terça-feira, 27 de março de 2012

Gênese e fala da Flor



Uma loucura achar que certos homens morrem, e foi no hospício que ouvi a deslavada doidice da morte de Chico Anysio, sexta-feira dia 23 de março de 2012. Já era noite, e de repente, passando numa sala onde uma televisão sintonizada no Jornal da Record passava ininterruptas imagens dos filhos do casamento de Chico Anysio com a Arte - seus personagens - imagens sabidamente da ultra-rival TV Globo, notei que algo de profundamente estranho e grave ocorrera, e perguntei
o quê tinha havido com Chico Anysio.

- Faleceu às catorze horas de hoje!, me disse um prestativo rapaz da recepção do Pronto-socorro.

Automaticamente fiz o Sinal da Cruz. Não só a minha vida teria sido mais pobre e triste, a vida cultural de todo o país teria sido imensamente mais pobre e triste caso aquele homem não tivesse existido. Aqui deixo minha simples homenagem àquele raro exemplar humano, difícil de ser classificado, vez que uns dizem-no humorista, outros ator, outros ainda (sem dúvida!) escritor, e até mesmo pintor... Chico Anysio era uma flor em forma de homem, como atesta a singular imagem de Salomé do Passo Fundo. Dessas raras flores sertanejas que precisam de outros ares para desabrocharem plenamente, flor da cearense Maranguape que desabrochou no Rio de Janeiro.

Sim, agora falemos dessa outra flor, a poesia. Tem um poema novo aí, quase dois. Como todo poema, deve sua existência a muitos outros, e na impossibilidade de nomear a todos - tarefa impossível, porque decerto teria que copiar inclusive romances inteiros - cito dois poemas como bônus, um meu que cita Cartola, e outro do poeta português Jorge de Lima.

absaam



GÊNESE E FALA DA FLOR


Nu princípio era o Nada.

Um vazio infinito.
Nada. Nada. Nada.
O Infinito Nada.
E sabendo-se infinito
o Nada sentiu. Dor.

E do Nada-Dor escorre uma lágrima
e surge uma flor - a Matéria.
Mater Dolorosa, a flor do Mal.
Toda flor vem do Mal, ainda que longínquo.

Como a Mulher.
E o resto é escória.


* * *

Quintessência da Matéria, o que diz a Flor?

Toda flor diz um desejo.
Nunca muda.
Toda flor me olha e parece dizer:

- Fique me olhando!
- Me pegue!
- Venha para mim!
- Entre em mim!
- Venha se perder em mim!
- Venha se achar em mim!
- Deixe eu comer você!

Toda flor é carnívora.
Toda flor quer me comer.
Toda flor é uma boca sagrada.
Toda flor pede um sacrifício.
Toda flor é alma viva.
Toda flor é uma vulva.

A Vida é a fala da Flor.


Antônio Adriano de Medeiros


BÔNUS, SIMPLES




AS ROSAS NÃO FALAM?



“As rosas não falam. Simplesmente
as rosas exalam o perfume
que roubam de ti!”

Cartola



Das plantas o feliz deus é Hades,
porque na partilha o que lhe coube
foram as coisas subterrâneas; ele reina
sobre os mortos, os que renascem
na poesia que as plantas sabem fazer.
Por gostar das flores raptou Perséfone
para que fosse sua rainha, e nunca mais
deixassem de brotar as sementes.
Sabendo que as mulheres são as deusas flores,
me contou das rosas que também exalam
o perfume que um dia inebriou o poeta
de outro morro que não o Olimpo;
mas desmentiu que as rosas não falassem.
E me assegurou que as rosas falam,
e felam, e fiam, e fodem fúlgidas.

Antônio Adriano de Medeiros
Natal, 13.03.03


BÔNUS ESPECIAL


POEMA DO NADADOR

Jorge de Lima

A água é falsa, a água é boa.
Nada, nadador!
A água é mansa, a água é doida,
aqui é fria, ali é morna,
a água é fêmea.
Nada, nadador!
A água sobe, a água desce
a água é mansa. a água é doida.
Nada, nadador!
A água te lambe, a água te abraça,
a água te leva, a água te mata.
Nada, nadador!
Se não, o que restará de ti, nadador?
Nada, nadador!


Jorge de Lima

Poema citado em Introdução à Filosofia,
Marilena Chauí,
Capítulo 3, Universo das Artes

quarta-feira, 21 de março de 2012

poema como uma prece anti-terror


POEMA COMO PRECE ANTI-TERROR

A cada manhã
O Poeta nosso está no céu.
Iluminado é seu nobre canto
que vem a nós. Como um espelho
imitemos sua bondade
aqui na Terra: cedo, com fel,
o Cão nosso de cada dia seja morto!
Protejamos todas as crianças
assim como nós protegemos
os nossos filhos queridos.
Jamais caiamos na vil tentação
que nos leva aos maus homens
que saem executando inocentes nas ruas
ou se auto-imolando em vis explosões
que matam a Poesia e transformam o dia
num triste poema com as vísceras de fora.


Antônio Adriano de Medeiros
21 de março de 2012

terça-feira, 20 de março de 2012

Escritos científico-filosóficos de Nanin - 1


Se até o macaco evolui, o pequeno Nanin não poderia deixar de fugir à Lei de Darwin, e também ele procura evoluir, passando dos Escritos Originais para os Religiosos, e agora para Os Escritos Científico-filosóficos de Nanin, ou pelo menos para O Escrito Científico-filosófico, que por enquanto, pelo que soube através da boa mãe daquele pequeno escritor, existe apenas um único exemplar de tais escritos, este a seguir, que trata precisamente do miado do gato.

Pelo fato de O Menino estar muito próximo das Palavras - essas feiticeiras! - ver-se-á que a suposta filosofia científica de tal escrito se baseia primariamente na expressão verbal (!) dos bichanos, reduzindo-se pois toda a ciência e filosofia de Nanin a um jogo de palavras - pelo menos ao meu modo de ver! - mas isso pode ser apenas inveja de minha parte, pois, em minha auto-análise floydiana, tenho percebido que sinto uma espécie de ciúme do Menino, não sei se por conta da criatividade dele, ou se - por que negá-lo? - pelo fato de a sua muito boa mãe nunca ter-se interessado por meus escritos, preferindo sempre os de Seu Menino.

Bom, feitas as ressalvas, vamos à peça rara...

absaam


REFLEXÕES SOBRE A FALA MUI RUDIMENTAR DOS BICHANOS


Acredito ser de todos sabida a imensa simpatia que nutro pelo cão, e para que o presente estudo seja realmente cietífico-filosófico, necessário se faz que faça tal confissão logo de início, pois que poderá parecer ao leitor desavisado que no presente trabalho sobre a fala mui rudimentar dos ardilosos bichanos domésticos, a figura de seu rival na disputa pelo amor do ser humano - a saber o amado e fidelíssimo cão - será como uma sombra que ao mesmo tempo que estimula o bichano a tentar expressar-se verbalmente, serve como modelo da suposta fala - juntamente com a fala humana - e constitui ainda uma ameaça, sendo para o bichano a figura do cão como um rival amoroso ou fraterno na disputa pela atenção e afeto dos amantes ou pais humanos.

Devo porém dizer que tal estudo está muito baseado não só em minha perspicaz capacidade de observação - Sim, sempre soube-me um superdotado, também intelectualmente falando - mas principalmente em leituras científicas que abarcam desde a vida primitiva de hominídeos e lobos quando morávamos em cavernas e éramos caçadores, passando pelo Egito dos deuses animais, e chegando enfim á literatura moderna, mormente ao célebre folheto de cordel A Briga do Cachorro com o Gato.

Ora, não há como negar que nas relações familiares do Homem com os animais domésticos, a amizade e adoração (aqui no sentido afetuoso) do homem pelo cão é a mais antiga, sendo que o bichano chegou bem depois; enquanto a relação do homem com o cão se confunde com a própria autodomesticação do animal no homem, o bichano - esse aproveitador - só chegou ao nosso lar bem depois, quando já havia em nossa casa o conforto e as meninas mimadas (não à toa chamadas por vezes de "gatinhas"), supõe-se que nos enormes casarões do Egito dos faraós. Assim sendo, enquanto o cão é um verdadeiro companheiro do Homem (prefiro escrever "cão" em minúsculas, para evitar confusão com Aquele Outro, você sabe, né? - Daí que bichano ou gato também vem sempre com minúscula, pois que com aproveitadores a gente não pode vacilar), pois bem, enquanto o queridíssimo cão é um verdadeiro irmão em lutas, vitórias e derrotas, o bichano é um mero falso amigo da época do luxo e do conforto, quando o leite e a carne já abundavam - e eventualmemnte os terríveis ratos, que trouxeram-nos também uma outra Peste, além daquela dos bichanos.

Embora não se possa compará-lo a mim em inteligência e aguda capacidade de observação, o filósofo alemão Frederico Nietzsche merece o nosso respeito, pois que ele bem sabia da verdadeira natureza dos bichanos, comparando-os à mulher, "predadores na pele de animais de estimação": eu nunca me enganei com os gatos! Já com a predadora... sim, e se o leitor quer saber, não me arrependo nem um pouco! Sou um menino sabido...

Mas me diga, sábio leitor de bom gosto que me acompanha, se hoje dispomos de potentes raticidas, que utilidade tem o bichano na família humana moderna a não ser o de fazer companhia a meninas mimadas?

Bom, mas voltemos de uma vez por todas ao cerne do presente trabalho científico e filosófico, a saber, a linguagem rudimentar dos melífluos e no entanto tão perigosos e dúbios bichanos:

Em chegando o gato na casa da família humana, ele logo identificou um rival, o bom e fiel cão, e naturalmente sons afetuosos que eram trocados entre os primitivos habitantes da casa grande (não pense que o luxurioso gato iria a casebres!), e logo percebeu que precisava abandonar os grunhidos selvagens e adotar uma linguagem mais doce, ao mesmo tempo que precisava combater, em afeto, um rival, a saber, o cão. Que fez então o astucioso gato?

Ora, inteligentemente o bichano, pérfida criatura, uniu, em uma única expressão verbal, a saber o universalmente conhecido "miau", não apenas um pronome pessoal oblíquo da linguagem humana, o "me" (eu), com o "au" do nunca suficientemente louvado cão, sendo que o "me-au" (essa a forma correta de se grafar a fala rudimentar dos pérfidos bichanos) na verdade quer dizer "Eu sou o cão", sendo que, pela sua fala rudimentar o bichano revela sua natureza ciumenta, beligerante e falsa, querendo nos confundir e se passar por aquele que nos acompanha desde nossa idade mais primitivia. Ele logo percebeu que nossas crianças chamavam ao querido cão de "au-au", e assim disse "me-au", querendo dizer "Eu é que sou o amigo", "Eu sou o au-au", numa palavra, "Eu sou o (verdadeiro) cão!" E talvez o seja, se colocarmos a maiúscula no lugar devido! Mas aí não seria um trabalho científico e filosófico, e nessa briga do cachorro com o gato eu, muito embora tome partido, não posso deixar minha predileção transparecer aqui.

Cabe pois um voto de confiança nos bichanos, e só o faço em respeito a algumas amigas que não sendo meninas mimadas, têm lá uma estranha admiração pelos bichanos. Talvez no "me-au" dos gatos haja algo de louvável, a saber, uma dúvida que acomete a todos os que amam, e assim o "me-au" talvez seja um pedido ou uma interrogação: "Eu também quero ser um au", ou seja, "Eu também sou amado?"; "Eu também sou querido aqui?" Mas faço tal concessão em favor dos pérfidos bichanos de orelha em pé, com um pé atrás, pois em se tratando de bichanos, a gente nunca pode confiar inteiramente.

E tenho dito!


Nanin (*)

(*) Sempre com a colaboração do fiel amigo
Antônio Adriano de Medeiros - Titular absoluto deste Blog!




segunda-feira, 19 de março de 2012

das amadas defuntas... e traidoras!

Karen Jumeaux, em foto na sua cerimônia de casamento com o amado falecido dois anos antes, onde jurou sinceramente amor e fidelidade ao defunto, sendo portanto uma rara exceção à regra aventada abaixo.


Não são só elas que são traidoras, todos o somos, que morrer é a suprema traição já que todo amor promete ser eterno, e desde o princípio nos ilude, sendo portanto a ilusão a condição sine qua non do amor. Seguem hoje dois poemas (três sonetos) de minha verve underground onde as musas - tão amadas! - continuam traindo mesmo após a morte...

Interessante foi ter percebido, enquanto reescrevia os meus poemas, que eles poderiam, de certa forma, se fundir num poema de Baudelaire, A Beatriz, onde a amada não morre literalmente, mas trai de uma forma tão terrível que é como se morresse: quem morre ali no poema de Baudelaire é a Musa idealizada, dando vez assim à simples mortal que é toda mulher, sofredora deusa falível duas vezes, na mortalidade frágil, e na carnalidade pecadora. No poema, Baudelaire encarna, homenageando-o, outro poeta imortal, a saber, Dante Alighieri.

Vai pois A Beatriz como bônus, na tradução de Ivan Junqueira.

absaam



SONETO DO AMOR IMORTAL

Eu sempre volto triste ao cemitério
onde está enterrado o meu amor.
Naquela cova esconde um mistério
que transforma em riso a minha dor.

Ai, nosso amor tão grande e proibido
não acabou com o crime passional
que um feioso e gorducho marido
julgou que seria o seu ponto final!

Plantei naquela cova a erva rara
que à minha amada era tão cara
- Ela que não era má, e nem medonha...

Num trago demorado a alma sonha
unir-se a partículas de Beatriz...
E no resto do dia eu sou feliz!


Antônio Adriano de Medeiros




UMA DESGRAÇA DO OUTRO MUNDO



I



A amada morreu e, sempre terno,
ao cemitério diariamente eu ia.
Lá rezava por nosso amor eterno
um Pai Nosso, um Credo, Ave Maria.

Porém, numa pegada de inverno
imenso temporal eis que caía.
Em casa fiquei preso – Ó Inferno:
um taxista sequer não me valia.

Com seis noites eis que o céu tenebroso
permitiu que um bom Quarto Minguante
me guiasse até a cova da amada.

À necrópole corri doido, ansioso...
Mas à porta me disse um esqueleto:
– “Tal desgraça não cabe num soneto!”



II



Cemitério escuro e pantanoso.
Fogos-fátuos tocavam numa banda.
Mutiladas crianças na ciranda
de um palhaço com nariz canceroso.

Fui à cova do amor venturoso
qual quem voa, não como quem anda.
Mas lá vi um quadro tão horroroso
que o meu coração quase desanda.

Pois quem fora um poço de virtude
vi de quatro por sobre um ataúde:
por defuntos nojentos violada.

E, montada por um meu inimigo,
quando o seu olhar cruza comigo
ela explode em terrível gargalhada.


Antônio Adriano de Medeiros


BÔNUS - A BEATRIZ - CHARLES BAUDELAIRE


A BEATRIZ


Charles Baudelaire


Num solo hostil, crestado e cheio de aspereza,
Enquanto eu me queixava um dia à natureza,
E de meu pensamento ao acaso vagando
Fosse o punhal no coração sem pressa afiando,
Em pleno dia eu vi, sobre a minha cabeça,
Prenúncio de borrasca, uma nuvem espessa,
Trazendo um bando de demônios maliciosos,
Semelhantes a anões perversos e curiosos.
Entreolham-se a mirar-me, aguda e friamente,
E, como o povo que na rua olha um demente,
Eu os via rir, entre si cochichando,
Piscando os olhos e também sinais trocando:

- Contemplemos em paz essa caricatura
Que do fantasma de Hamlet imita a postura,
Os cabelos ao vento e o ar sempre hesitante.
Não causa pena ver agora esse farsante,
Esse idiota, esse histrião ocioso, esse indigente,
Que seu papel de artista ensaia à nossa frente,
Querer interessar, cantando as suas dores,
Os grilos, os falcões, os córregos e as flores,
E mesmo a nós, que concebemos esses prólogos,
Aos berros recitar na praça os seus monólogos?

Com meu orgulho sem limite, eu poderia
Domar a nuvem dos anões em gritaria,
Deles desviando a fronte esplêndida e serena,
Caso não visse erguer-se, em meio à corja obscura
- Crime que até a própria luz do sol abala! -
A deusa a cujo olhar outro nenhum se iguala,
Que com eles de minha angústia escarnecia,
E às vezes um afago imundo lhes fazia.


Tradução de Ivan Junqueira
Charles Baudelaire
Fleurs du Mal

terça-feira, 13 de março de 2012

neurose matuta




O pequeno monólogo cordelista a seguir foi inspirado num fato que realmente aconteceu em meu modesto exercício de psiquiatra do serviço público estadual em hostes norte-riograndenses. É que uma das apresentações comerciais da clorpromazina, o primeiro medicamento antipsicótico, é o Amplictil. Eis que certa tarde atendi a um mancebo, acompanhado de sua mãe, com um quadro de esquizofrenia que já tinha uns dois anos de evolução, e certamente já se havia tentado inclusive tratamentos heterodoxos visando a cura definitiva daquele caso de psicose crônica. Pois aconteceu realmente de, após a consulta, a genitora do mancebo pedir para falar comigo a sós, no que foi prontamente atendida.


Após fechar cuidadosamente a porta do consultório do pronto-socorro do Hospital Dr. João Machado, em Natal, a mulher me interrogou, a voz baixinha mas cheia de curiosa esperança:

- Doutô, é verdade que ele só melhora quando tomar aquele remédio chamado Priquitil?

absaam

NEUROSE MATUTA


- Doutô Antôin, tô sofreno,
inté meu sono tá ruim;
minhas mão véve gelada,
é grande meu farnisim;
pra completar a desgraça,
as muléres cá da praça
vévem mangano de mim...

Nasci no Sítio Cauim,
lá na Serra da Rajada.
Lá me casei com Danila,
a primeira namorada;
pensava ser bom vaqueiro,
mas perdi prum fazendeiro
em noite de vaquejada.

Com a vida desgraçada,
vim morar na capitá;
o selviço de pedrêro
cá não costuma fartá;
toda noite tomo sopa,
mas a cabeça dá popa
na hora de me deitar.

Um irmão vei me contar
de um doutô elegante,
sabido e bem inducado
que deixa a gente falante;
se num for catimbozeiro,
só pode ser milagreiro,
do Bom Jesus ajudante.

Não me venha com purgante,
penicilina ou rapé;
nem mesmo tranquilizante
que neles não tenho fé;
minha receita está dada:
eu quero uma xaropada
de priquito de mulher!


Antônio Adriano de Medeiros

quinta-feira, 8 de março de 2012

o canto do encanto




O CANTO DO ENCANTO

Por enquanto o lugar é não-sei-onde,
e o tempo um quando indefinido.
Uma clara presença que se esconde.
É de todos velho desconhecido.
Haverá um que saiba do caminho
para ir a destino tão incerto
que nem mesmo o mais sábio peregrino
pode dizer se fica longe ou perto?
- Sim, é o Poeta! Hoje o seu papel
é lembrar que na folha de papel
existem apenas signos - as palavras;
mas Poesia é coisa de outra lavra.
É só um espelho o que chamamos Canto:
na alma humana é que está todo encanto!


Antônio Adriano de Medeiros
Natal - 08 de março de 2012

terça-feira, 6 de março de 2012

me irmanando com a paisagem de Natal

dunas de Genipabu - Natal - RN



"Desde menino que eu vinha da Paraíba..."

Na verdade, o meu caso com a cidade do Natal é um pouco mais tardio, da bela juventude. Vez que fui estudar em Recife aos 16 anos, e vim para João Pessoa com 19, Natal ficara reservada como uma cidade festiva, e sempre que lá chegava entrava num clima de festa, o que, pela beleza da cidade e sua natureza turística, é bem natural e verdadeiro.

Assim sendo, trabalhar em Natal para mim é unir o útil ao agradável, e eu me sinto mais em casa lá que na minha Paraíba nativa.

Se você vem do mar logo percebe que o bom vento fortificou a cidade, erigindo dunas que erguem um paredão natural que protege a cidade, desde o Parque das Dunas até a duna gigante de Genipabu. E muito embora aqui nesse primeiro poema eu diga que são dunas desérticas, na verdade é só a aparência, pois também sob a areia das dunas fervilham pequenos seres, os siris principalmente. Mas naquele dia em que me deitei numa rede após uma orgia com vinho e camarões, lembrei das bacantes, as belas, safadas e sedutoras criaturas que seguem o deus do vinho, Baco - em grego Dioniso - e lembrei que tais seres eram representados em mim por bactérias da fermentação intestinal, e quiçá vermes maiores.

Ah, ia esquecendo de dizer que meteorismo é o aumento do volume abdominal por acúmulo de gases, e após a ingesta de vinho ou cerveja, é bem considerável. Feijoada? Genipabu!

Vale um bônus, a louvar a bela e boa juventude, tão cheia de vida também.

Ahhhhhhhhhhhhh!

absaam


METEORISMO EM NATAL

Da rede fito o horizonte,
lá onde a lua desponta
após a imensa duna
fria e fofa
desenhada por minha barriga.
Tal qual as outras,
também uma duna erigida pelos ventos,
fermentações dos seres da Corte de Baco.
Mas são tais seres que a diferenciam das outras;
não uma duna desértica:
a minha duna é o céu de uma cidade de vermes.


Antônio Adriano de Medeiros


bônus


TESOUROS DA JUVENTUDE

Quando a vida é um arco-íris,
ao final de cada dia
sempre há um novo poema.

À noite o pinto sempre quer
cantar de galo.

Ao amanhecer a grande ave de luz
sobe aos céus,
abrindo a imensa cauda de pavão.


Antônio Adriano de Medeiros

quinta-feira, 1 de março de 2012

o poema suicida e o anti-poema



Felizmente tive que interromper o reinado do cordel antes da hora pois precisei atender a um visitante muito especial; ou será que eram dois?

Na verdade, há cerca de um mês vinha tentando escrever o soneto suicida, e até já iniciara um, mas não o conseguia terminar. Eis que de repente senti que era a Hora, mas aquele soneto esboçado se desmanchou, não poderia ser daquele jeito. Mesmo em se tratando de um suicídio diplomático, pois que o soneto se mataria para chamar a atenção para a riqueza da poesia que já existia além dele, um soneto suicida nunca poderia existir, visto que seria sempre um antipoema, não um poema. Daí que ele acabou se matando mesmo, sozinho, abriu mão de existir, e ao mesmo tempo surgiram eses dois aí, e eu, agradecido ao Criador por ter tido tal sacada, pus a epígrafe que retirei do Cântico dos Cânticos.

absaam




O POEMA SUICIDA E O ANTI-POEMA



"Eu dormia, mas meu coração velava.
Eis a voz de meu amado. Ele bate." Ct, 5, 2



I



Um poema matar-se é impossível.
Porque seria um gesto indelicado
com o leitor - a alma inextinguível,
na solidão do verso um aliado.
Por isso em fiquei tão desconfiado
ao ver aproximando-se de mim
um verso muito bem apessoado,
dizendo:- "A Poesia chegou ao Fim!
Se tudo já foi cantado por alguém
e a Poesia é filha e mãe do Bem,
só me resta lembrar à humanidade
que escrever hoje é pura vaidade;
pois quando a Poesia pode ser vivida
o poema diz Basta!, e suicida."



II



Se algum mérito o velho Diabo tem
é por sua incansável persistência.
Que era o Anti-Poema eu notei bem:
seus versos eram pura aparência!
Pois um poema é, em sua essência,
um gesto afirmativo, criador;
se ás vezes algum louva a decadência,
o faz com o velho charme fingidor
que sabe quê a Poesia é muito séria
para ter uma mensagem deletéria...
- Como pode a Poesia se retirar
deixando a Obra assim, pela metade?
Como, se nem essa tal de humanidade
Ela ainda acabou de inventar?



Antônio Adriano de Medeiros
mar - 2011