sexta-feira, 16 de setembro de 2011

No hospital dos lunáticos 2/4


Nesses 27 anos em que tenho atuado em hospitais psiquiátricos, alguns deles me marcaram mais, ora por me aceitarem por mais tempo, ora por me terem proporcionado mais aprendizado. O primeiro hospital psiquiátrico onde entrei foi a Colônia Juliano Moreira, em João Pessoa, quando cursei a disciplina Psiquiatria pelo curso médico da UFPB; já ali havia, em 1984, um Pronto Socorro com os chamados "leitos de curta duração", onde os pacientes ficavam até três dias, com a finalidade de evitar uma internação mais prolongada nas enfermarias. Em sendo um hospital psiquiátrico público, estadual, com muitos pacientes, havia certas "aberrações", como as "enfermarias dos nus": uma enfermaria masculina e outra feminina nonde os pacientes ficavam despidos o tempo todo, alguns para todo o sempre, pelo simples fato de tirarem ou rasgarem as próprias vestes que se lhe davam, ou que eles traziam: parece que ninguém considerava a possibilidade de se lhes oferecerem outras. Mas foi ali que tive as primeiras aulas sobre psicopatolgia, sobre as síndormes clínicas, e as formas de tratamento psiquiátrico, ou seja, as informações que formaram o alicerce de algum saber que porventura tenha, me foram dadas nas aulas ali ministradas por Dr. Humberto Vicente de Araújo, Dr. Murilo Duarte da Costa Lima, Dr. João Leonardo Morais, entre outros.

Outro hospital em que estagiei de 1984 até o final de 1985, em João Pessoa, foi a Clínica do Stress, do Dr. José Donato Braga, o qual criou até um centro de estudos pra que eu e mais alguns estagiários apresentássemos semanalamente casos clínicos e seminários sobre as síndromes clínicas, as formas de tratamento, e assuntos correlatos à Psiquiatria e à Psicologia. Aprendi muito ali também, na Clínica do Stress original, no bairro dos Expedicionários.

Mas aí no ano de 1986, quando fazia o Internato na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, conheci o IPUB, como se chama até hoje o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, porque antes era o Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil. Me apaixonei pelas atividades do Centro de Estudos às 10h da sexta-feira a ponto de achar que só seria psiquiatra se conseguisse estudar ali naquele Instituto, e para o ano de 1987, quando já seria médico, eram ofertados três cursos: a Residência Médica, o Curso de Especialização em Psiquiatria, e um curso novo, chamado Curso de Especialização em Saúde Mental (CESM), que era o xodó da então diretoria, e misturava médicos com outros profissionais, psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, e afins. Eram muitas as discussões sobre tais cursos, e eu não quis me inscrever no último, só nos dois primeiros: havia naquela época um clima meio belicoso no Curso de Saúde Mental contra os psiquiatras, que afastava alguns médicos dele; pelo menos foi om que eu senti nas aulas em comum que tivemos, vez que fui aprovado - foi uma das maiores alegrias que tive na vida! - no Curso de Especialização em Psiquitria.

Naquele ano de 1986 o clima no IPUB estava pesado. A diretoria nova era, segundo expressão de alguns, formada por "comunistões" (sic),e queria acabar com o Curso de Especialização em Psiquiatria (CEP), para o qual foram aprovados apenas cinco alunos: eu, nordestino, um mineiro do interior, e mais três cariocas, todos varões. Logo se formaram duas turmas, o que era natural, os cariocas e os outros; mas o mais grave foi quando soubemos que tínhamos, nós os outros, perdido nosso supervisor apenas uma semana após o início do curso, ligado ao então medalhão da psicofarmacologia do IPUB à época, e que resolvera, junto com outros professores, boicotar a direção ou aquele curso em particular, nunca conseguimos entender direito o que houve. Parece que o doutor, psiquiatra da zona sul do Rio metido a galã, não quis perder tempo com um nordestino e um mineiro do interior este último formado já há algum tempo... Ainda o ouvi reclamar do "pouco saber" dos candidatos daquele ano, razão pela qual somente cinco foram aprovados, e todos homens, ainda... Não valia a pena perder tempo... Houve ameaças de que não haveria o curso, que não valeria a pena e tal... Mas logo apareceram professores dispostos a nos salvar e àquele Curso de Especialização que duraria um ano e alguns meses, de fevereiro de 1987 até maio de 1988, quando apresentaríamos a monografia final. Além de atividades diárias nas enfermarias com assistência direta aos pacientes internados, tínhamos o ambulatório duas vezes por semana, o centro de estudos nas sextas, e uma atividade comum com o Curso de Especialização em Saúde Mental (deixou de existir uns anos depois; já o CEP passou pra ser de dois anos depois daquele ano trágico; parece que hoje mudou de nome, é mais abrangente). As "aulas de mistura" (digamos assim) dos dois cursos eram verdadeiros shows performáticos onde meninas principalmente assistentes-sociais e psicólogas se esmeravam em mostrar a superioridade humana e científica do interesse pelos pobres e da "compreensão psicodinãmica" sobre o "velho e ultrapassado modelo médico" de compreender os transtornos mentais (Um pouco de um e de outro não seria melhor, visto não serem antagonicos entre si?) Lembro de um show desses que me causou séria impresão: uma jovem, a que falava mais, moça de cor e de óculos da zona sul do Rio e assistente-social recém-formada, discorreu por cerca de meia hora sobre uma visita que fizera na semana anterior, numa atividade do curso, à favela da Maré; teria sido a primeira vez que ela fora a uma favela, e o principal detalhe, o qual ela ressaltou diversas vezes em seu relato emocionado foi que ela sujou seus sapatinhos na lama... Nossa, como aquilo era importante: "Eu pisei na lama da favela, meus sapatos ficaram sujos com a lama da favela! Vocês sabem sabem o que é isso?" Eu ainda quis dizer que, ainda menino, com oito anos, o açude ao lado lá de casa secara, e eu, correndo descalço com outros meninos entre as poças lamacentas, descobri qpisandpo na lama grossa a gente ganha umas espécies de botas que nos capacita a andar sobre os espinhos, mas era tímido demais pra trazer uma peripécia sertaneja sem valor para a Praia Vermella, no hospício que recusou a internação de Antônio Conselheiro por "falta de vagas"...

Graças aos professores Eustacchio Portela Nunes, Ana Maria Biolchini da Silva Gonçalves e Wanda Leme Pereira, além da Dra Miriam, do ambulatório, nosso curso foi salvo e valeu muito a pena. Mas minha idéia era ficar no Rio pro resto da vida: fui colonizado pelo Pasquim, Rádio Globo e Rede Globo, e pra mim só haveria vida inteligente no Brasil ali, e eu fui pra não voltar mais. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que, para os dois coordenadores do cursos CEP e Residência Médica, eu só poderia fazer outro curos ali se primeiro voltasse pro Nordeste e depois retornasse ao RIo. Seja porque seria um sina de respeito pela Ordem e Hierarquia, seja por poragmatismo "(não se pode sair assim sem destino", disse o coordenador da RM ao me reprovar a primeira vez; "Você é de lá: com o que você sabe, já dá pra ser psiquiatra lá. Vá primeiro pra sua terra, se um dia precisar voltar, a gente ajuda!", me disse o coordenador do CEP, explicando as razões porque eu, que era ex-aluno da UFRJ agora, não pude progredir nos estudos).

Ainda tentei por mais dois anos, quando vi que não tinha mais jeito, vim-me embora em março de 1989, pensando em voltar em novembro pra novos exames; mas aí teve um concruso no Rio Grande do Norte, eu fiz, passei, fui tão bem recebido lá que não consegui mais fazer as provas no outro RIo, o de janeiro, embora tenha ido viajado. Com isso troquei a Universidade pelo Sertão, a cátedra pela clínica, o Rio de Janeiro por Caicó e Natal, e acredito que em termos de humanidade mesmo, eu fui mais útil aqui do que lá. E, sinceramente, quem tem Caicó e Natal, pra quã precisa de outra cidade qualquer?

O cordel a seguir agradou bastante meus amigos do Harmonia Enlouquece, grupo musical formado por pacientes e doutores do CPRJ, Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, lá na Praça da Harmonia, do Rio. Eu também gostei muito de conhecê-los. Ele faz parte do meu Zoológico Fantástico, e a poeta e pediatra da dedicatória teve a culpa de, entre peixe com tapioca e cerveja lá no mirante de Barra de Tabatinga, perguntar, quando lhe falei que o Zoológico Fantástico tinha todas as instiruições e repartições públicas brasileiras:

- Mas cadê o hospital?

Pois é, faltava o hospital. Psiquiátrico. O Dos Cavalos eu ainda não escrevi, não sei se terei tempo, disposição, e coragem. O Hospital dos Macacos é uma sátira aos velhos hospitais psiquiátricos onde se julgava medicalizar cientificamente o comportamento humano, seguindo o modelo uma neura psiquatria médico-policial que não gosta de ser contrariada: se há algum mérito no que ainda resta de novo no chamado Movimento Antimanicomial, é responder aos psiquiatras: é preciso que alguém responda aos psiquiatras, se não a coisa pode ficar perigosa. Da mesma forma, alguém terá que responder e, se necessário, medicar, o Movimento Antimanicomial, se ele continuar insistindo em reinventar um novo mundo.

A nossa modesta contribuição à reforma dos hospitais psiquátricos, que era mesmo muito necessária - quando menos para dar um pouco de humildade à psiquiatria e a psiquiatras tupiniquins - começa citando um hospital onde chovia, fazia frio, e faltava luz. Depois surge um médico, cujo nome é Simão, cuja sonho é mais "fazer ciência" do que diminuir o sofrimento das pessoas que lhe procuram buscando ajuda. O "tesouro do doutor" é uma jaula com macacos überobedientes (gostou?) onde a um assovio seu, eles se levantam e fazem fila indiana, e, a uma chicotada no ar, eles correm a se deitar em seus galhos. O Doutor Simão ainda nos dá algumas pérolas de seus saber, como amostras grátis.

Cabe ressalvar que o hospital imaginado pelo antimanicomiais é impossível: eles querem obrigar os médicos clínicos e cirurgiões, e de outras especialidades, a "evoluírem" (desculpem, mas não há outra palavra; e isso é uma ironia!) a ponto de internarem, ao lado de uma puépera, de um pos-operarório, ou mesmo de grande queimado, um paciente em agitação psicomotora ou com delírios e alucinações graves. A Medicina sabe que isso é impossível (e impensável) desde Pinel, na Década de 90 do Século XVIII. Seria o Hospital dos Cavalos (Sociais, naturalmente).

absaam

O HOSPITAL DOS MACACOS


Para Márcia de Souza Leão Maia


Chovia e fazia frio
no antigo manicômio,
onde se enfrenta doenças
como em qualquer nosocômio,
além daquelas urdidas
pelas artes do Demônio.

No crachá escrito "Antônio"
fui, com certa apreensão,
ao antigo hospital
para o primeiro plantão;
recebeu-me o diretor,
o velho doutor Simão.

Ele apertou minha mão
bem disposto e com asseio,
dizendo: - "Nobre colega,
agora que você veio,
cabe a mim convidá-lo
para fazer um passeio".

Eu estava com receio
de não encontrar ali
alguém que me ensinasse
como deveria agir,
e diante do convite,
satisfeito agradeci.

Ele disse: - "Por aqui!"
- apertando o seu gorro -
"Primeiro vamos passar
ali no Pronto Socorro".
Nessa hora apresentou-me
Cérbero, o seu cachorro.

De medo eu quase que morro,
porém segui o doutor
que me mostrava os doentes
com ares de professor:
uns choravam, outros sorriam,
uns estavam em estupor.

Uma gemia de dor,
morava onde não sabia;
outra sofria de amor,
mais um de filosofia;
uma sonhava com o Cão,
outro com a Virgem Maria.

Um que quis fazer poesia
foi ridicularizado,
outro riu de minha cara
e me xingou de "viado",
um ao nobre diretor
chamou de "doutor safado".

O Doutor, meio zangado,
então fez a preleção:
- "Aqui só se faz ciência:
drogas, choque e contenção!
Baboseiras humanistas
são mera alucinação..."

Eu concordei com Simão,
doutor metido a bacana;
nessa hora, caro irmão
- minha vista não se engana -
eu o vi tirar do bolso
uma roliça banana.

E, com a cara de sacana
que têm privilegiados,
ele disse assim pra mim:
- "São todos alucinados!
Vou levá-lo a conhecer
a ala dos melhorados."

Vi alguns muito sedados,
outros de tudo esquecidos,
alguns bem abobalhados,
certos olhares perdidos,
uma veio nos saudar:
- "Ó meus doutores queridos!"

- "Esses parecem sabidos"
- foi dizendo o professor -
"porém vou lhe mostrar algo
que tem muito mais valor:
macacos domesticados
- o tesouro do doutor!"

E Simão fez um louvor
à mais cega obediência,
dizendo que com lunático
já perdera a paciência,
e então disse: "Vais ver
o triunfo da ciência!"

Que estava entrando em demência
eu só vim saber depois:
já morreu, foi enterrado
- já faz bem um ano ou dois -
mas naquela ocasião
me disse: - "Vede o que sois!"

E então o Doutor pôs
a mão em velho ferrolho
abrindo uma antiga porta
e gritando: "- Meu pimpolho!",
e então veio abraçá-lo
velho macaco caolho.

O macaco pisca o olho,
outros macacos também,
todos vêm comer banana
pois sabem que Simão tem,
mas fazem fila indiana,
e o doutor se sente bem.

E diz assim: "Não convém
se esquecer dessa lição:
mesmo os animais selvagens,
com química e com prisão,
podem aprender os hábitos
da tal civilização!"

Ele disse que a Razão
precisa ser ensinada,
que o tal livre-pensar
não passava de piada;
deu chicotadas no ar
e caiu na gargalhada.

Nessa hora a macacada
correu pro galho e deitou,
mas levantou-se de novo
quando ele assobiou.
E então o Doutor disse:
- "Sabe quem lhes ensinou?"

De novo chicoteou,
e se deita a macacada;
ele então se despediu,
dizendo: - "Boa noitada!",
mas só consegui dormir
quando raiou alvorada.

A história já foi passada,
e também passou Simão,
hoje a coisa está mudada,
não tem mais macacos não:
daquele velho hospital
- por uma lei federal -
mudaram a programação.

Antônio Adriano de Medeiros

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

no hospital dos lunáticos - 1/4


Inicio hoje uma série de quatro poemas que terão como tema o hospício. Serão postos mais ou menos uma vez por semana.

Os dois sonetos a seguir foram baseados em fatos bem reais.

É que os assim chamados loucos de verdade, vale dizer, psicóticos e retardados mentais, são inimputáveis; o que significa que não são passíveis de punição, de pena: claro que quando cometem crimes são obrigados ao tratamento compulsório num manicômio judiciário, mas um tratamento não é uma pena. Isso para a Lei dos homens.

Para a Lei de Deus, porém, a alma pecadora de um louco precisaria de perdão?

Essa a questão do poema a seguir, escrito após uma missa que fui num hospital psiquiátrico público de Natal; portanto, tal poema tem, além da eventual verdade poética, também a verdade secular, ou laica.

Falar em verdade, a palavra "manicômio" aí é colocada em sentido abrangente: manicômios são instituições psiquiátricas de imternamento compulsório e por longos períodos. Manicômio não é sinônimo de hospital psiquiátrico, como confundem alguns: uns por desinformção, outros por blefe político.

Mas há outros poemas onde discutiremos isso melhor.

Cabe, porém, dizer que hoje percebo que, mesmo sendo verdadeiros, tais sonetos, digo, tal poema composto por dois sonetos, é preconceituoso.

Ora, desde 1984 que vivo em hospitais psiquiátricos, e embora seja a psiquiatria uma ciência laica, ela não pode nem deve negar a importância que a Religião tem na vida civilizada. Não se sabe de civilização sem um sistema de crenças. É a "neurose social", como bem disse Freud em "O mal-estar na civilização". Portanto, há certos valores dos quais ninguém está livre. Nem mesmo os assim chamados alienados.




A MISSA DOS LUNÁTICOS

I

Noite negra chegara ao manicômio:
era a hora que fora assinalada
pelo austero e sisudo padre Antônio,
e então foi a santa missa iniciada.
Com sua voz firme e bem pausada
louvou as virtudes da prudência e matrimônio,
e aos inquietos de vida depravada
chamou de criaturas do Demônio.
Mas quando a todos pediu que, em silêncio,
implorassem perdão ao bom Jesus,
sonora gargalhada deu Juvêncio,
apagaram-se as velas, faltou luz.
E como em acesso de tique ou convulsões,
um velho louco gritou mil palavrões.

II

O diretor, no escuro, pediu calma,
mas em seguida começou a latir...
E todos, aflitos, ouviram-no repetir:
- "Ó Satanás, é tua a minha alma!"
Ai, que alguns não superaram os traumas:
a luz voltara, e todos viram ali
o seu doutor como um cão a grunhir;
só a jovem maníaca bateu palmas.
Grande era o espetáculo de depravação:
o padre e a moça da administração
em atos libidinosos com dois castiçais,
louvavam e davam vivas a Satanás...
- Quem mandou o padre ter a idéia indecente
de querer perdoar a quem já é inocente?

Antônio Adriano de Medeiros
Natal, 01 de agosto de 2001.