sábado, 23 de julho de 2011

canção de ninar


Sim, ainda no que toca a pequenos desamparados, segue um outro poema, que também foi da safra 86-89, e teve uma inspiração real, foi um aborto real do qual soube que me inspirou o poema, um pretenso soneto, só que com versos esdrúxulos. O título, Canção de Ninar do Bebê de Rosemary, é o título também de um filme de terror de Polansky, e também da principal música da trilha sonora. è bem fácil achá-la na Net, Google e Youtube têm a musiquinha.

A palavra "hemoptises", vômitos de sangue, delata o médico recém-formado que escrevu o soneto.

O que gosto desse soneto é extremada humanidade do herói do poema, do abortado, que vendo os doentes sofrendo com sua tísica, tenta consolar aqueles que em breve deixarão essa vida, com a idéia de que tal partida talvez não seja assim tão ruim.

Agora fico pensando: será que por trás da aparente bondade do abortado não tem também um pouco de sadismo, de vingança para com os humanos que não o deixaram viver? Em sendo assim, o tal fetinho seria o Cão!

absaam


LULLABY FROM ROSEMARY'S BABY

Devido a uma das inúmeras crises
pulmonares que acometem-me o ser doente,
estive internado, com terríveis hemoptises,
num velho sanatório onde morreu muita gente.
Localizava-se o antigo prédio na pobre periferia
da cidade, junto a um canal prenhe dos detritos mais imundos;
e, toda noite, de lá chegava à nossa enfermaria
o som de uma canção, a consolar os tistes moribundos.
Era a doce voz de um feto de sete meses, abortado
um dia pela infeliz mamãe, e que cantava bem ritmado.
Contava que seu espírito nutrira-se nos esgotos sujos,
entre amebas, bactérias, muitos vermes e alguns caramujos.
E, à sua boa mãe, ele mostrava-se muitíssimo agradecido
pela graça singular de nunca ter nascido.


Antônio Adriano de Medeiros

sábado, 16 de julho de 2011

meu primeiro soneto

os retirantes - Portinari


Em junho de 1986 eu fiquei o mês inteirinho em Antenor Navarro, hoje São João do Rio do Peixe, no alto sertão da Paraíba, cumprindo o Estágio Rural Integrado, obrigatório aos doutorandos em Medicina pela UFPB, pra que se conheça a realidade da vida do médico no interior do Estado. Pois foi lá que tive, sozinho, uma das mais difíceis experiências de minha vida, o meu primeiro diagnóstico de morte de um paciente. Ficara eu sozinho no hospital, o médico, pessoa muito educada que já fora prefeito da cidade, acho que era "Dr.Benício" o nome dele, me avisou que ia a uma cidade vizinha, fazer uma cirurgia ou outro atendimento qualquer. Aí me chamaram pra atender um paciente, entre outros. Era um menininho de mais de um ano já e a mãe chegou com ele no braço, balançando-o, como a fazê-lo se mexer. A pele estava muito fria, lembro, mas ele parecia estar dormindo, e uma enfermeira foi quem me fez ver a realidade. Foi muito ruim ter que dizer àquela mãe que o seu filho estava morto, era como se fosse eu o responsável por aquela morte, se bem que a criança já chegou morta ao hospital, mas vá dizer isso a um estudante do último ano que acha que vai curar todo mundo... Sei que eu, que levara comigo As Flores do Mal e o Eu, Baudelaire e Augusto dos Anjos para Antenor Navarro, devo àquela cidade o meu primeiro soneto, escrito naquela noite. Há um verso de Augusto dos Anjos em "Queixas Noturnas" assim: "o coração do poeta é um hospital onde morreram onde morreram todos os doentes"; eu não conseguia deixar de pensar naqueles versos, que se eu me tornasse médico, seria tão incompetente que todos os pacientes de meu hospital morreriam... O soneto é tipicamente de gente de Medicina, com termos como "longilíneo" e "membros inferiores", e o sonho de que a enfermaira é um lugar sagrado, mas já tem uma idéia interessante, metáforas, e uma ironia bem aguda. O segundo quarteto quer dar a idéia de que os leitos da enfermaria estão ocupadois por cadáveres.

Interessanet que meus colegas estudantes e mesmo residentes em psiquiatria da UFPB a quem mostrei o soneto diziam sempre algo tipo "O esquizofrênico também escreve coisas interessantes..." Eles tinham apenas (alguma) cultura médica, se é que se pode dizer isso diante da gentileza com que recebiam o neófito sonhador.

Bom, o título do poema, "de agnóstico", pode ser visto de muitas maneiras: é um diagnóstico de algumém que não acreditava nem na seu próprio sacerdócio, um agnóstico de si mesmo também, como veremos ao lermos o soneto.

Enfim, devo dizer que Caicó, uma cidade do Rio Grande do Norte, me aceitou como diretor-médico de um hospital lá em 1990, e só mais de dois anos depois, uma paciente assistida por outro médico, veio a a falecer.

O mais é poesia.

absaam



DE AGNÓSTICO

às noites queixosas de Augusto

Não fora a Peste. O que teria sido?
Por que havia cadáveres demais no necrotério?
Mesmo o gripado tinha falecido...
No outro dia muita gente foi chorar no cemitério.
Nos poucos leitos ocupados de uma enfermaria
- lugar onde sempre deve haver uma esperança! -
repousava apenas uma dor tão fria
que gelava os ossos de toda a vizinhança.
Todos os pacientes do hospital estavam mortos!
O último a morrer, um velho rouco
- longilíneo e de membros inferiores tortos -
gritou. Um grito abafado por um compromisso ético.
Ele falava de um assassino louco...
E esse maníaco, soube-se depois, era o próprio médico.


Antônio Adriano de Medeiros

quarta-feira, 13 de julho de 2011

palimpsestos


O gentil leitor, a encantadora leitora já o sabem, mas podem ter esquecido que palimpsesto (do grego que significaria "riscar de novo") designa um velho pergaminho, ou papiro, que teve seu texto original apagado para permitir que se escrevesse outro texto por cima. Ás vezes é possível resgatar o texto original.

Nesses dois pretensos poemas a ideía de palimpsesto é diferente: permitem uma releitura do que foi dito a princípio. No primeiro, realmente chamado "palimpsestos", a releitura é o próprio criador, poeta, quem a faz: ele vai se civilizando. Já o segundo poema, "a bem soar", é um palimpesesto pela sonoridade, ou pela forma de se escrever as palavras, ou ainda pela pontuação. É possível uma releitura de cada verso e de todo o poema, desde o título, e as palavras dirão outra coisa que não o que está escrito, ás vezes só com a sonoridade, outras tirando-se acentos, ou ainda tirando-se a pontuação do poema e se reagrupando as letras.

De uns tempos para cá tenho procurado seguir a idéia de que a poesia existe para embelezar a vida; e é essa a ideía de A bem soar; mas, bonzinhos e boazinhas, não se animem: confesso que não quero afastar-me da maldição jamais.

PALIMPSESTO

Te multo no túmulo.
Tiro de miséria e corda.
Pá limpa incesto.

Tumulto no túmulo.
Tiro de misericórdia.
- Pá! - Limpo o incesto.

Tumulto é o cúmulo!
Tiro de mim ser escória.
Palimpsesto.

Antônio Adriano de Medeiros


A BEM SOAR

Não basta um ver só.

Mais é preciso.
Si abrir.
Partir lar.
Unir versos,
som, ar.
Musa e qualidade
Luz e dia.

Mar, ti, rio...
Gozo só!

Antônio Adriano de Medeiros

sábado, 9 de julho de 2011

Das Damas da Noite


Descobri que existem pelo menos quatro plantas com o nome de Dama-da-noite, e todas exalam uma agradável fragrância ao anoitecer, com o intuito de atrair mariposas para sua nutrição. A mais comum em nossas hostes é conhecida também como jasmim-da-noite (Cestrum nocturnum).

Mas Dama da Noite e mariposa também têm significados metafóricos, sendo que quando a mariposa se torna dama da noite, aí surgem outras mariposas para alimentar às damas. Dama da Noite aí, desnecessário dizer, são as "mulheres horizonatalmente disponíveis", termo politicamente correto para as antigas "mulheres de vida livre", senco que aí se trata de uma bela,jovem e rica "menina de programa", que exerce sua arte e ofício por ideologia e prazer.

No poema, a sábia Dama da Noite é também pessoa culta, que leu As Confissões do Impostor Felix JKrull, último livro, inacabado, de Thomas Mann, onde o narrador diz que tais meninas, tais elegantes e sedutoras damas, deveriam ser proibidas de falar, pois que quando falam quebram todo o encanto que as envolvia.

Reenvio porque o poema, - dos que mais amo de minha modesta lavra - ainda não estava em meu blogue. E quem queiser pode ouvir Mariposa, de Adelino Moreira, com Nelson Gonçalves, em http://letras.terra.com.br/nelson-goncalves/47660/

absaam

DAMA DA NOITE

“Presta bem atenção, mariposa...”

Mas por que deveria, amor, lhe abrir a minha alma
se foi meu corpo que lhe interessou?
Pensa que sou uma qualquer?

Não me venha com a tolice de tentar regenerar-me:
sou uma mulher livre
e preciso sobreviver com o que tenho.

E se pensa em me fazer descobrir a razão
por que eu, jovem, rica, bonita e inteligente
venho aqui até você lhe dar o que quer e compra,
saiba que eu já o sei: é porque quero e gosto, querido!

Em minha vida tenho tudo já,
e também gosto muito
disso que fizemos há pouco,
principalmente quando ganho
literalmente algo de valor para fazê-lo.

Ora, e também aprendi que já sou musa de uma fantasia
e que devo falar o mínimo pra não quebrar o encanto.

Por isso lhe digo apenas que sou dama da noite,
flor que só à noite exala seu raro perfume
porque a natureza lhe ensinou
que precisa das mariposas, meu bem.


Antônio Adriano de Medeiros


Letra da musica Mariposa:

Adelino Moreira

Na batida do samba
Foi que eu te conheci
Numa roda de bambas
Que eu jamais te esqueci
Remexendo as cadeiras
Gingando e sambando
Com simplicidade
Até que um dia
Trocaste o meu samba
E a lua do morro
Pela luz da cidade
Segue o teu caminho Mariposa
Já que esta luz te embriaga
Mas nunca te esqueças Mariposa
Que toda a luz se apaga
Presta bem, atenção Mariposa
Neste aviso derradeiro
Antes que a luz da cidade se apague,
Pode cegar-te primeiro

sexta-feira, 8 de julho de 2011

os ossos não traem


Experiência rara a que sempre me esquivei é contemplar os ossos dos entes queridos que se foram, quando de um enterro familiar, onde se abre o túmulo. Esquivei-me até hoje não por temor, mas por um sentimento que não sei definir direito. Eis que agora me deu grande vontade de contemplá-los: é bom saber que eles ainda estão ali. E é como se aqueles ossos me tenham falado esse poema, com a participação de um raro poeta de um morro carioca. absaam



OS OSSOS NÃO TRAEM
"as rosas não falam"
Cartola

Volto, outra vez,
a teu túmulo - Oh, meu coração! -
Os meus olhos teus ossos verão, enfim.

Volto ao jardim
onde um dia - era noite - a chorar
eu deixei meu amor a sonhar sem mim.

Vejo teus ossos... Quanta saudade!
Os ossos não traem:
somos rochas que brilham e que caem
no silêncio da Noite sem fim.

Sei que vou vir
com meus ossos juntar-me aos teus
quando a vida - essa obra de Deus -
ruir.

Antônio Adriano de Medeiros
jul - 2011