quinta-feira, 26 de maio de 2011

um poema à Bela Jovem


Pois bem, a Fonte da Poesia mora em todos nós, mas às vezes precisamos usar a chave pra desencantar.

Agora que Aqueles Dois se foram, meu pai e minha mãe, dois velhos sertanejos, a gente fica pensando um pouco no sentido de todas as coisas, e na herança que eles deixaram.

Uma coisa que estranhava em meus pais era a religiosidade que eu julgava exagerada na adolescência e juventude, e gostava de espiar um e a outra rezando antes de dormir; o homem rezava de joelhos ao lado da cama por cerca de uma hora; a mulher, sentada na cama, por mais ou menos o mesmo período de tempo.

Eu nunca consegui entender direito o que els sentiam; talvez. Por isso espiava, desconfiado.

O Sagrado para mim passa pela Poesia, deve ser a fonte da verdadeira Poesia. E assim, acredito que Aqueles Dois, nem que fosse inconscientemente, talvez tenham me transmitido - e a quem mais pode ver - a verdade sobre a minha, a nossa origem - Os Dois eram primos distantes - nesses vai e vem da Vida e da História dos homens, quando nossos ancestrais foram levados de Portugal para o sertão do Nordeste, alguns séculos atrás.

AAM


UM POEMA À BELA JOVEM

Aquele que te conhece verdadeiramente,
Ó Bela Jovem
tão rica na antiquíssima sabedoria
que nos legaram mestres ancestrais,
não pode deixar de te amar
com o profundo respeito
que se deve ter por aquilo que é
verdadeiramente sagrado.

Assim sendo, com humildade agradeço
até pelo silêncio
que me ensinaste a guardar
quando estiver mergulhado na Noite Escura da Alma,
porque hoje sei - Tu me ensinaste, Bela Jovem -
que a fagulha da Perfeição que também há em mim
às vezes necessita lutar contra si mesma
na Guerra Santa que devemos travar
lapidando a pedra bruta
para que enfim possa surgir a jóia rara
do esplendor da Palavra.

É tão longa a nossa caminhada,
Bela Jovem,
e às vezes nos separamos contra a nossa vontade,
mas basta um simples olhar
em teus secretos encantos
para que de novo a Chama se acenda
e comece a lapidar a pedra,
e do secreto e poderoso sonho de concluir a construção
não podemos mais fugir,
e desejar acabá-la.

Sim, hoje bem sei
que a Bela Jovem é a ... - Terá
ainda o leitor algum dúvida
em sua alma de criatura fria
de que a Bela Jovem
é a Fonte da mais pura Poesia?

Ò dadivosa Fonte de Poesia inesgotável,
bem sei que, apesar dos mal entendidos,
dos contratempos, das intrigas
e até mesmo das verdadeiras guerras
que se travam quando outros livros de poesia surgem,
tanto os de verdadeiro valor como os de falso testamento,
em teu íntimo, Bela e Sábia Jovem,
tu sorris de contentamento
- Triste da bela jovem que não sabe sorrir! -
porque assim é a Matriz que sempre fulge
no esplendor da Rosa de Fogo.

Antônio Adriano de Medeiros

sábado, 21 de maio de 2011

um romance com barbeiros




Na tenra juventude, naquela tarde em que escrevi o poema Inércia e fiz um Pacto com a Poesia, época do Regime Militar, em 1984, por aí, imaginei, e até cheguei a escrever o primeiro capítulo de um romance intitulado "Barbeiros!", em que já pretendia dissecar os vários sentidos da palavra "barbeiros" no português falado no Brasil. É que tal palavra tem muitos significados em nossa Língua: profissional que faz a barba dos outros; inseto transmissor da Doença de Chagas; pessoa que não sabe dirigir direito; incompetente de modo geral; e outros mais. Interessante que foi graças aos médicos, aos médicos-cirugiões, que os "cirurgiões-barbeiros", quer dizer os barbeiros propriamente ditos. tornaram-se "incompetentes" na técnica cirúrgica mais refinada, e daí a palavra passou a designar incompetentes, ou inábeis.

O grito de "Barbeiros!" se dirigiria a um púiblico mais amplo, aos próprios brasileiros de modo geral que viviam sob uma ditadura e não reagiram quando a emenda das Diretas Já foi derrotada no Congresso, além de a alguns médicos (seria a vingança dos barbeiros) dos quais eu não gostava naqueles bons tempos de estudante. Ora, já com tantos siginificados, barbeiros e brasileiros eram palavras tão parecidas que poderiam ser sinônimas...

Seria a história de um filho de barbeiro do interior que fora estudar Medicina (queria ser cirurgião, outro setido da palavra) porém, decidido a reavaliar sua decisão no terceiro ano do curso decidiu fazer uma pausa nos estudos para dirigir melhor sua vida (mais um sentido da palavra - barbeiros não dirigem bem), e ao contar a história ao pai, o velho se enforcou "naquela noite escura e fria". A decisão de Francisco Firmino Filho (era esse o nome do jovem) fora motivada por uma aula sobre a Doença de Chagas. Ele cismara, por motivos existenciais dele lá, que "os brasileiros são todos barbeiros", e fora dar um tempo em sua vida, recomeçar como barbeiro no interior aprendendo primeiro a arte se seu pai para - assim ele julgava necessário - só depois aprender a "a arte dos outros".

A Tempestade anti-médica foi despertada em mim pelo sub-coordenador do curso na UFPB, um desses médicos meio-aviadados meio-intelectuais-de-esquerda modernosos, fumante de cachimbo, que de tudo querem saber e resolveu me separar de minha turma original e me matricular numa turma de repetentes e transferidos de outros cursos que só tinha quatro alunos; o filho-da-puta, que era uma criatura hilária, ainda primeiro disse que na turma original não tinha mais vaga mas acabou matriculando um filho de professor na minha cara e na frente da turma toda (era bullying puro!), e afinal afirmou ali na frente de todos que eu tinha que "romper o cordão umbilical!"

Interessante que tempos depois, há uns quatro anos, encontrei outro verme médico com o mesmo biotipo, um infectologista que queria me ensinar psiquiatria, e tudo fez para me afastar do trabalho com ajuda de vermes menores.

Desde o primeiro poema gostaria de chamar a atenção do eventual leitor (sempre há uma alma gentil a esse ponto!) de que pretendo, em alguns versos, dar outro sentido às palavras e frases, juntando as letras ou deprezando-se a pontuação, e criar outro sentido para as palavras: por exemplo em "No coração, trazem a Peste" julgo que se poderia tirar a vírgula e falar da predisposição para o Mal que existe em alguns seres que "no coração trazem a Peste"; outro exemplo, se me permite o leitor tomar ainda mais seu tempo com tolas divagações, pode-se ter em "Trepam nos sonhos e cruzes", onde se poderia ler aí, escondido, o nome do protozoário causador da Doença de Chagas, o Trypanosoma cruzi; assim sendo, o próprio poema se torna um barbeiro, pois carrega em si, escondida, a semente de algo, só que essa doença seria outra, quem sabe até poesia. Precisei, quando escrevia o primieio da série de poemas, criar uma palavra nova, pois ela pediu pra existir: foi o verbo "sanguessugam".

Pois bem, dado o pontapé inicial à aventura de procurar dissecar a palavra "barbeiros" em seus significados, doravante, deixo a critério de quem lê encontrá-los, se é que os há, naturalmente.

No sétimo poema do Poema Barbeiros!, a epígrafe é de Belchior na canção "Apenas um rapaz latinoamericano".


abs, aam




BARBEIROS!



I



São bichos.
São pequenos.
São insetos.

– Barbeiros!

Falsamente belos.
Coloridos até,
Portam o Mal – Sanguessugam -
Engendram a Morte.

Abrem chagas no corpo,
No coração; trazem a Peste
Para as cidades e os campos.

Barbeiros

Se escondem nas frestas
Nas paredes, nos telhados.
Trepam nos sonhos e cruzes
Engendram, e Chagas.


II


Eles têm um carro,
Eles têm o poder.

Não há a cor do
Sinal, nunca
É vermelho, sempre
Verde, muito verde para eles.

Eu amarelo
E nunca grito

– Barbeiros!

Porque costumam usar outras armas
Além da buzina e do próprio
Carro – medalha olímpica
que precisam mostrar a todos!

Eles podem tudo.
O tráfego é deles,
O trânsito é deles,
A rua é deles,
A lua é deles,
O carro é deles,
O cargo é deles.

– Um motorista é uma autoridade, e ai
Daqueles que não o respeitarem!
Porque não é mais chique
Morrer na contramão atrapalhando o tráfego.


III


A pá lavra
A terra
E semente cultura.

Os frutos são outras palavras.

Palavra que palavras
Desta lavra
Estão além da Língua,
Porque fogem às normas
Ditadas.

Larvas de um verso diverso, pá!

Existem, mas noutro
Lugar. Onde?
– Procura!

Se o poeta é barbeiro,
Desobedece aos sinais da norma,
Curta
O neoverso: neologismo é pouco!

Não vê sentido?
Não fique sentido,
Não vá discutir, nem brigar,
Ser contra a mão
Que organiza (?) o tráfego.

– Só ria dessa loucura
Que nem nova
Talvez seja.

A barbeiragem também é
Uma forma de cegueira.

Melhor evitar
Confusão com eles...

Vamos devagar!

– O bar beiro?
Sim, moro perto,
Mas não
Fui lá ontem.


IV

Seria outro paradoxo do barbeiro
Ser antigo e atual
A um só tempo,
Mas não: é possível!

Em sua origem
Há gene
E higiene.

Face a seu espelho
A face
Animal a lâmina
Inverte
Em outra face,
E o que era
Símil ao símio
Se torna de novo
Um homem.

O rosto sem pelo
É um apelo ao belo,
E o belo
E feminino.

Seria por que
O rosto feminino
Se parece com
O de uma criança?

Foi o barbeiro que começou
A lapidar o homem.

Há um jardim
Em cada face,
E em cada uma faz-se
Necessário
Cuidados dia a dia.

É preciso crescer
Sem perder
A criança jamais.

Assim no rosto
Como no gesto
É preciso ter fé, menino!


V


Há um sacrifício
Na barbearia.

O procedimento é cirúrgico.

Uma navalha corta
Um corpo, imola
Pedaços de
Um homem; já não
Há sangue
Ou dor vermelha.

É sublime a ação.
Há muito
Ficaram no tempo
O cruel espetáculo,
O cruento,
E a Morte.

O ritual celebra
E previne.

Os peludos
Primatas,
Os terríveis barbudos,
Estão sob controle,
Mas não se pode
Esquecer
De louvar os deuses.

Um sacrifício
Acalma deuses
E animais.

São barbeiros
Modestos sacerdotes.


VI


De santo barbeiro
Nunca ouvi falar!

Embora barba
Ainda cresça no defunto,
Almas decerto não
Precisam
Fazer a barba.

Ao menos as boas almas,
Aquelas que subiram,
Já são perfeitas,
Não mais temem
O retorno das coisas
Primitivas. Aquelas malditas
Que desceram
Ao Báratro
Profundo, não sei,
Talvez exista um
Barbeiro dos diabos.

Mas santo houvesse
Um entre barbeiros
Decerto não seria o santo
Um qualquer: na hierarquia
Tal posto, tal mérito,
Tal tributo, tal honraria
Caberia
Ao barbeiro mais bem situado
Na escala evolutiva
– O nobre Cirurgião!

Uma navalha nunca
Entraria no Céu;
Um bisturi, sim.

Ora, porque também
Dificilmente
Se encontraria
Entre cabeleireiros
Um santo.

Ou uma santa.


VII

“Palavras são navalhas”


Na verdade eu já havia
Escrito o Sete,
Mas como resolvi esperar três dias,
O Poema morreu
E ressuscitou de uma forma maior.

Foi preciso ajuda pra concluir
Esses estudos que faço
Com os barbeiros.

Precisei ir procurar
O Outro.

Não.
Não foi um guru.
Desculpem, mas também não
Foi Deus – pelo menos o oficial.
Sequer fora o Diabo,
Diga-se de passagem
Ao leitor barbeiro
(Que sempre os há, perigosos...)

O Outro que procurei
Já estava dentro de mim mesmo.

Não é uma simples questão
De fé, mas de
Querer, poder e saber procurar.
E de respeitar
O Tempo.

Alguns barbeiros mataram
Um dos primeiros homens por isso.

– Pelo menos deixaram
Ele beber uma cicutazinha...

É assim.
O Outro começa a falar.
E não só
Escuto a Voz, como também
De alguma forma respondo
Porque acredito nela.
Mas não falo sozinho.
Não é preciso,
Porque é muito preciso:
Ela está dentro de mim mesmo!

– Cuidado com a Polícia da Razão!...

Sim, aqueles outros barbeiros são
Sempre perigosos,
Mas não têm poder nenhum
Sobre esse Reino, o da Poesia.

– O primeiro refúgio do Homem é a Arte?

Sem dúvida!
Nem dívida...
Não duvide: depois vêm
Os religiosos, os filósofos ou os cientistas
Explicar. Porque
Os barbeiros precisam de uma explicação.

Há uma metáfora
Na barbearia.

A metáfora da evolução do próprio homem.

Quem tem olhos pode ver.

A recusa em ser primitivo.
O engenho da navalha.
O desejo por Higiene e Estética.
O desenvolvimento da Técnica.
A especialização do Trabalho
A cotidiana dedicação a uma atividade útil.

Uma mesma palavra
Designa insetos e homens.
Incompetentes e sábios.
Abnegados modestos
E benfeitores da humanidade.

Mas não nos esqueçamos
de que uma mesma palavra
designa
homens que tratam
e insetos que transmitem
a doença.

– Há outra metáfora
Na barbearia?

Sim: assim talvez
Seja a própria Vida: cada um
Dispõe das mesmas palavras.
E cabe fazer uso delas
Como o barbeiro usa
A sua navalha.

A navalha pode ser
Uma arma para destruir a vida,
Ou um instrumento
Para torná-la melhor
E mais bela.

O Mal está adormecido
No homem.
Não devemos usar
As palavras, as navalhas,
Para despertá-lo,
Mas sim para tornar
Seu sono ainda mais
Profundo.

É isto que nos ensinam
Os Barbeiros.

Há que se falar também
Da humildade
E da perseverança
Dos Barbeiros.
Não obstante o epíteto desairoso
Que ganharam
Dos cirurgiões,
Eles perseveraram em sua lide.

– E agora, vais deixar os barbeiros?

Sim e não.
Vou deixar os barbeiros em paz
Por enquanto,
Que da presente obra
Já chegou o tempo de
Acabá-la.
Mas não posso mais deixar
Definitivamente
Os barbeiros.

Fui infectado
– Chagas de Cristo! –
Pelos barbeiros.
Sou um barbeiro.
Tenho muito ainda que aprender
Com esses modestos
E perseverantes mestres
Que são os Barbeiros.


Antônio Adriano de Medeiros
João Pessoa, 29 de janeiro de 2010.


BÔNUS DE BARBEIRO


AFASIAS DE BARBEIRO


Emaranhado de palavras,
rosto indecifrado ainda.
Bárbaro. A quem desejo
fazer a barba.

Não sei que ar fazia
na barbearia.

- Por mais que afine
o fio de minha navalha,
eu não encontro
um só verso que me valha.

Antônio Adriano de Medeiros


BARBEIROS – OS INSETOS!

Nas trevas da noite,
nas frestas escuras,
pequenos monstros
sanguinários,
barbeiros
ocultos se arrastam
em busca do néctar
vermelho.

Mal o sugam, sujam-no,
pois são distraídos – outros vermes
menores e mais nocivos
plantaram em seus dejetos
estranhas sementes
cujas flores
são Chagas.

São concretas
as flores do mal
no que toca a barbeiros e vermes.

Porque assim são os vermes:
estripam-nos os sonhos
em cruzes!


Antônio Adriano de Medeiros


meu primeiro poema


Bom, escrevi naturalmente as baboseiras de infãncia e adolescência, os poemas de amor platônico... Tinha um primo que, pretensioso, queria escrever melhor do que eu (!), e às vezes disputávamos num poema chistoso, também. E ainda, numa paixão arrassadora que tive dos 17 pros 18 anos, escrevi um soneto que comparava o amor a um cãncer cerebral. Mas meu primeiro poema de verdade, poema existencial em que, ao escrevê-lo, eu conscientemente tentava construir um poeta em mim, foi esse a seguir, a um só tempoe simples e complexo.

Naquela tarde eu, que estava no quarto ano de Medicina e cursava também a Alliance Française lá em João Pessoa, que ainda era ali na Lagoa, decidi descer (morava num apartamento duplex, o velho Passárgada) para estudar francês, e não as coisas da semiologia médica, da farmacologia, da fisiopatologia, nem da anatomia patológica. Acredito que naquela tarde realemnet comecei a aprender a Língua Francesa, porque senti grande liberdade, muitas idéias surgiram, eu aprendia muito fácil. Tão fácil que notei que podia criar algo, e surgiram a um só tempo um pequeno poema e a idéia de um romance, um livro em prosa! Do livro tratarei mais tarde.

Tivera há pouco minha primeira decepção com a Medicina. Leia-se, com os médicos, que a Medicina em si não decepciona ninguém. Um professorzinho quis me enquadrar numa fôrma, quis me ensinar algo à força e contra a minha vontade, e eu até pensara em desistir do curso e ir ser comerciante com meu pai no sertão, e isso tudo saiu tanto no poema como na ideia do romance. Chamei ao poema de Inércia, espécie de preguiça natural que a matéria tende até sofrere a ação de um movimento, "A inércia refere-se à resistência que um corpo oferece à alteração do seu estado de repouso ou de movimento" (wikipédia). Na Inércia há um Pacto: ali eu decidira me entregar à Poesia, e aceitaria de bom grado o que resultasse da entrega: Poesia mesmo; Loucura; ou a Morte. Mas, fosse qual fosse o resultado, procuraria manter as aparências, não me tornaria um "poeta vibrador", assim como jamais seria um "médico vibrador". Continuaria sendo o sertenejo que sempre fui.


aam



INÉRCIA

Por que me reprimir?
Por que me controlar?

Deixo-me ir.

Quero ver para onde é que vou,
quero ver onde é que vou parar.

Em poesia,
sanatório
ou flor?

Sem alegria.



Antônio Adriano de Medeiros

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O dia em que Jesus tomou cachaça com o Cão


Talvez seja este, de todos os cordéis que escrevi, aquele de que mais gostei. Não só pelo inusitado de se colocar Jesus e Satanás frente a frente tomando cachaça, mas pelas situações que surgem, pelos diálogos, as ironias, provocações, os ensinamentos que Os Dois Mestres aí me (nos) deram. Câmara Cascudo diz em "Vaqueiros e Cantadores" que o cordel de valor tem que ser descritivo com a cena ao redor, ser rico em detalhes e pormenores com relação à cena em si, não apenas a descrição geográfica, mas os motivos da eventual peleja, a assistência, quem sabe até as vestes dos protagonistas, penso eu. No cordel a seguir o mais difícl foi convencer os dois antípodas da Fé Cristã a sentarem, mesmo saber onde se passaria a peleja do Diabo com o Filho do Dono do Céu. Optei que seria no Céu, durante uma reforma que o Bom Lugar teria sofrido quando foi necessário abrigar as almas dos velhos comunistas que tiveram direito ao Céu após a Queda do Muro de Berlim. Assim, durante uma inspeção que realiza nos subúrbios do Paraíso, numa espécie de Favela do Céu (cabe dizer que os favelados também vão para lá e alguns, orgulhosos como o comunistas, preferem continuar morando em barracos, e não nas assim chamadas mansões celestiais), encontra o Diabo sentado numa mesa a beber sua cachaça. Decerto Bom Jesus bem sabe que poderia instruir a Polícia Celeste (Arcanjo Miguel e seu Batalhão, reforçado pro São Sebastião e tantos outros santos de armas) para policiar as favelas de lá, mas creio que não o faz para não constranger as boas almas dos ex-favelados da Terra. Na primeira estrofe, notar a grande apreensão que houve no Céu, não apenas pelo fato de Jesus ter ido tomar cachaça com o Diabo, mas também com o fato de o Pai ter dado um carão em Maria, ter feito uma reprimenda a Ela em voz alta. Afinal, não se sabe de outra ocasião em que Pai e Mãe discutiram na harmonia das hostes celestiais.

O Diabo, que já havia tentado a Jesus ainda na Terra, alude àquela Primeira Tentação quando O chama pra tomar cana (beber cachaça), mais ou menos querendo dizer - "Vai correr como da outra vez?", mas Jesus agora não é mais um simples mortal, e cede ao convite do Tinhoso só para lhe (nos?) dar uma lição, a de que é imune ao Mal. Vale ressalvar que, embora Jesus vá a favela beber com o Diabo, que parece ser uma espécie de traficante do Céu pois levava cachaça feita no Inferno para lá (no Céu só se bebe vinho), ele lança um olhar de censura aos presentes quando senta à Mesa do Diabo; ou seja, embora Jesus não mande a Polícia do Céu às favelas do Paraíso, Ele não gosta da libertinagem que ali ainda reina. Notar ainda que Jesus chama duas das almas presentes para que também bebam, com o intuito de que os presentes percebam logo as alterações que a Cachaça do Diabo provoca neles: um se mostra logo abobalhado, tomado de uma alegria tola, julgando que todos são bonzinhos, sem crítica alguma da situação; já o outro, digo, a outra alma, se mostra subitamente raivoso, logo quer brigar com Jesus pelo fato de Ele ter censurado o Diabo, que levara aquela relíquia (no ver da alma afetada) para o Céu.

E mais não direi da poesia, se bem que muitas provocações ainda o astutíssimo Diabo aprontará ali, até ser mais uma vez expulso do Céu.
Finalmente, cabe mais uma menção a Câmara Cascudo: reza a lenda que ele, Cascudo, que teria se formado em Medicina (mas nunca teria exercido) e era bem relacionado com os grandes poetas da época (teria morado grande parte de sua vida no Rio de Janeiro), - Nota: a respeito, ver comentári o do amigo natalense Oswaldo Ribeiro Filho, após o poema - queria tratar mais de sonetos e poesia estrangeira com outros poetas, e que foi Mário de Andrade quem um dia o inquiriu: - "Por que você não escreve sobre as coisas de sua terra?" Foi então que o Mestre se revelou, quando percebeu que a cultura popular também tinha seu valor. Por isso dediquei este cordel ao poeta português Nuno Dempster: foi ele quem, na passagem do milênio, mais me estimulou a escrever cordéis, e ainda teve a gentileza de prefaciar o Zoológico Fantástico, onde repousa o cordel da Cachaça do Cão.
AAM

UMA CACHAÇA DE JESUS COM SATANÁS


Para Nuno Dempster



No dia em que Jesus Cristo
tomou cana com o Cão,
o céu quase vem abaixo
de tanta apreensão:
Pai mandou chamar Maria
para lhe dar um carão.

"Terá perdido a razão?"
- disse-lhe o Pai, irritado -
"Como é que nosso filho,
um rapaz tão bem criado,
foi logo beber cachaça
com o Anjo Desgraçado?"

"Ó Pai, não fique zangado!"
- responde a Santa Maria -
"Decerto o Nosso Menino
agiu com sabedoria:
quem sabe se tal encontro
não vai findar em poesia?"

Na manhã daquele dia
Jesus fora averiguar
a construção de umas casas
no estilo popular,
pras almas dos esquerdistas
que acabavam de chegar.

Pois Ele ouvira falar
que alguns intelectuais
que lá no céu adentraram
julgando-se simples mortais,
viram nas mansões eternas
mordomia por demais,

e que logo foram atrás
de mudar de residência,
dizendo que casa grande
lhes parecia indecência:
quando contaram ao Pai,
Ele tomou providência.

No Lar da Onipotência
há riqueza em abundância:
a felicidade ali
se compara à da infância;
querer viver como pobre
lá parece ignorância.

Mas diante da inconstância
da fé de intelectuais,
o Bom Jesus resolveu
atender aos seus ais
com medo que eles corressem
aos braços de Satanás.

Porém desejavam mais
os radicais de esquerda:
saudosos de suas vidas,
protestaram contra a perda
da vida que há no subúrbio,
quintais com cheiro de merda.

Alma que vai pro céu herda
o direito de escolher
a forma como prefere
a eternidade viver,
por isso mandou Deus Pai
um condomínio fazer.

Jesus pois foi conhecer
os subúrbios da cidade
onde moram as almas puras
livres da iniqüidade;
mas os limites do céu
têm fronteiras com a maldade...

Bom Jesus tem liberdade
de em qualquer casa entrar.
Sendo assim, no paraíso,
ninguém deu de estranhar
ao ver o Seu semblante
surgir naquele lugar.

Quando o céu encontra o mar
há vilas de pescadores
onde o Cão costuma andar
a propagar seus rumores:
ele gosta de tentar
almas de ex-pecadores...

Dona Maria das Dores
deixou o copo cair
na hora em que Jesus Cristo
em seu umbral viu surgir;
mas, com a boca enfarofada,
disse: - "Que bom vê-Lo aqui!"

- "Eu louvo a todas daí,
almas santas e honradas!",
- Foi dizendo o Bom Jesus
palavras iluminadas,
mas lá de trás se ouviu:
- "Nem todas são as louvadas!"

Quem do Diabo ouviu cantadas
pode agora estremecer,
pois estavam frente a frente
o Mestre do Bom Saber,
e aquele vil pilantra
que o nome não vou dizer.

- "Jesus de mim vai correr,
ou senta a tomar um trago?
Acaso esteja sem grana,
pode sentar que lhe pago!
Até mesmo adversários
podem trocar um afago..."

Naquele clima aziago
Bom Jesus falou assim:
- "Não costumo, Anjo Caído,
conversar com gente ruim,
e só bebo se for vinho
na Ceia de Eloim."

- "Oh, não desfaça de mim
só por em Seu Reino estar:
respeite o lar de uma alma
que soube Lhe respeitar
durante a vida na Terra
e logrou o céu ganhar.

Quando o Senhor entrou cá
eu já estava sentado,
e do dono desta casa
portanto sou convidado:
retire-Se, ou Se comporte
qual homem bem educado!"

- "Devo dizer obrigado
por tua nobre lição?
Sei que só moram no Céu
almas de bom coração,
mas conheço tua astúcia,
incorrigível Tição!

O Mestre da Traição
fala com sinceridade?
O Eterno Inimigo
semeando uma amizade?
Cheio de boa intenção
o velho Rei da Maldade..."

- "Meu Deus, tenha piedade...
Isso é coisa muito antiga!
Vocês hoje é que alimentam
intolerância e intriga:
há muito que Os procuro
para uma conversa amiga.

Não precisa fazer figa
para sentar ao meu lado:
converse um pouco comigo,
tem medo de mau-olhado?
Só um copo de cachaça
vai deixá-Lo embriagado?"

- "Vou aceitar, descarado,
para que fiquem sabendo
quem realmente tu és
e o que estás pretendendo:
conheço a mercadoria
que aqui estás vendendo!

Mas não penses que me rendo
à tua falsa amizade;
tua liberdade, Lúcifer,
é escravidão na verdade.
E quem trouxe a tal cachaça
para beber na cidade?"

- "Digo com sinceridade,
- verdade é coisa que tenho! -
Esta cachaça foi feita
lá mesmo no meu engenho:
sempre trago umas garrafas
quando no Céu me embrenho."

Bom Jesus franziu o cenho
quando à mesa sentou,
e uma olhada inquiridora
aos circundantes mandou;
todos ali perceberam
que Ele os censurou.

E então Jesus chamou
para a mesa do Tição
dois dos que ali estavam,
para uma demonstração
de como reagiriam
quando provassem a poção.

E disse, com emoção:
- "Aqui todos têm, de graça,
um vinho de qualidade
que a ninguém embaraça,
mas vamos beber da cana
para ver quem se desgraça!"

Logo o Cão diz, por pirraça:
- "Vejo que o Senhor mudou:
Lembro que O tentei há tempos
mas que Você recusou;
se hoje aceita a oferta,
decerto Se enganou..."

O Bom Jesus retrucou:
- "Eu lembro que, no deserto,
jejuei quarenta dias
quando estavas por perto,
e naquela ocasião
o meu agir foi o certo.

Mas todos sabem, decerto,
que ao morrer ressuscitei,
e então subi ao céu
e com o Pai me irmanei:
posso provar teus venenos
porque não me sujarei!"

- "Agora entendo, Meu Rei,
a santa sabedoria:
Aqui no céu, certamente,
existe aristocracia:
uma plebe de almas puras
a Corte diferencia..."

Sem ligar pra baixaria
armada por Satanás
tentando uma desavença
entre Ele e os imortais,
Jesus prova da cachaça
e logo diz: - "Quero mais!"

Qual Dimas e Barrabás
a Seu lado no Calvário,
os convidados à mesa
provam a cana do falsário,
e logo um deles já diz,
com uma cara de otário:

- "É digna de um relicário
cachaça tão saborosa!
Confesso: nunca provei
de coisa tão preciosa
em companhia tão nobre;
por isso, estou todo prosa!

Qual beija-flor que à rosa
busca seu néctar vital,
peço ao Nobre Visitante
da Casa Celestial
que me ceda mais um copo
dessa poção infernal!"

Rindo, o Cão diz: - "Afinal
estamos em harmonia!
Este néctar é o segredo
da fruição da alegria,
e agora a meus comensais
declamo minha poesia:

Feliz e doce é o dia
prenhe de felicidade
em que a feitiçaria
da substância verdade
à nossa mente ilumina
com espiritualidade!

Ò doce ebriedade
que acalma o padecer,
trazendo saciedade
ao limitado Ser,
antes de ser só saudade
num futuro apodrecer...

Que em nós faça crescer
o amor à liberdade,
permitindo-nos esquecer
noções de moralidade:
dai-nos, substância fria,
prazer de animalidade!"

Jesus, com seriedade,
dá forte murro na mesa
provocando no recinto
indisfarçável surpresa,
e O escutam dizer:
- "Diabo, Rei da Safadeza,

tua astúcia e sutileza
por Mim já são conhecidas:
os que buscam a liberdade
em tuas muitas bebidas,
em troca se tornarão
eternas almas perdidas!

Eu conheço as feridas
e as seqüelas mentais
que essas poções urdidas
lá nas hostes infernais
trazem a quem prova delas:
mesmo a almas imortais!"

- "Jesus, assim é demais!"
- Era o outro convidado
que até este momento
permanecera calado,
mas depois de duas doses
mostrou-se muito irritado -

"O Senhor tá enganado!
Olhe, não me leve a mal,
mas o Nosso Visitante
mostrou-se um cara legal,
e eu para defendê-lo
posso até sair no pau!"

Naquela hora fatal
houve um deixa pra lá,
e a alma embriagada
levaram pra descansar:
Sabiam que o Bom Jesus
logo a iria perdoar.

E ouviu-se Ele falar:
- "Viu aqui quem tá presente
como o astuto Satanás
corrompe ao puro e inocente,
e fala de podridão
a quem vive eternamente!"

- "Acaso o povo é inocente?"
- viu-se o Diabo retrucar -
"Incapazes vigiados
que nunca podem provar
nada que os possa fazer
de Teu Poder duvidar?"

- "Lúcifer, vou-te expulsar
de novo do Paraíso,
pois queres fazer as almas
perderem o seu juízo,
e chamo a Corte dos Anjos
pra te pegar, se preciso!"

- "Bom Jesus, eu tomei siso
e já vou saindo agora,
porém permita-me mandar,
antes de ir-me embora,
lembranças ao Teu Pai,
e Àquela Bela Senhora...

Acaso não está na hora
de o Teu Pai assumir
logo o Seu Caso com Ela
que todos sabem aqui,
finalmente a São José
deixando de iludir?"

- "Tu agora vais sair
e não mais terás retorno!
Como ousas desafiar
os Mistérios sem adorno,
tratando o bom carpinteiro
como se fosse um corno?

E não mais ao fogo morno
então te condenarei
caso ouses retornar
à terra onde Sou Rei:
se aqui tornares, Lúcifer,
Eu Mesmo o destruirei!"

Nessa hora, ao que sei,
corre o Diabo em debandada.
Jesus voltou ao Castelo
com a noite iniciada,
e durante toda a semana
- se o espírito não me engana =
ouviu-se o Pai dar risada.


Antônio Adriano de Medeiros