai de tantos deuses
de bruma, todos eles desvelados na Língua
das Musas). Que sábia mulher recusaria ser
a exclusiva de um numinoso, ainda que fosse
aquele mais execrável dentre todos os deuses?
Que princesa não iria saber por natureza
que seu destino deve ser: ou se tornar
a rainha no reino de seus pais ou de outrem,
ou ficar para sempre mero objeto decorativo
no reino pátrio, entre as aias, os eunucos
e as velhas da corte, seu espólio repartido
entre sobrinhos e ou filhos de parentes invejosos?
Ela gritou por um reflexo de medo, mas alguém
poderia assegurar que já no instante seguinte
não tenha calado com um beijo do Maldito?
Se o recusou, e por quanto tempo o fez, isso não
queremos discutir porque não é interessante:
queremos saber da boca molhada que gostava
de romã, e dos gemidos, roucos, tantos, loucos,
que alguém ouviu uma vez só, quando foram
mais altos. Ai, que nunca mais Perséfone iria
poder deixar os Infernos, tendo feito aquilo...



IV




EXILIO


Ai, que triste é ser sabedor de um saber
que sabe a dor: assim padecia Deméter,
agora infértil velha sem viço a servir
de simples criada em casa do rei eleusino.
Quem imaginaria fosse aquela velha magra
a outrora fogosa égua em quem Posêidon
gostava de montar brincando de cavalo?
Quem reconheceria ali a exilada deusa
que antes frutificava a Terra e matava a fome
dos homens? Zeus porta-raios, aquele que tudo sabe,
ao ver que as flores murchavam e que as plantas não
frutificavam, mandou convocar Deméter
ao Olimpo, mas ela – a mazela do desgosto
a sufocar-lhe o peito – mandou dizer ao Pai
que nunca regressaria à Pátria sem a ninfa
de beleza em flor, pois que somente Perséfone
em sua juventude guardava o segredo dos ciclos
da Vida. Envelhecida e envergonhada, a Mãe
exilara-se na Terra, carcaça estéril. E, símile
à deusa, a Terra entrou em menopausa. A fome
e a miséria grassaram em campos e cidades.


V



BELA QUE SE DISPUTA


Não nascera Ascálafo ave noturna, mas era
o seu dever ficar acordado a noite inteira
velando a rara presa, mais bela que Helena:
que outra mulher se disputa em três reinos?
A Mãe a queria consigo; Hades a raptou;
e logo se veria o Olimpo a reclamá-la.
E eis que aos Infernos enviou Zeus Pai
emissário de respeito, o deus Hermes,
hábil negociador que sabia dos caminhos,
para que o deus das trevas tomasse tino de que
– fora decisão de Zeus! – Perséfone teria
que deixar para sempre o mundo trevoso e ir
ao encontro da Mãe no Reino Mátrio da Terra,
pois só assim Deméter chorosa voltaria
ao Olimpo, Pátria de todos os deuses eternos
nas alturas do céu. Prontamente anuiu Hades:
por mais odioso que o digam, louco não era
de se contrapor à decisão de Zeus. Mas
quando todos já consideravam inexorável
que Perséfone se safasse das profundezas,
aconteceu o grande escândalo: Ascálafo,
servo fiel do Reino das Sombras, contou
ter visto aquela deusa que tanto se disputa
com um bago de Hades em sua boca – romã,
amor inverso em versos do Odioso. –
A Mátria e a Pátria estremeceram de dor
Profunda: Perséfone estava perdida
para sempre! Doravante os Infernos seriam
o seu reino – Tálamo! – onde ao deus odioso
a quem agora pertencia e aprendera a amar
iria servir as suas sempiternas delícias
por inteira metade de cada ano; os dois
quartos restantes elas reparti-los-ia
entre Terra e Olimpo; naquela a cuidar das plantas,
e neste a gozar da companhia dos seus.


VI


AS DEUSAS


Deusa a Terra nunca foi, nem mulher. Os homens
a amam por temerem seus muitos mistérios
e por precisarem dela para aquele fenômeno
a que chamamos de Vida. Porém, como as mulheres
são deusas tão cheias de encanto e mistério
em cujo gracioso corpo grassa a vida
ávida após ali ser plantada e semeada
a semente do amor, também a romã que tem
plantadas e semeadas primícias na Terra
graciosamente grassa quando respeitados
os mistérios das estações. E porque ainda
a Terra é velha e é menina aí também
ela se assemelha às deusas com menarca,
menopausa e fertilidade. E foi por isso
que os homens escolheram dentre tantos numes
justamente aquelas duas – Deméter e Perséfone –
a serem para sempre chamadas As Deusas:
mais do que quaisquer outras as duas encerram
em seus mitos tão cheios de graça o mistério
da eternidade. Assim a Terra deixou de ser
mera estrela de lama e se tornou nume brilhante
única e exclusivamente por causa das mulheres.


Antônio Adriano de Medeiros

terça-feira, 15 de junho de 2010

DOIS SONETOS A THOT




I



Grunhindo sons incompreensíveis e nua,
disputando pedaços de carne e ossos,
vivia a horda simiesca. A Lua
- a que tem piedade dos seres mais grossos
por sabê-los infelizes e mergulhados
nas trevas - quis mudar-lhes o triste destino,
e certa noite lhes mandou um babuíno
com as palavras e os gestos delicados.
Por muito tempo serviu como secretário
dos deuses o macaco branco, e as leis
foram criadas, e mesmo o calendário
em que se anotava a duração do reis.
Porém a paz não nos trouxe a criatura,
pois foi gerada num momento de amargura.



II



Ave ou macaco, o deus sofria
e desencantava a sua solidão
sempre que cantava - fingindo que ria -
a sede demente no seu coração.
Ele demarcava o tempo que ia
porque toda noite mudava a feição.
Todas as palavras só ele sabia,
dos deuses ditava a determinação.
Era o sol da noite, sozinho no céu
com seus raios tênues ensinou carícia.
À grei inumana, muda e incréu,
ele a cada gesto ministrou perícia.
E quando partiu, não nos deixou sós:
legou uma estirpe - grandes faraós.


Antônio Adriano de Medeiros


A mitologia egípcia é coisa rara de se encontrar: Thot é um deus interessantíssimo, o deus dos escribas. Associado à lua, "sol da noite", era representado tanto por um babuíno que ensinou as palavras, os gestos, e a mímica aos homens, como por uma pessoa com cabeça de íbis (cegonha). Sempre suas representações trazem coisas associadas à escrita. Para agluns é um macaco, pra outros uma Ìbis, cegonha. O primeiro soneto ficou meio dessarrumado, tentei fazer em doze sílabas (sou mal na contagem, me perco nas sílabas tônicas), e só fala do Babuíno. O segundo usa as imagens de macaco e pássaro pra se referir aos deus, e me parece tanto mais bem feito, como mais bem retratador inclusive do homem e dos poetas, através da união das duas representações do deus. Eu, como Thomas Mann em José e Seus Irmãos (onde descobri o deus) prefiro o babuíno.

Mito riquíssimo, deu origem a uma linhagem de faraós (tutmés é "filho de thot"), como também à palavra "totem"(aqui eu arrisco, não foi visto nas páginas da Net. Mas não pode ser outra coisa, se bem que Freud parece se ater à mitologia de tribos de outros lugares quando escreveu Totem e Tabu, associando o totem à lembrança do pai morto no "banquete primordial").

Cabe ainda dizer que se julgava, naquela época, o coração como a sede da mente, permitindo assim um belíssimo trocadilho sobre a necessidade de falar: "a sede demente no seu coração". Na verdade, sem a linguagem nunca seríamos o que somos.

domingo, 13 de junho de 2010

ÉDIPO REI NO SERTÃO






Não pode um filho ser para a Mãe indigesto
afinal apenas retorna para onde foi parido;
assim sendo um enterro lembra um incesto:
a seriedade da Morte libera o que foi proibido.
Isso que era praticado e tão natural,
interdito pelo Pai nos primórdios da cultura,
eis que retorna triunfante no final:
quando o corpo desce para a sua sepultura.
E no momento em que o Destino for cumprido,
eu ali, morto e pobre, saberei que não foi vã
a singular experiência de ter vivido?
- Não mandem flores, meu irmão e minha irmã:
a terra lá do sertão decerto me tem carinho
e com alguns cactos ornamentará meu ninho.
Sobre o meu crânio há de pôr uma coroa de espinhos.


Antônio Adriano de Medeiros

sábado, 12 de junho de 2010

A FESTA DE SÂO JOÂO





"A pé-de-bode abriu asa e cantou"

Para R.C.N

Eu vou contar pra vocês
da festa de São João,
a festa mais animada
que existe lá no sertão,
batuque forte no peito
acende fogo no chão.

A coisa do coração
unida à religiosa,
em alegria e fé
é rica e prodigiosa,
e o poema é dedicado
a uma mulher que é Rosa.

É contado em verso e prosa
que quando São João nasceu
logo sua mãe, cumprindo
aquilo que prometeu,
para avisar a Maria
uma fogueira acendeu.

Então a prima entendeu
que um milagre acontecia
pois a idade de Isabel
ter filhos não permitia,
logo depois o milagre
veio pra Virgem Maria.

Há tempos já se sabia
cá no hemisfério austral
que a 23 de junho
chega um vento glacial,
e se fazia a fogueira
após colheita anual.

Nessa festança ancestral
era a vida celebrada,
dançavam a noite inteira,
varavam a madrugada,
celebravam-se matrimônios
nessa noite iluminada.

E foi a festa acoplada
ao calendário cristão
quando os bravos portugueses
chegaram a nosso chão,
Deus e Vida celebrados
na festa de São João.

Por isso lá no sertão
não pode haver festa igual,
o que se passa no céu
de nosso hemisfério austral
é o mesmo que os do Norte
comemoram no Natal.

E o leitor não leve a mal
eu dizer uma besteira,
mas pra mim quem foi menino
e não brincou na fogueira
vendo o céu se iluminar,
perdeu a infância inteira.

E ali é mais verdadeira
a celebração do amor,
a colheita já foi feita
porque o milho deu flor,
o frio aproxima os corpos
à procura de calor.

E a festa tem mais valor
se a cidade é pequena
pois a tradição rural
é a verdade da cena,
do São João comercial
olho assim e tenho pena.

Pois agora a minha pena
vai descrever, em poesia,
o que ficou na memória
do que os olhos viram um dia
nas festas de São João
que fui em Santa Luzia.

O velho Mané de Bia
cantava coco na praça,
descia o Talhado inteiro
para a mistura da raça,
as moças da capital
traziam beleza e graça.

Por pouco não se desgraça
mais de um bom casamento,
houve muita gente boa
que quebrou o juramento
e quis fugir com uma bela,
doido de contentamento.

Matuto deu passamento
quando a tarde chegou
trazendo as muitas musas
que o Olimpo mandou
para encantar seus olhos
com as imagens que sonhou.

O pau lá nunca baixou,
ou seja: nunca houve briga;
decerto alguns molecotes
desses que procuram intriga
se agarraram uns com os outros,
mas pra isso ninguém liga.

Em uma Quadrilha amiga
não me recuso a entrar,
todos os passos da dança
digo que não sei puxar,
mas Casamento Matuto
juro que sei celebrar.

Estando o povo a dançar
chega o grande momento,
os noivos e juiz e padre
dão início ao casamento,
discursos amatutados
falam em chifre e corrimento.

Quem recebe o sacramento
ganha um nome que iluda
e sobrenomes bem dúbios
qual Rêgo, Manso ou Rabuda,
e a noiva sempre é donzela,
embora esteja buchuda.

É grande o deus nos acuda
se alguém se recusar
a celebrar o casório
ou ao menos demorar:
sai bala e puxam peixeira
ali mesmo no altar.

Volta a sanfona a reinar
no animado forró,
dança a bela e o cachaceiro,
a letrada e o brocoió,
muita gente faz promessa
pra sair do caritó.

Só pára o forrobodó
pra se acender a fogueira,
corre logo a molecada
toda animada e faceira
porque sabe que agora
sobem fogos noite inteira.

Tem vulcão e tem roqueira,
tem bomba e tem chuveirinho,
tem belas gotas no céu,
tem bola doida e chumbinho,
e até quem já é velho
fica bem pequenininho.

Eu relembro com carinho
dos amores do sertão,
e se decerto alguém
ler tais versos com emoção,
saiba que nunca esqueci
dos beijos que recebi
nas noites de São João.

Antônio Adriano de Medeiros

terça-feira, 8 de junho de 2010

CANUDOS - A PELEJA DO CONSELHEIRO COM O CORTA-CABEÇAS




“O sonho da razão produz monstros”


Para Antoniel Campos


Eu vou contar uma história
que um dia aconteceu,
no Arraial de Canudos
foi onde a história se deu,
e é uma história triste:
muita gente ali morreu.

Certo dia apareceu
pelo sertão do Nordeste
- onde canta o Acauã
e mora o cabra da peste -
um profeta anunciando
o fim do mundo terrestre.

Por enviado celeste
o povo todo o tomou,
e como dava conselhos
sábios de grande valor,
de Antônio Conselheiro
o povo o apelidou.

Muita gente se juntou
a Antônio Conselheiro,
que saía pelo mundo
na sina de estradeiro
levando a palavra santa
de profeta verdadeiro.

E o sertão do cardeiro
- que é terra de homens sérios -
aplaudia o Conselheiro
e seu séquito de mistérios,
quando os via restaurando
igrejas e cemitérios.

Porém os tempos funéreos
prenunciavam desgraça,
teria eco o profeta
anunciando na praça:
- "Vem aí o fim do mundo
com a tragédia da raça."

Viria bomba e fumaça
sujar de sangue o sertão,
ribombar mais perigoso
que aquele do trovão,
o vento frio da morte
soprar que nem furacão.

Numa certa ocasião,
Conselheiro, com desgosto,
ouviu falar de um negócio
que chamavam de imposto
a ser cobrado do povo,
e achou coisa de mau gosto.

Depois que o rei foi deposto
e expulso pra Portugal,
mudou-se o casamento
e o sistema decimal:
para o profeta, a República
era a encarnação do Mal.

A sua ira foi tal
que ele amaldiçoou
o regime então vigente
e ao povo conclamou
a não pagar o imposto:
coisa que Deus não criou.

Quando a notícia chegou
no palácio da cidade,
o governador mandou
- usando de autoridade -
alguns soldados prenderem
o autor da iniqüidade.

Não foi com facilidade
que encontraram o profeta,
protegido pelo povo
em atitude correta,
mas deram voz de prisão
ao atingirem a meta.

Ai, se eu fosse poeta,
para poder descrever
a reação da miséria
enfrentando o padecer:
pulam em cima dos macacos
e botam o Cão pra correr.

Conselheiro pôde ver
que magoara a ferida,
daquela hora em diante
corria risco de vida,
e procurou pra seu povo
uma Terra Prometida.

De uma fazenda escondida
apossou-se com o rebanho,
lá tinha pasto e água
pra beber e tomar banho,
aboliu-se a propriedade
na terra que tinham ganho.

Audácia de tal tamanho
irritara os poderosos,
mandou-se um batalhão
com os soldados raivosos
pra remover de Canudos
os romeiros revoltosos.

Por caminhos tortuosos
faz-se a justiça divina:
de que serve a arma moderna
contra quem a fé domina?
- Bota o Diabo pra correr
a reza mais pequenina.

Não houve carnificina
- os romeiros eram de paz -
podiam ter esmagado
o batalhão de Caifás,
porém deixaram fugir
aos filhos de Satanás.

Porém isso foi demais
pro exército brasileiro:
ser derrotado e humilhado
por um general romeiro
- armaram o Corta-cabeças
pra vir do Rio de Janeiro.

Toda noite o Conselheiro
- que era ser prenhe de luz -
dava conselhos proféticos
e louvava a Santa Cruz,
cercado pelos romeiros
no Templo do Bom Jesus.

Dante não rima Jesus
e fez Divina Comédia,
eu tenho dicionário
e até mesmo enciclopédia,
mas imito o florentino
pra compor triste tragédia.

No Brasil da idade média
impera sempre o terror,
há o pobre escravizado
e o rico dominador:
se o pobre desobedece
chamam o degolador.

Sempre o desafiador
precisa de um corretivo:
não basta apenas matar
o elemento nocivo,
é preciso degolar
- de preferência, inda vivo.

Foi então que um altivo
coronel foi ao sertão
levando o Regimento
que orgulhava a nação
para aniquilar de vez
pacífica rebelião.

Se tinha parte com o Cão
o meu saber ignora,
mas a mais de cem pessoas
mandou degolar na hora,
pelos seus prisioneiros
Santa Catarina chora.

Um cavalo branco espora
à frente do Regimento,
é tão grande a arrogância
que causa constrangimento,
mas de repente cai e baba,
se espojando qual jumento.

Quando ele dá passamento
tratam logo de esconder,
não pode uma autoridade
que de ferro sonha ser
sofrer de doença assim
como algum humano ser.

Ao se restabelecer
de seu ataque epiléptico,
trazem dois prisioneiros
para o corretivo ético:
- Afaste os olhos, leitor,
o que vem não é estético!

Um pobre e esquelético
chorando pede perdão,
outro reza e amaldiçoa
a quem tem parte com o Cão,
duas cabeças que caem
ensangüentando o chão.

A isto chamam Razão,
triunfo da inteligência?
A engenharia da morte
aplicada com sapiência:
quando sonha a Razão,
o que produz é demência.

Mas a santa providência
agindo com sutileza
atrai o Corta-cabeças
e o transforma em presa:
jagunços pegam o homem
e retribuem a malvadeza.

Decerto não há beleza
em um corpo dependurado
aos galhos de uma árvore
com a cabeça de lado,
insígnias de coronel
num cadáver graduado.

Da cabeça degolado
assustou-se o Regimento,
e Canudos teve trégua
durante um breve momento,
os fiéis rezaram muito
como agradecimento.

Com sangue num juramento
lá no Clube Militar,
entre compasso e esquadro
alguns prometem vingar
a morte do coronel,
- Deus o tenha em bom lugar!

Os radicais a bufar
incendeiam alguns jornais
lá no Rio de Janeiro,
e em outras capitais
se articula um exército
pra degola de alguns mais.

O sertão não viu jamais
uma tropa igual àquela,
bem mais de cinco mil homens,
- muitos animais de sela -
maquinaria pesada
era vista na favela.

Qual no mar grande procela
chovia a artilharia
no Arraial de Canudos
e a igreja não caía,
o Conselheiro nas rezas
um milagre prometia.

Toda noite ele dizia
que El Rei Dom Sebastião
viria com seu exército
pra combater no sertão,
das profundezas do mar
para enfrentar o Cão.

Parecia assombração
aos ouvidos dos soldados
o som das rezas à noite
a ecoar nos descampados,
e muitos correram doidos
pelo mundo, alucinados.

Os generais espantados
nunca tinham visto aquilo,
o estrondo retumbava
e ouvia-se o sibilo,
mas a reza não parava
como cantiga de grilo.

E foi mantido em sigilo
algo que aconteceu,
até mesmo dos romeiros
a notícia se escondeu:
antes de cair Canudos,
o Conselheiro morreu.

E quando o Diabo irrompeu
aos urros na terra santa
à procura do beato
pra cortar sua garganta,
ao saber de sua morte,
bufa, protesta, se espanta.

Porém a ira era tanta
que o cadáver se exumou
sob dois metros de terra
onde o povo o sepultou,
e pelo bem da ciência
um médico o degolou.

O corpo se separou
da cabeça singular,
levaram pra Salvador
o crânio a analisar,
nada anormal se achou,
jogaram o crânio no mar.

Eu agora ao terminar
esta epopéia vil,
uma história de pobreza,
fé e ignorância hostil,
pede-me a mão que ponha:
- Leitor, eu sinto vergonha
da História do Brasil.


Antônio Adriano de Medeiros


Em sendo eu um nordestino e ainda mais sertanejo, não poderiadeixar de escrever cordéis. Essa é minha versão paraa Guerra de Canudos, e faz patê de um livro que tenhopronto para publicação e que se intitula Zoológico Fantastico. Segue abaixo a nota explicativa do livro referente ao cordel.

“O mais famoso dos romeiros, porém, foi Antônio Conselheiro, cuja saga é contada em Canudos: a Peleja do Conselheiro com o Corta-cabeças. A epígrafe citada, “o sonho da razão produz monstros”, é de Goya. A Guerra de Canudos foi o mais trágico e controvertido acontecimento militar brasileiro, ocorrido em fins de 1800, mais ou menos 1894-1897, sendo uma represália que tinha como motivo real implantar uma ditadura militar no país, pois julgavam os homens que tinham armas que só os militares eram "preparados" para o poder. Há tempos que Antônio Conselheiro incomodava a Igreja, pois ao restaurar igrejas e cemitérios em cidades pobres do sertão nordestino, ele atraía fiéis para seus sermões noturnos, alguns na própria igreja, outros na praça em frente. Dava conselhos conforme as antigas escrituras, e anunciava o Final dos Tempos, quando o sertão viraria mar, e o mar, sertão, os rios dariam leite, etc. Foi preso, apanhou, foi humilhado, mas voltou do mesmo jeito a consertar prédios em ruínas e fazer pregações. Tentaram interná-lo no Rio de Janeiro, o arcebispo de Salvador solicitou a internação diretamente ao Governador, mas não havia vagas; certamente os sábios da antiga corte não deram muito valor a um maluco sertanejo. A República recém implantada anunciava suas medidas em mensagens afixadas em prédios públicos, e certo dia o Conselheiro, que à essa altura já tinha seu séquito de seres esfomeados, aleijados, ex-escravos, ex-cangaceiros, putas arrependidas, beatos e afins, e mais surpreendido com as notícias de que a República acabara com o casamento religioso, com o sistema de pesos e medidas então vigente, e agora estava prestes a cobrar do povo, além do dízimo que já era pago à Igreja, ainda uns tais de impostos, arremeteu contra os editais e rasgou-os, atirando-os ao chão. Ainda hoje não há no mundo um ser mais poderoso que um juiz ou delegado do sertão nordestino, imaginem então naquele tempo: logo a polícia estava no encalço do "agitador comunista", só que os soldados, após perambularem por três dias sertão adentro procurando-o, não esperavam a reação dos seguidores, que lutaram, bateram, apanharam, mataram e morreram, e acabaram botando-os para correr. Então o Conselheiro decidiu fixar-se com seu povo em lugar seguro, escolhendo uma fazenda abandonada e improdutiva em Canudos, fundando a cidade de Belo Monte do Bom Jesus, que acabou por tornar-se, à época, a 2ª cidade mais populosa do Estado da Bahia, atrás apenas de Salvador, tal era a quantidade de pessoas que acorriam para salvar o Santo das forças militares dos poderosos donos da Lei e de Deus. Foram então se somando e sucedendo expedições militares e aumentando a rede de intrigas peculiares à histeria coletiva, que sempre tem o poder por trás: o vice-presidente do civil Pudente de Morais era o militar baiano José Vitorino, que precisava encontrar em seu Estado um local para mostrar como era poderoso e sabia mandar nos miseráveis. Tentou-se várias vezes derrubar o governador Luís Viana, que foi lúcido o tempo inteiro cumprindo apenas suas obrigações, não pendendo nem para o fanatismo religioso, nem para o jacobino. O Corta-cabeças era assim chamado o coronel Antônio Moreira César, orgulho militar brasileiro e admirador de Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro, catarinense: de uma só vez aplicou o "corretivo" no Estado de origem do Marechal de Ferro, então presidente, Santa Catarina, mandando degolar de uma só vez 180 prisioneiros. O Coronel Moreira César sofria de Epilepsia, o que é enfatizado no poema. A referência no poema a Dante deve-se ao fato de ele, na Divina Comédia, rimar a palavra “Jesus” apenas com ela mesma, o que também fiz num verso. O Arraial de Canudos está hoje sob as águas de uma grande represa hidrelétrica construída pelo Regime Militar de 1964-1994, que pretendeu assim sepultar de vez o lugar, escondendo antigas feridas. Por que então as águas insistem em baixar, exibindo as ruínas fantasmagóricas da velha igreja?” Extraído de Zoológico Fantástico, de Antônio Adriano de Medeiros, aguardando publicação.

domingo, 6 de junho de 2010

EROS











“... e Eros: o mais belo entre deuses imortais”

Hesíodo, Teogonia, 120


Pode um simples mortal compreender

o que inteiramente é tão complexo

que é dois sendo um num mesmo Ser

como algo que a si se faz fazendo sexo?

Algo que existisse em eterno amplexo

entre dois pólos opostos sem o ser?

Algo que ao masturbar-se faz crescer

a tudo mais que existe terá um nexo?

Como se define algo que é indefinível?

Como se pode crer em algo incrível?

A tal Fenômeno já deram nomes tantos

que até o chamaram “Eros e Tânatos”.

Mas se fossem todos sábios e sinceros

diriam o quê decerto o sabem altos cleros:

que não há morte, pois Deus é todo Eros.


Antônio Adriano de Medeiros