sexta-feira, 25 de março de 2011

Lição de jardinagem


Que o corpo feminino é um jardim é metáfora bem conhecida desde o Gênese do livro mágico dos israelitas. Cumpre a um jardineiro experiente dizer como se deve tratar o mais belo dos jardins, até porque as rosas não falam, como disse Cartola. Tudo bem que não falem, mas decerto o perfume que exalam (e que roubam de ti, leitora, lembrou ainda aquele poeta da Mangueira) certamente diz, a quem sabe ouvir, como querem ser tratadas; ou cultivadas, ou cultuadas, ou ainda regadas.


LIÇÃO DE JARDINAGEM

"a rosa vermelha é do bem querer"
Ronnie Von

Eu sei que guardas, amor,
na floresta pantanosa,
a tua mais rara flor,
a rosa úmida e cheirosa;
e que a ofertas em louvor
à ocasião preciosa
em que o poder criador
da natureza viçosa
nos impregna o corpo inteiro
do mais puro, mais forte e mais verdadeiro
sentimento que na vida nos é dado.
E eu, que sou um jardineiro dedicado,
sempre antes de colher-te a flor tão rara,
bebo o seu néctar, lambuzando a minha cara.

Antônio Adriano de Medeiros

quarta-feira, 16 de março de 2011

Reflexões sobre o Tempo


O bom de se escrever sobre mitologia grega e sobre os grandes poemas dos gregos é que a gente aprende muito. Ora, pois não é que descobri que Crono e Tempo não são a mesma palavra, mas apenas se aproximam? Foi um trocadilho que aproximou o deus castrador do pai e que engolia os filhos, do Tempo; as palavras em grego são bem semelhantes, só muda uma letra.

Claro que um poema como a Tegonia de Hesíodo é irretocável, é uma pedra fundamental da humanidade, e não se pode querer encontrar ali "verdades científicas" que hoje sabemos. Apenas brinco com as Meninas na roda, porque gosto de vê-las cantar e dançar, bem de longe, encantando agora a dois mortais, um tão pequeno diante do outro como certamnete era o pastor diante do Tempo, deus.

Está incompleto ainda, com três partes, o poema Reflexões sobre o Tempo.

E devo dizer a quem ainda não é habituado a poemas no estilo grego clássico, que os poemas se escrevem assim, sem rimas, e com procurando dar aos versos dez ou doze sílabas poéticas (a última, se for átona, não conta; pode-se descontar umas átonas tamvbém no meio dos versos).

Malgrado o escrito tenha relação com momento existencial meu, resolvi separá-lo do que julguara ser seu preâmbulo, o poema "Sá as Mães são Eternas", pra não ficar este poema abaixo um poema franksteiniano, ou seja, com estilos e forma diferentes.

Ao chegarmos à quarta parte do poema, ao final se percebe que elementos estranhos à Teogonia hesiódica começam a aparecer, outros deuses, ou supostos deuses.

Esqueci de dizer antes que os poemas de Homero eram rimados (a rima tinha a finalidade de facilitar a memorização, e vale lembrar que Ilíada e Odisséia - como também a Teogonia de Hesíodo - são anteriores à escrita). Na tradução para o português (e outras línguas) a rima tornou-se desnecessária, que o importante era a tradução literal dos belos versos de Homero ou Hesíodo. Por isso a tradição de poemas "gregos" ser sem rima em bom português.


REFLEXÕES SOBRE O TEMPO

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Não teria sido por maldade. As Musas
não são más, elas apenas são melífluas,
- além de sábias e tão encantadoras -
e quando o velho pastor se aproximou
- Hesíodo, cumpre dizer, era seu nome -
as filhas de Memória decidiram dar
aquilo que ele também tanto desejava
tão somente porque aquele velhote
agiu com delicadeza: pois que ele fingiu
que não desejava delas a carne tenra.
Reconhecendo seu lugar o pastor
ganhou das meninas não só a afeição,
mas sobretudo aquele prazer inefável
de poder contemplá-las e ouvir seu canto.
E assim como o simples pastor foi gentil
ao fingir que não lhes desejava a tenra carne,
igualmente as princesas olímpicas o foram
ao decidirem mentir para aquele homem.

II

Sim, porque assim como não se deve
falar de corda na casa de um enforcado,
igualmente seria deveras indelicado
sobrepujar o valor do Tempo frente
a alguém já entrado em anos. E as Musas
- moças finas e educadas - primavam
em seu melífluo canto, sobretudo pela
delicadeza. Outrossim, ninguém vá
- Por favor, leitora, tenha piedade de mim! -
imaginar que, neste simples arremedo
que é meu canto, se esteja a insinuar
que as princesas de Zeus e de Memória
não passavam de meninas caprichosas
dadas ao tão desagradável e feio hábito
da mentira contumaz. As Musas sempre
foram moças muito sinceras. Ora, se até
mesmo elas alertaram o velho pastor!
Pois não foi o próprio Hesíodo quem
nos contou que elas mesmas já no início
de seu tão melífluo, sábio e salutar canto,
o avisaram, tão sinceras que eram, de que
"mentiras sabemos dizer símies aos fatos"?


III

Quem de origem nobre não respeitaria
seus antepassados e naturalmente não
procuraria conhecê-los bem a fundo?
Ora, como poderiam as tão instruídas Musas
desconhecer que o seu próprio avô, Crono,
o ardiloso, era na verdade um disfarce
que o infatigável e antiquíssimo Tempo
- deus de natureza tão complexa que nem
mesmo Mnemósine, que julga tudo saber,
pôde instruir as filhas sobre sua origem -
pois bem, um disfarce que o único dos deuses
a quem, sem medo de se cometer um erro,
podemos dar o grave epíteto de Eterno,
usou para poder se apresentar assim
sem humilhar ninguém entre tantos deuses
menores? Sim, porque se houve um princípio,
este princípio foi o Tempo, e quando as Musas
disseram a Hesíodo que por primeiro nasceu
Caos, apenas procuraram ser gentis
para com o mortal, primeiro para que ele
tivesse a impressão de que antes de seu
grande poema não havia nada, e Hesíodo
assim poderia também até se incluir
entre os deuses criadores, e ainda depois
para que o mortal não se sentisse melindrado
ao constatar que o maior dos deuses era
justamente aquele que muito em breve
iria devorá-lo. De forma que podemos dizer
que aquelas netas saíram ao avô.

IV

Que Céu e Terra ainda copulam ninguém,
tendo juízo, ousaria duvidar. Porém
não mais qual nos primórdios do mundo,
quando o faziam de forma ininterrupta
e bastante violenta para a deusa, a qual
além de viver grávida o tempo todo,
quase morria de uma congestão, pois Céu
ainda a fazia ocultar nas estranhas
os filhos paridos, assim os privando da luz.
Sem outra saída ela deu a foice a Crono
para castrar o pai. Foi um golpe bem preciso,
e o velho nume desmaiou de medo - e dor -
ao ver um pedaço de seu enorme membro
boiando sobre as águas do mar. Todavia
Crono, malgrado o que dizem, foi muito
misericordioso com o seu velho pai
e não o castrou, apenas circuncidou-o
- o que foi a um só tempo uma medida
tanto educativa como também de higiene.
Desde então a rica prole de Terra e Céu
não mais gerou monstros nem gigantes, porém
deuses algumas criaturas ainda julgam
ser. A controvérsia a respeito é muito séria,
e verdadeiras guerras têm sido travadas
envolvendo legiões de Terra e Céu.
No centro da questão está o Tempo, deus
que parece zombar de quem se julga eterno.


(continua...)

Antônio Adriano de Medeiros
mar- 2011

segunda-feira, 14 de março de 2011

Lembrança de uma estrebaria no sertão




MEMÓRIAS DO SERTÃO DO SERIDÓ



A ESTREBARIA DE JOÃO GAVIÃO

Santa Luzia era bem menor e ao mesmo tempo muito maior ainda nos anos 60 e início dos 70 dos 1900. E isso fisicamente, em termos de limites territoriais mesmo. O fato se explica da seguinte maneira: embora a cidade em si fosse bem menor, o município de Santa Luzia do Sabugy até sessenta e pouco incluía ainda as atuais cidades de São José do Sabugy, Junco do Seridó, São Gonçalo, Várzea e São Mamede. Tudo isso contribuía para a gande feira do sábado, a qual contava ainda com a nobre presença do moradores do Talhado, os assim chamados Negros do Talhado, com seus utensílios de bela cerâmica vermelha, potes, frigideiras, panelas de todos os tamanhos, grandes caldeirões, e ferros de passar roupa, na verdade feitos pelas mãos femininas dos Talhado, como bem mostra o documentário Aruanda, de Linduarte Noronha.

Então aquela feira era uma festa, uma grande festa. Inclusive quando não tinha o grande Fogoió tocando seu fole de oito baixos, tinha sempre outro sanfoneiro, ou um tocador de pandeiro, ou ainda mesmo dois violeiros que traziam a Música, literal presença das Musas, e que deixa qualquer ambiente mais rico, ora em alegria, ora em tristeza, ora em outro sentimento, e por isso mesmo Thomas Mann fez o sábio e racional Settembrini dizer, em A Montanha Mágica, que até gosta dela, mas com a ressalva de que "a Música é politicamente suspeita".

Naturalemte que uma feira tão concorrida teria que ter meios de transporte para levar as pessoas até ela, e o meio de transporte principal do sertão naquele tempo ainda era o cavalo. Cavalos, éguas, mulas e jegues. Ma principalmente cavalos, muitos cavalos. E a estrebaria da cidade ficava exatamente defronte à minha casa. Melhor, minha casa foi construída examente defronte à estrebaria. Porque a velha casa sem reboco de João Gavião, sua grande casa que era também estrebaria, fora construída antes da "Casa de Agustim", à beira do Açude Velho, oficialmente Açude Padre Ibiapina, construído por esse futuro santo, já em proceso de beatificação. Porque os cavalos precisavam do açude para beber água e serem lavados. E outras coisas aconteciam também naquele açude em dias de feiras, coisas estranhas, eu menino descobri.

Gostava sobretudo do cheiro dos cavalos, um cheiro forte de ruralidade que tomava os arredores da velha estrebaria. Era-me expressamente proibido ir zanzar entre os bichos, examiná-los, pois havia o perigo iminente de um coice, quando não de ser atropleado pela imensidão de cavalos que todos os sábados era deixado ali por algumas horas, amarrada em frente à minha casa do outro lado da rua. E como eu gostava de olhar. Chegavam cedo, alguns solitários, outros em pequenos grupos, outros em grupos maiores de dez ou mais. Os homens desciam, e os cavlos eram amarados em tocos de pau que havia na lateral da estrebaria, e depois lhes retiravam as selas e se lhes dava milho e água. Havia água também na estrebaria, mas alguns eram levados ao açude, porque assim pareciam prgferir os próprios cavalos, gostavam de entrar na água, e também ali eram lavados. Hoje me arrependo de não ter acordado mais cedo naquelas manhãs, e de não ter ficado mais tempo contemplando aquela raríssima cena: pensava que fosse imorredoura. Hoje a ex-estrabaria é uma casa de dois pavimentos de um jovem empresário local, e o velho beco lateral onde os animais ficavam amarrados recebeu calçamento, como a rua. Meu paiscontruiu mais três casas e a passagem para o açude sequer existe mais, tendo o próprio Açude Velho sido reduzido a menos da metade de seu antigo tamanho por intervenção cirúrgica de um prefeito do passado.

O velho João Gavião, que há tempos se recolheu à dormida dos justos, era um homem de outros tempos. Se alguém se parecia com um cangaceiro em meus tempos de infãnica, esse homem era João Gavião. Magro, alto, e raivoso, parecia estar sempre bravo com alguma coisa; com seus cabelos e barba branca, costumava amolar amiúde seu enorme facão na janela de sua casa, bem defronte ao terraço da minha. Não importa sobre o quê ou com quem conversasse, parecia estar sempre com raiva, pois que falava alto, e aquele jeito bravo era seu próprio jeito de ser, homem decerto criado em tempo e lugar deveras hostil, o sertão de beatos, coronéis, e cangaceiros. Há que se avrescentar que o misterioso João Gaviião era inada um bruxo: conheicia o poder das ervas e era rezador. Já de Dona Luiza, sua boa esposa que igualmente se deitou para o sono restaurador das almas justas, eu gostava sem ter medo: era ela quem matava e tratava as galinhas lá de casa. Pegava no pescoço da galinha, dava um puxavante pra frente e depois torcia. Pronto. Era só dependurar por uma boa meia hora numa magueira, de cabeça pra baixo pro pescoço se encher bem de sangue, e em seguida depensar a bicha, abrir-lhe o bucho e "tratar", que era cortá-la em pedacinhos estrategicamente saborosos após o cozimento. Com o tempo foi-me concedido o direito de, caso não fosse sábado, inspecionar o ágild trabalho das mãos e da éixeira de Dona Luiza.

Minha Santa Luzia daquele tempo ostentava os generosos e pomposos epítetos de "Veneza Paraibana", e de "Cidade-Ilha do Sertão". É que, por causa dos três açudes, o Açude Velhos o Açude Novo, e o Açude das Freiras, o núcelo central da cidade, a cidade em si, ficava metade do ano totalmente cercada élas águas. Imagine então, rara leitora, o que é nascer em Veneza e depois descobrir-se verdadeiramente em um deserto... Mas isso deve assunto pra outro dia.

Duas lembranças principais me ocorrem agora sobre a estrebaria de João Gavião. Uma foi de uma prima, cujo nome não vou revelar, primazinha criança como eu que fora lá em casa num daqueles sábados inesquecíveis. O pai dela fumava, e dava preferência ao fumo de rolo, grossa e preta tira de fumo que se vende nas feiras, e que pode ser mascado além de fumado, sendo que ele mascado teria algum uso medicinal que já não me recordo qual. E a menina já tinha visto o rolo de fumo, obviamente, em sua casa antes. De repente chegou a hora de ir-se comprar o fumo na feira, e o bom pai pegou a filha pelo braço e ia saindo com ela para adquirir o rolo de fumo. Foi quando a atenciosa pequena, decerto querendo ajudar ao pai, mas também, quem sabe, querendo ficar mais tempo perto de mim ali em casa, viu um cavalo que estava, digamos, excitado, e apontando para o que julgava ser um rolo de fumo sob o garboso animal, exclamou:

- Ollhe, papai: tem um ali! Pegue aquele ali, papai!

O bom pai resmungou qualquer coisa tipo "aquele não serve, minha filha, já tem dono", e arrastou a pequena para a feira.

Mas a lembrança mais estranha que tive da estrebaria de João Gavião foi numa lembrança proibida.

Já era depois do almoço, e alguns cavalos já se tinham ido embora, a maioria. Acho que era já mesmo meio tarde, tipo 14 ou 15 horas, por aí Foi quando dois homens chegaram com seus cavalos para dar banho neles. E e meu irmão caçula, Decim, estávamos sobre o muro lá de casa, que dava diretamente no açude, mas a uma boa distância de onde estavam lá os dois com seus cavalos. De forma que não éramos vistos. Não sei bem por quê, mas de alguma forma achei aquelas vozes estranhas; às vezes afiunavam, às vezes engrossavam. Primeiro, bem amigos, eles lavaram seus cavalos. Depois, resolveram tomar banho, e caíram na água. Um então passou a dizer ao outro

- Sou seu amigo!

E repetiam isso um para o outro diversas vezes, gentilíssimos. Entretanto, eis que de repente, comecaram a brigar. Trocavam socos e palavrões, entre outras agressões. E eu e Decim ali assistindo tudo. E eram gritos de "Eu sou homem!". e "Tá pensando o quê, cabra safado?", e que tais. Porém, mais estranho ainda, de repente voltaram a trocar juras de amizade: "Sou seu amigo!"; "Eu também sou seu amigo!" E eis que foram amansando, e de repente se abraçaram e passaram a... se beijar na boca!

Por algum tempo ficaram naquela brincadeira de paz. Beijavam-se, e mergulhavam, os dois abraçados, e trocavam juras de amizade. E se beijavam e mergulhavam de novo. E trocavam novas juras. Só na hora de se irem embora é que de repente começaram a brigar de novo. Acho que foi pra disfraçar, pra não dar bandeira. Devia ter gente de olho ná as casas da prefeitura, do outro lado da rua, depois do beco da estrebaria de João Gavião. E aquele povo sempre foi falador...

Só muito tempo depois eu pude compreender que aquilo era coisa de cabra macho que se mete a beber cachaça no sertão que já não era mais de cangaceiros: os homens estavam ficando mais delicados.

Antônio Adriano de Medeiros
mar - 2011

sexta-feira, 11 de março de 2011

Só as mães são eternas







Anatilde Araújo de Medeiros, minha Mãe, aos 89 anos e 3 meses, no último dia em que ainda ficou sentada. - "Foto de Mãezinha" - autoria de José de Anchieta de Medeiros Morais




SÓ AS MÃES SÃO ETERNAS

"Só as mães são felizes"
Cazuza


Minha mãe está doente. Ela vai
dobrar a curva da neblina.
E depois não mais
a poderemos ver tal qual fora.

Mas não morrerá: seu corpo
apenas se unirá de novo à Terra
- fértil e acolhedora ilha de poeira das estrelas
que nada muda
no oceano infinito do Tempo -
sempre a gerar novas formas de vida.

De Mater a Deméter nada muda.

Sobre a Terra
só as mães são eternas,
porque
só as mães são matrizes.

Antônio Adriano de Medeiros
mar - 2011

quarta-feira, 9 de março de 2011

na quarta-feira, ingrata!



CINZAS COM VENENO

Por não mais suportar ver alegria
recolhi-me ás cinzas de mim mesmo.
Entre as sobras do pó de cada dia
meu esqueleto, esquálido, vaga a esmo.
Vez em quando, qual louco, às vezes cismo
inda haver Esperança ao fim do poço.
Mas... Que nada: tão fundo é o abismo!
A cada dia que passa sou mais osso.
Um antigo Inimigo, um velho Mal
há dez anos levou-me o Carnaval
e me assombra com negras fantasias...
- Ai, que mesmo nas velhas alquimias
em que misturo os raros, bons venenos,
tão fugaz já te vejo, ó doce Vênus!

Antônio Adriano de Medeiros
mar - 2011

sexta-feira, 4 de março de 2011

mais um poema imaginário

imagens google


POEMA IMAGINÁRIO DA LATA DE LIXO

"Noutras palavras, sou muito romântico"
Caetano Velloso


O lixeiro era poeta: enquanto
catava restos,
cantava versos
imaginários.

Imaginava haver poesia
na lata de lixo
que recolhia.

Além da poesia dos livros já gastos
e daquela dos livros pueris ou simplesmente ruins,
- porque a Poesia também tem direito
de ter livros ruins! -
o lixeiro imaginava sobretudo
os poemas jamais lidos por outrem
que não o próprio autor,
e os poemas nunca publicados
- aqueles poemas desempregados,
vagabundos, perdidos;
boêmios tristes porque sentiam a falta
do amor,
de uma leitora, de um leitor.

Aquele lixeiro talvez fosse romântico
- porque um lixeiro pode ser muito romântico! -
mas com certeza era meio doido,
ou não seria poeta
- digo bom poeta, porque os bons poetas
são sempre, no mínimo, meio doidos,
e os grandes doidos são sempre meio poetas -
e por isso imaginava
que sofria
por não poder resgatar
aqueles versos infelizes
que jamais seriam lidos;
se sentia
um coveiro de versos indefesos,
e por isso rezava
para que um obsequioso plagiador
tivesse santamente copiado
- nem que fosse pelo duplo plágio da psicografia -
pelo menos os vagabundos que fossem bons,
para que eles tivessem a felicidade
que têm esses meus maus versos,
de receberem a luz dos olhos teus, leitora.

E imaginava ainda,
o lixeiro que era um sonhador,
que o plagiador, que
- seja ele mortal ou uma entidade espiritual -
é sempre um ladrão puro e simples,
mas nesse caso poderia ser perdoado,
até porque os ladrões decerto também são necessários,
ou no mínimo inevitáveis.
E que o plagiador ideal seria aquele
que dissesse os mesmo versos
mas em outra Língua,
porque em outras palavras tudo poderia ser
muito romântico.

E chegava mesmo ao ponto
de imaginar
que os tristes e raquíticos e solitários versos
escritos no português falado no Brasil,
ficariam duplamente felizes
caso fossem plagiados e publicados
- ou seja, salvos! -
na globalizada Língua Inglesa.
(Nesse caso, imaginava,
os versos seriam salvos sem ressalvas.)

Será que aquele simples lixeiro,
que era evidentemente um bom cristão,
cometeria a insensatez de imaginar
que a Poesia na atualidade finalmente pôde
vender sua alma ao Diabo,
coisa que há muito ela desejava fazer,
e de bom grado os versos renegariam o próprio pai,
ou ainda - o que é bem mais grave -
a bela e sonhadora mãe,
para que pudessem se apresentar
no salão abrilhantado de um livro
impresso em papel especial,
e que receberia ainda mais a iluminação
dos holofotes de olhares requintados?

Temo que sim,
tenho quase certeza disso,
porque outro dia o ouvi dizer,
todo pomposo,
que "A Arte é maior do que o homem",
no único dia em que é aceito
à mesa de poetas oficiais,
num desses "Dia da Poesia"(!) que inventam por aí,
quando os poetas oficiais e os políticos
- que são talvez uma coisa só -
têm certeza de que,
além de serem sábios, bons e importantes,
são quase santos
porque promovem "a inclusão social pela Poesia"...

Na lata de lixo cabe muita coisa,
incluisive gente,
que o lixeiro um dia encontrou
um bebê na lata de lixo,
e esse poema foi realmente salvo;
como também acredito que foram igualmente salvos
(de quê não sei, mas enfim, foram salvos)
os infelizes e inúmeros fetos
que o mesmo poeta encontrou na lata de lixo,
e nessa lata poderia entrar o próprio lixeiro,
se não inteiro pelo menos partes dele,
porque o fato de alguém ser poeta e lixeiro
não o torna perfeito:
o lixeiro poeta é só um homem
como eu e você, leitor.

E o lixeiro poeta imaginava ainda,
e disso tenho certeza,
que a poesia que existe na lata de lixo
não precisa ser assim tão concreta
- se bem que muitos poemas concretos
parece que foram feitos de propósito
para a lata de lixo -
e que poderia haver muita poesia também
nas flores tão vermelhas
que uma ingrata recebera à noite
e já na manhã seguinte jaziam,
com bilhete apaixonado e tudo,
na lata de lixo.
No jantar saboroso que uma boa mãe
fez com tanto carinho,
e o maluco do filho mimado nem tocou,
saboroso jantar que tantas vezes ainda
iria parar na lata de lixo.
No bilhete terrível de despedida
de um quase suicida
que se arrependeu no último instante.
No bilhete mais terrível ainda
daquele suicida efetivo, bilhete que ninguém
teve qa delicadeza de guardar.
E sobretudo nos rascunhos iniciais
de alguém - de qualquer idade -
que acabou de aprender a escrever.

E imaginava ainda,
aquele lixeiro que era poeta,
que toda lata de lixo é um poema,
e que algumas são melhores até
que certos poemas oficiais,
ainda que perfumados;
e quando radicalizava na imaginação
- decerto com cachaça ou algo mais forte -
o lixeiro imaginava
que o poema da lata de lixo
poderia até ser melhor que
- Deus me livre! - certos livros.

Cá do meu lado
imagino
- Sim, eu também costumo imaginar -
que aquele lixeiro que era poeta
e que decerto ainda o é,
porque deve ser difícil alguém deixar
de ser poeta tendo sido
(Ou não, confesso que não sei
direito dessa coisas)
imagino, pois bem,
o que o romântico mas presunçoso lixeiro
iria pensar desse pretenso poema
tão desajeitado,
tão gauche na vida da poesia direita.

Imagino
que diria "Haja lata!" ou saco de lixo.
Eu pessoalmente prefiro o saquinho à lata,
deve ser porque moro em apartamento.
Os lixeiros gostam mais da lata,
deve ser porque é mais fácil pra eles
carregarem.

E assim aquele lixeiro
segue seu caminho
imaginando.
Nem morreu,
nem ficou rioco ou famoso,
nem deixou
de ser lixeiro. nem poeta.

Eu se tivesse a grandeza
de um lixeiro poeta
que sonha
resgatar os versos perdidos
porque os julga infelizes
sem uma leitora,
imaginaria
então um pequeno poema
sobre versos e vírus.

Versos e vírus são
parasitas obrigatórios.
Os vírus, da célula;
os versos, da senhora.

Todo verso é um vírus.

Agora eese poema aí
eu não escrevi,
só imaginei.

Tava com preguiça.

Foi só mais um pequeno poema imaginário.


Antônio Adriano de Medeiros
mar - 2011

Outras penas


NO BICO DE OUTRAS PENAS

Sem poema. Só pena
e papel. Tão grande a pena,
Tão triste o papel!

Feliz é o beija-flor
que faz poesia sem palavras.


Antônio Adriano de Medeiros
mar 2011