segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

um cordel cinematográfico

foto encontrada em busca no Google. A bela família também quer um filho varão. Meu Deus, não precisa!



Não é qualquer Romão Polansco, nem Felino, Costas Graves, Pedro Alma de Ovo, U de Alien, nem mesmo qualquer Alfredo Rintintin Cócócócó, que estaria capacitado a dirigir com a mesma maestria as cenas eróticas desse poema: são cenas sempre sobrepostas, leitora, e quando a mulher se entrega ao amor adúltero, o marido, em outro lugar, está sempre fazendo algo de alguma forma relacionado àquilo que a boa Das Dores também faz - por isso, digo desse poema que ele é um cordel cinematográfico. Se bem que, convenhamos, chamar um poema desse de cordel é... Mas na verdade é um cordel, só que de qualidade.


A palavra "varão" é aqui usada em dois significados, tanto que o poema poderia também ser chamado de A Multiplicação dos Varões, não só pelo milagre do final - sim, um milagre, leitora! eu repito, um milagre! - mas também porque a palavra "varão" tanto se apresenta como um filho homem desejado, como uma grande vara tão sonhada - e - que alegria, que felicidade! - tanto o desejo como o sonho se realizam, o que coloca o modesto autor entre as boas almas que gostam de finais felizes para todos.

A cena inicial apresnta o herói, Inácio Leite de Pinto, desejoso de um varão macho mas desiludido com a esposa já na quinta gestação de meninas, preso, pois embriagado surrara a mulher no meio da rua. Logo a boa Das Dores vai ao não menos bom delegado Olavo Correia Danta (não sei se o leitor sabe que a Anta é um dos animais mais bem dotados que existem...) contar a história, que Inácio é bom padeiro e bom pai, mas que todos queriam tanto um varão... O dedicado funcionário público, então, toma as medidas cabíveis e... Bom, o poeta conta melhor que o prosador.

Ficarei uns dias sem atualizar o blogue, como faço sempre que um cordel de qualidade fica em exposição.

absaam


O VARÃO TÃO DESEJADO


Inácio Leite de Pinto
já dormiu numa prisão;
foi quando bebeu cachaça
e fez grande confusão:
deixou sua mulher nua,
arrastou pro mei da rua,
e lhe deu um bofetão.

Das Dores da Conceição
chorou muito nesse dia.
Porém na manhã seguinte
foi lá na delegacia
dizer não ser seu marido
vagabundo nem bandido,
pois trabalha em padaria.

Que ultrassonografia,
exame que ela fez,
trouxe como resultado
gestação de quatro mês;
quatro filhas já gerou,
e o exame mostrou
uma menina outra vez!

Antes de tal gravidez
Inácio, homem de fé,
havia feito promessa
implorando a São Tomé
que lhe mandasse um varão;
reforçando a petição
na macumba e candomblé.

Que também pra Lucifé
Inácio quis apelar
pra que enfim um varão
adentrasse no seu lar;
e que do pacto abriu mão
ao saber que o Cão
costuma trapacear...

E que passaram a tentar
toda noite e de manhã,
tanto em papai-e-mamãe,
qual no torno e alazã.
Com Viagra e catuaba
Inácio quase se acaba
pra conseguir seu afã.

E que ao perceber vã
sua luta ficou bravo.
A cachaça o transformou
no próprio Henrique Oitavo:
chamou de Ana Bolena,
Praga da Gota Serena,
e cometeu o agravo.

E assim Doutor Olavo,
que era um bom delegado
com formação humanística,
pois já fora advogado,
mandou em Inácio Pinto
darem uma surra de cinto,
e liberou o coitado,

Das Dores olhou de lado
quando o Doutor revelou
que a esposa de seus bagos
quatro filhos já gerou:
– “Se a senhora é mãe de quatro
talvez para o bom teatro
um par perfeito encontrou...”

Inácio Pinto passou
uma semana trancado
porque a surra de cinto
tinha-o deixado marcado.
Mas quando tudo passou
ele nunca reclamou
do bom doutor delegado.

Nem ficou desconfiado
quando a menina nasceu
e das Dores lhe falou:
– “Atende um pedido meu?
Ele foi tão educado...
Chame o doutor delegado
para ser compadre seu!”

E assim aconteceu
augusta festa de paz.
O padre até invocou
os anjos celestiais.
Todavia Inácio Pinto
não esquecia do cinto,
nem também de Satanás...

Porque Inácio jamais
dentro do seu coração
desistiu de ter em casa
um grande e forte varão,
e estava decidido
a fazer o seu pedido
dessa vez ao próprio Cão.

Montou no seu alazão
quando o dia amanhecia.
Botou a bença às meninas,
se despediu de Maria,
e sumiu pela estrada
levantando a poeirada,
sem dizer pra onde ia.

E quando no sexto dia
não apareceu Inácio
Maria ao delegado
foi pedir que encontrasse-o.
Ao vê-lo leva um tombo;
ele elogia o seu lombo,
Maria responde – “Trace-o!”

A Das Dores não foi fácil:
quando viu, teve um entalo.
Quando o homem se escanchou
mais parecia um cavalo.
Ela botou pra dar coice:
gritou qual briga de foice,
sangrou qual briga de galo.

Mas depois de suportá-lo
pela via natural
ela engoliu uma espada
e tirou leite de pau:
que nem menininha esperta
ela fez a coisa certa
e tomou todo o mingau...

A via antinatural
o doutor quis conhecer,
Na beirada do birô
Maria a se remexer.
Primeiro a mulher babou;
estremeceu, desmaiou...
Ele pensou – “Vai morrer...”

Mas não pôde interromper,
possuído pelo Cão,
mesmo vendo que Maria
já entrara em convulsão
– “A coitada é epiléptica...”
– “Não, doutor, estou elétrica
pois nunca fiz isso, não!”

Nessa hora o alazão
de Inácio relinchou
lá nos Cafundós do Judas,
e feiticeiro falou:
– “Ir pra casa cê já pode,
porque o Distinto Bode
o seu pedido aceitou!”

Delegado grita – “Gol!”,
se retira com afagos.
Porém vendo que Das Dores
ainda quer dar uns tragos
– “Tá suja”, lhe diz Olavo.
Ela responde – “Eu o lavo”,
e engole até os bagos.

Qual quem recebe de magos
presentes especiais
Inácio se ajoelha,
abre seus braços e faz
prece em agradecimento
porque vai ter um rebento
por graça de Satanás.

Com dor na frente e atrás,
gosto de fel na garganta,
e semente que plantou
Olavo Correia Danta,
Maria adentra o seu lar
às filhas a abraçar
com o seu jeito de santa.

Contou que uma jamanta
na rua a atropelou.
Mostrou escoriações,
em seguida se deitou,
mas não sem antes falar:
– “Até se seu pai chegar
cês digam que não estou!”

Com três dias acordou
querendo comer saúva.
Vestiu-se toda de preto
julgando já ser viúva.
No calor do meio-dia
as filhas viram Maria
sentindo cheiro de chuva...

Pela janela uma luva
trouxe mau pressentimento:
era Inácio que voltava
escanchado num jumento,
pois o alazão ficou:
o feiticeiro cobrou
e teve seu pagamento.

Ligeiro que só o vento,
num movimento preciso,
Inácio disse a Maria:
– “Vem amor, que eu preciso!”
Ela disse: – “Eu quero tu!”
Porém quando o viu nu
caiu em frouxos de riso...

– “Tu perdeste teu juízo,
Das Dores da Conceição?
Me diga o que há contigo,
razão de meu coração!”
E lhe respondeu Maria:
– “É riso de alegria,
meu amor, minha paixão!....”

Mas só numa posição
que Das Dores consentiu;
negou-se a ficar de costas
quando Pinto lhe pediu:
– “Cê quer fazer uma aposta?
Que Papai do Céu não gosta
do que me pediste, viu?”

De noite não permitiu.
Inácio ficou zangado,
e Das Dores lhe lembrou
do “cipó do delegado...”
Porém na hora da bóia
ela quis comer jibóia,
Inácio riu pra danado...

Na outra noite o coitado
em sua cama deitou,
não sem tomar catuaba,
mas Das Dores recusou:
–“Quero banana-caixão...”
–“Amor, não em jeito, não:
o mercado já fechou...”

Maria muito chorou,
esperneou e grunhiu.
Inácio, preocupado,
lhe contou porque sumiu:
foi fazer pacto com o Cão.
Ela lhe disse: – “Um varão
já tenho aqui dentro, viu?”

O bom Inácio aplaudiu
mas depois desconfiou.
Maria, toda matreira
disse que ontem sonhou
que dormira com chifrudo
-"um malcheiroso, um rabudo"-
o qual a engravidou.

O bom Pinto respeitou
os caprichos da danada:
pois podiam ser sinais
de que estava amojada,
e havendo gravidez
sexo uma vez por mês
era a quota da casada.

Quando foi de madrugada
algo estranho aconteceu:
a bela, adormecida,
babou e estremeceu.
E gritou: – “Vem, meu cavalo!
Bota tudo, até o talo,
porque este rabo é teu!”

Inácio não entendeu,
mas abraçou a mulher.
E ela assim lhe respondeu:
– “Para trás, Cão, Lucifé!
Eu tava tendo um bom sonho
e me chega esse medonho
que vive no candomblé...”

Inácio disse: – “Ah, é?
E me poderá contá-lo?
Pois você gritou dormindo,
mencionando cavalo
e coisas sexuais...
Ah, eu quero saber mais!
E você vai revelá-lo!”

– “Calma amor, eu tudo falo:
talvez estranho lhe soe,
sonho de mulher buchuda,
já vou contar como foi...
Estrada de sete légua,
um cavalo e uma égua,
e depois chegou um boi...”

– “Ah, de mim cê não caçoe:
e o que tem de bom nisso?”
– “Eles estavam transando
e gostei de ver o viço...
Senti um prazer danado,
e gritei para o montado:
- termine todo o serviço!”

– “Ah, meu bem, então foi isso?
Pois queira me perdoar
que coisas de traição
já andava a ruminar...”
Das Dores pensou – “Seu corno!
Tô com saudade é do torno...”
E pôs-se alto a roncar.

Ela então deu de mostrar
sempre um novo capricho.
Um dia quis andar nua,
no outro, dormir no lixo;
depois pediu pra ser presa,
quis fugir pra Fortaleza
e cismou que fosse um bicho.

Logo correu um cochicho
que foi um deus nos acuda:
Das Dores ou endoidara
ou estaria buchuda.
Armado de cinturão
viu-se Olavo no portão
oferecendo ajuda.

Das Dores, mulher miúda,
ameaçou passar mal
e disse: – “Doutor Olavo,
Inácio anda tão legal...
Já eu estou caprichosa:
dei pra mentir, tão dengosa
que estou merecendo pau...”

Depoimento total
foi dar na delegacia:
evitar nova agressão,
fazer a profilaxia...
Ela deu admissão
e acharam a posição
que ali melhor caberia.

Inácio na padaria
estava amassando o pão.
Das Dores tinha seu corpo
amassado pelo Cão.
O bom freguês sempre paga:
biscoito, coxas, bisnaga,
bolos, suco, salsichão.

Das dores grita: – “É tão bão!
Meu amado, assim eu morro!”
Trepa e rola pelo chão,
sobe até bater no forro.
Ao estranho expediente
eis que acode um tenente
que ouve gritos de “Socorro!”

De susto lhe cai o gorro.
Olavo pede perdão.
Mas o tenente é danado:
quer a sua posição!
E a cristã, consciente,
se ajoelha à sua frente
e faz a sua oração.

E assim não foi em vão
que Inácio promessa fez:
ele queria um varão
e do Cão virou freguês.
Eis que algum tempo depois
não um varão, porém dois
surgem, no oitavo mês.

E assim era uma vez
uma casa sem varão:
Inácio vê um na sala
e outro no corrimão.
Já Das Dores, meu freguês,
além de ter esses três,
tem sempre mais dois à mão.

Que fique pois a lição
àquele que um dia ousar
apelar ao velho Cão
quando algo desejar.
Que fique pois avisado:
ele atende de bom grado,
mas não sem trapacear...



Antônio Adriano de Medeiros

domingo, 26 de fevereiro de 2012

dízimo à Deusa Musa - divina dádiva!




É nosso dever darmos graças, é a melhor parte de nossa luta esse doce e alegre luto, pagar sempre tributo à Mulher.


No bônus, o primeiro poema que ensaiei para elas, um soneto já antigo, inspirado que foi nas peripécias de um amigo com elas, na verdade um parente inconsequente, cabra da peste que foi à Oktoberfest em Blumenau e se deu mal, meteu a mão onde não devia e quase perdia o seu pobre pau... Também, era a dona da casa...

Na verdade o soneto do bônus é então não só uma louvação, mas uma peça de defesa - Tão necessária!

absaam


AINDA OUTRO ENSAIO POÉTICO PARA AS MUSAS


É necessário, a quem planeja e quer
ser pelo menos um poeta razoável,
tendo nascido desse sexo sem nexo
que acho ser o frágil macho,
voltar sempre ao tema da Mulher

- A Música com Ciência,
a mosca com consciência,
a Musa por excelência!

A Droga é apenas a mais fácil e falsa das mulheres,
e a Morte, a mais fiel
- Talvez por isso mesmo a mais cruel.

Ai, mas o mais concreto e místico dos alimentos,
o mais efetivo dos medicamentos,
a mais pura das figuras,
a mais sagrada e mais safada das imagens ideais,
também se corrompe e morre,
dá congestão e vômitos enquanto nos socorre,
- o melhor remédio para o velho tédio
também tem seus terríveis efeitos colaterais...

Chifres, traição, abandono, futilidades...

- Tolices que inventamos,
e contra elas também perpetramos,
nós os homens, deuses lobisomens,
velhas crianças, grandes trapaceiros,
primeiros e verdadeiros grandes mestres da maldade!

- Por aqui calo, paro meu canto,
mas só por enquanto...
E me perdoe algum desencanto, minha querida
Música Melhor, Musa Mulher
- sem ti sequer vida haveria,
e a Poesia era coisa perdida, Musa Bandida,
Maga da minha mente - essa mosca demente -
pois sei que a Vida com suas penas...

Ah, não me iludo, tudo é apenas e tão somente
a tua mágica trágica,

Maga mais querida, musa mais amada,
bela mascarada do caralho!


Antônio Adriano de Medeiros



bônus bom - nuas


MULHERES


Bruxas malvadas quando nos desprezam,
musas do bem quando amam-nos...
Quantos homens, toda noite, confiantes rezam
sonhando com a doçura de dois seios nus?

Gatas manhosas, donas-de-casa fiéis,
loiras, morenas, índias, pretinhas, orientais...
Quando na cama se mostram pródigas em ais,
a qualquer um fazem gastar milhões de réis!

Possuem o néctar que alimenta a vida pura,
têm o remédio que á pior desgraça cura
- Ah, por mais que tente respeitar regras e normas,

e obedecer a bonitos argumentos filosóficos e morais,
jamais resistirei ao convite de tuas formas...
Talvez porque nelas haja beleza demais!


Antônio Adriano de Medeiros

sábado, 25 de fevereiro de 2012

a festa dos Cão

tribuna do norte


A 21 de fevereiro - na terça-feira, gorda! - completei mais uma volta em torno do sol, dois terços do número de voltas que o bloco carnavalesco Os Cão, 75 anos, que toda terça de Carnaval sai na Redinha, em Natal, no mangue do rio Potengi se enlameando e enlameando a quem se aproxima. Claro que depois todo mundo se lava direitinho, e eu, que sou uma pessoa educada, me ofereço pra dar uma mãozinha,

Para lá também se encaminham instrumentistas e musicistas generosas, pra animar e embelezar a festa dos Cão.

absaam


CARNAVAL - A FESTA DOS CÃO

Terça-feira eu vi os Cão.
Fiquei muito satisfeito!
Era pura diversão.
Todo Cão é bom sujeito.

Se sujam de lama os Cão,
todo mundo sujo fica.
Gosto de passar a mão,
banda de menina rica.

Quem sabe faz o serviço
- Elas gostam muito disso...
também de tocar corneta.

Os Cão saem no Carnaval.
ninguém ali faz por mal:
seja doidona ou careta...

Suja pau, chuta buceta.


Antônio Adriano de Medeiros

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

narcissuicida


Seriam duas pessoas muito chatas, mas não posso negar que são dois poemas bastante interessantes. Se bem que incomodam, sabem irritar.

É difícil dizer qual o humor do Pintor do Suicídio. Acabo ficando com o depressivo-irritado. Ele reclama da falta de inspiração para pintar, e de repente começa a pintar seu próprio suicídio, crendo certamente que a tal falta de inspiração seria definitiva e seria então a hora de pintar seu último quadro. Mas o que mais chama a atenção, a meu ver´é que se trata de um suicídio agressivo - não dá pra ter peninha, dó, desse suicida aí, antes raiva. O fato de ser tão claramente um suicídio heterodoxo nos mostra uma faceta estranha do suicídio, a saber, que háa li sempre algum grau de agressão para os que ficam, no sentido de que o que se mata pelas próprias mãos parece nos dizer "olhem o que eu faço com essa vidinha que vocês valorizam e prezam tanto!" E ele acaba agredindo a própria gramática ´"que cor terá minha tez quando encontrado?" - Nessa frase, o eu, apesar de oculto, é tão grande que domina a concordãncia verbal. Na verdad, foicaria feio reduzir o copro à mera cor da pele, de forma que preferi a concordância com o corpo inteiro; vale pelas duas coisas.

Já a outra personalidade narcísica, a que se revela com o nome verdadeiro, Narciso - sim, porque o Pintor do Suicídio também era um narcisista - me fez rir pra danado. Antes que alguém me pergunte já vou dizendo que nada de autobiográfico tem ali. Nem poderia haver. Pura ficção livre!

absaam



O PINTOR DO SUCÍDIO

Às vezes fico assim por muito tempo.
Nem um risco de poema cruza
essa névoa no mundo,
esse silêncio profundo,
esse céu cinzento.

Nem meu cadáver dependurado
pareceria ter qualquer graça.

- Que cor terá minha tez quando encontrado?
Que expressão dissimulará meu rosto?
Discreta baba escorrendo pela boca
à guisa de cuspe ou vômito,
na tua cara?


Antônio Adriano de Medeiros



NARCISO

Como todos são tão ridículos, limitados...
Desde menino que me sei genial!
Por isso desanco a todos, micos e nanicos, palhaços,
e nem temo as conseqüências:
já tenho a notoriedade desejada.

Alguém duvida de que serei poeta póstumo?

Reprovei os três sábios da Academia,
o judeuzinho, o macaquinho, o maçonzinho,
porque eles não mais serão que simples médicos:
não precisava deles.

Recusei ajuda do poderoso bufante,
o farsante coronel da política,
só pra mostrar que há algo maior que o poder:
sou mais sábio que ele.

Esculhambei com os macacos na noite escura
quando quiseram me amedrontar
com suas armas ridículas
e suas gargalhadas peculiares a banguelas medíocres:
sou mais homem do que eles.

Desprezei aquela a quem, confesso, até amara,
por um mínimo sinal de orgulho de menina mimada,
um escorregão que espatifou a perfeição,
um deslize que fez a bela apodrecer:
sou mais bonito que ela.

Não gostou do que leu, prezado leitor?
Que importa?
Escrevo melhor que você.


- Meu nome é Narciso!



Antônio Adriano de Medeiros

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

as confissões do pastor Lobo


O padre Lobo, pastor e lobo a um só tempo, é um dos Doidos de Mim mais bem trabalhados. Ganha, inclusive, uma epígrafe de Baudelaire, retirada das Litanias de Satã, "Ó Satã, tem piedade de minha longa miséria!", pois segui o modelo daquele poema para escrever As Confissões, incluindo também uma anáfora.

absaam



AS CONFISSÕES DO PADRE LOBO



"O Satan, prends pitié de ma longue misère!"



Ó Pai, juiz em quem misericórdia se iguala a justiça,
perdoa um padre em quem o pecado viça!

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Há muitos anos os dentes eu arreganho
para investir contra o meu próprio rebanho.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Foi com um beijo que pela primeira vez
traí a castidade com a nossa irmã Inês.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Eu me arrependo das inúmeras manhãs
em que despido despertei com as irmãs.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Eu sou aquele que antes do matrimônio
desfruta da noiva por artes do vil Demônio.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Perdi a conta das muitas ocasiões
em que beatas bolinei nas procissões.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Hoje eu confesso que abusei de crianças
sentadas em meu colo com suas douradas tranças.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Sempre ao final das festas de padroeira
trinta dinheiros desvio na roubalheira.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Censuro sempre o adultério da pobreza,
mas o pratico com as damas da nobreza.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Quantas donzelas já levei ao descaminho,
unindo o sagrado pão com o mais raro dos vinhos!

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Nunca pecado vejo nos vis corações
se à paróquia fazem boas doações.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Com excomunhão ameacei ricos e carentes,
para passar a noite com as filhas adolescentes.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Jurei pobreza e que jamais teria um porto,
mas vivo em luxo, no ócio e no conforto.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Se nos sermões louvo a pureza de Maria,
a mães ensino segredos de putaria.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Beijando Cristos de cabeças cabeludas
senti no peito pulsar coração de Judas.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Ao acender velas em sagrados castiçais,
intimamente fiz preces a Satanás.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Quando fazia meu juramento de fé,
as gargalhadas eu ouvi de Lúcifer.

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!

Perdoa, Pai, este infeliz padre ateu:
entre os irmãos, há bem piores que eu!

- Ó Senhor, tem piedade de um pastor que é lobo!


Antônio Adriano de Medeiros

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

caboclo brabo


CABOCLO BRABO

Às vezes de repente eis que baixa o cabôco.
E ele canta e dança e batuca, assovia.
É um bicho esquisito e talvez meio louco
- Só não vá lhe dizer que ele faz poesia!
Porque aí já periga de você levar soco,
que o cabôco se enfeza e vai pra baixaria.
- É parente de Exu, o velho arranca-toco:
baixa santo e enterra à plena luz do dia!
O seu canto é selvagem, é canto de guerreiro,
de pajé, pai-de-santo ou véi catimbozeiro.
Eu só sei que poesia o índio nunca faz,
e se zanga, e quer briga e vira o Satanás:
pois o índio é assim, um cabôco enfezado...
E poesia pra ele é coisa de viado!

Antônio Adriano de Medeiros

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Doidos de Mim - os safados, com Baudelaire

Safo de Lesbos

Nos dois Doidos de Mim que seguem, encarno - na primeira pessoa do singular! - os primeiros Safados; a saber, os desviados originais, os humanos do amor entre iguais.


A poeta Safo de Lesbos (Sapho da ilha de Lesbos) se não foi a primeira que cantou o amor entre as muheres foi a que o fez melhor, pois que o nome da ilha onde viveu deu origem à palavra "lésbicas". Creio que também a palavras "safadeza" e "safada" se originaram de seu próprio nome, se bem que diziam-na tão encantadora que poderia mesmo ser citada como a Décima Musa; há que se dizer ainda que Safo se matou atirando-se de um penhasco de sua ilha no grande mar, e que o fez por amor a um homem! - o Poeta Charles Baudelaire fala do episódio em um dos poemas mais belos que conheço, Lesbos, que não posso deixar de incluir aqui, como terceiro poema da presente postagem, na tradução de Ivan Junqueira. O poema de Baudelaire foi proibido quando da publicação das Flores do Mal, junto com mais cinco, e ele pagou alta multa pro ter, segundo a justiça francesa da época, "atentado contra a moral e os bons costumes". Somente sessenta anos depois os poemas foram "reabilitados" em França - o que não quer dizer que não fossem publicados em ediçôes clandestinas. No poema Sáphira há pois uma pequena homenagem a Safo de Lesbos.

Nijinsky foi um grande bailarino russo que teve um caso conturbado com Dhiaghilev, seu empresário; o mais tocante da história de Nijinsky foi que ele, o maior bailarino de sua época, após ter passado alguns anos inativo, coisa de briga com Dhiaghilev e certamente outros problemas mais graves, marcou o seu retorno triunfal ao palco e, diante da nata européia da época o bailarino, após ficar cerca de uma hora sentado numa cadeira no palco, calado e de olhar fixo, dá uns pinotes desajeitados sobre uma cruz que fizera no palco diante do público, e simplesmente não conseguiu dançar, adoecendo de uma psicose esquizofrênica que nem Freud, Bleuler e Jung conseguiram fazer sequer melhorar dos sintomas graves. Li outro dia que quando Nijinsky saía de casa na fatídica noite dissera á sua mulher que "hoje você vai assistir ao meu casamento com Deus!" Um fenomenologista que estudou a grande psicose diz que nos primórdios do delírio primário se sente a Trema, nome dado à grande ansiedade que os atores sentem antes de entrar no palco - a trema de Nijinsky, então, foi definitiva. Outro homossexual que dizem-no tão belo que poderia ser "o modelo masculino da beleza plastica" foi Antínoo, protegido do imperador romano Adriano. O poema Antínoo Nijinsky funde trechos da história dos dois.

E por fim segue o poema de Charles Baudelaire, Lesbos, na tradução de Ivan Junqueira.

"Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre
Pour chanter le secret de ses vierges en fleurs,
Et je fus dès l'enfance admis au noir mystère
Des rires effrénés mêlés aux sombres pleurs ;
Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre."

Baudelaire, Lesbos
(http://clicnet.swarthmore.edu/litterature/classique/baudelaire/lesbos.html)

absaam



SÁPHIRA

É no oceano azul e quente de teus olhos,
amiga, que quero me afogar.
É com essa espuma salgada de teu corpo,
amada, que quero me embriagar.

Ao escalar tuas montanhas maleáveis, amor,
me perco fundo no teu pântano, e aí viro fera - e mordo!
Nessa selva de cabelos perfumados, em desatino
quero me perder, para reencontrar-me guerreira
amazona que te monta e espora.

As tuas duas grandes maçãs
são as frutas prediletas de meus dentes.

E quando perderes tu também a cabeça
na minha árvore do bem e do mal,
entraremos juntas no Paraíso,
enroscadas quais duas serpentes.


Antônio Adriano de Medeiros



ANTÍNOO NIJINSKY

Pois saiba que eu também gosto muito, amigo,
quando me tomas nos braços e diriges meus movimentos
como se fora um ator no palco,
ou um bailarino,
e me beijando dizes que sou teu
modelo de beleza plástica,
além do depositário não só de teus afetos.

No início, confesso,
me preocupava
com o que os outros iam pensar
quando saíamos para jantar,
você bem mais velho e tão alvo,
e eu tão jovem e com minha pele por demais morena;
hoje não, confesso que já me sinto à vontade.

Pois nada se iguala aos momentos
que vivemos a sós,
no nosso palco de amor,
quando danço rubro e com a voz embargada,
molhado de saliva e suor,
te amando e servindo e venerando - meu Imperador! -
o coração palpitando sob tua espada.


Antônio Adriano de Medeiros




LESBOS

Charles Baudelaire

Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias,
Lesbos, ilha onde os beijos, meigos e ditosos,
Ardentes como os sóis, frescos quais melancias,
Emolduram as noites e os dias gloriosos;
Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias;

Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas,
Que desabam sem medo em pélagos profundos,
E correm, soluçando, em maio às colunatas,
Secretos e febris, copiosos e infecundos,
Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas!

Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,
Onde jamais ficou sem eco um só queixume,
Tal como Pafos as estrelas te veneram,
E Safo a Vênus , com razão, inspira ciúme!
Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,

Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,
Onde, diante do espelho, ó volúpia maldita!
Donzelas de ermo olhar, dos corpos amorosas,
Roçam de leve o tenro pomo que as excita;
Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,

Deixa o velho Platão franzir seu olho sério;
Consegues teu perdão dos beijos incontáveis,
Soberana sensual de um doce e nobre império,
Cujos requintes serão sempre inesgotáveis.
Deixa o velho Platão franzir seu olho sério.

Arrancas teu perdão ao martírio infinito,
Imposto sem descanso aos corações sedentos,
Que atrai, longe de nós, o sorriso bendito
Vagamente entrevisto em outros firmamentos!
Arrancas teu perdão ao martírio infinito!

Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?
Ou condenar-te a fronte exausta de extravios,
Se nenhum deles o dilúvio pôde ver
Das lágrimas que ao mar lançaram os teus rios?
Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?

De que valem as leis do que é justo ou injusto?
Virgens de alma sutil, do Egeu orgulho eterno,
O vosso credo, assim como os demais, é augusto,
E o amor rirá tanto do Céu quanto do Inferno!
De que valem as leis do que é justo ou injusto?

Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo
Para cantar de tais donzelas os encantos,
E cedo eu me iniciei no mistério profundo
Dos risos dissolutos e dos turvos prantos;
Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo.

E desde então do alto da Lêucade eu vigio,
Qual sentinela de olho atento e indagador,
Que espreita sem cessar barco, escuna ou navio,
Cujas formas ao longe o azul faz supor;
E desde então do alto da Lêucade eu vigio

Para saber se a onda do mar é meiga e boa,
E entre os soluços, retinindo no rochedo,
Enfim trará de volta a Lesbos, que perdoa,
O cadáver de Safo, a que partiu tão cedo,
Para saber se a onda do mar é meiga e boa!

Desta Safo viril, que foi amante e poeta,
Mais bela do que Vênus pelas tristes cores!
- O olho do azul sucumbe ao olho que marcheta
O círculo de treva estriado pelas dores
Desta Safo viril, que foi amante e poeta!

- Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida,
A derramar os dons da paz de que partilha
E a flama de uma idade em áurea luz tecida
No velho Oceano pasmo aos pés de sua filha;
Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida!

- De Safo que morreu ao blasfemar um dia,
Quando, trocando o rito e o culto por luxúria,
Seu belo corpo ofereceu como iguaria
A um bruto cujo orgulho atormentou a injúria
Daquela que morreu ao blasfemar um dia.

E desde então Lesbos em pranto lamenta,
E, embora o mundo lhe consagre honras e ofertas,
Se embriaga toda noite aos uivos da tormenta
Que lançam para os céus suas praias desertas!
E desde então Lesbos em pranto lamenta


Charles Baudelaire
Flores do Mal
trad. Ivan Junqueira

domingo, 12 de fevereiro de 2012

outros Doidos de Mim



Os escritos da série Doidos de Mim permitem-me encarnar certas personalidades incomuns, sempre na primeira pessoa do singular, oferecendo já no título um nome com características de diagnóstico e de cartão de apresentação. Aqui vão dois comedores de gente, mas de gente... morta! Um canibal e um necrófilo, companhias decerto não muito recomendáveis. Há porém o fato de que outros Doidos de Mim já se apresentaram no blogue, entre eles Hansen, O Barão de Momoicó, e A Bela Parricida.

É impossível falar como canibal e ser lírico, parece. Precisa-se de muita cautela pra se defender o indefensável, e K. Anibal não pôde usar nem um pouquinho de lirismo a não ser talvez na mençao à tonalidade triste das sonatas que ouviu enquanto jantava um casal de amigos algo a contragosto. Já o necrófilo Zé dos Caixões esbanja lirismo ao descrever suas abomináveis paixão e aventuras.

Interessante que na prática é o contrário: o canibalismo pode até ser defensável em situações extremas (lembrar o acidente dos Andes, e o mais recente, o da mina do chile, quando tudo já estava preparado...) mas a necrofilia, jamais. Confesso porém que fui influenciado por Alice Cooper pra poder ser tão lírico na necrofilia. A música é I love the dead.

Lembro de quando o Prof. Leme Lopes fez uma palestra no anfiteatro que já tinha seu nome, quando a homossexualidade perdeu a condição de entidade nosológica pura, acho que em 1986: ele lembrou que nem todas as chamadas perversões sexuais poderiam ser porém encaradas com vistas grossas (alguns mais empolgados já proclamavam o liberou geral) a necrofilia seria sempre sinal patognomônico de grave transtorno mental; ela é um extremo, um marco - e sempre é bom lembrar que existem marcos.

E não pense a leitora estar livre da obrigação de usar um crachá que a identifique psiquiátrica ou psicopatologicamente: o diagnóstico em cinco eixos da Associação Psiquiátrica Americana bem pode num futuro perverso ser transformado num crachazinho obrigatório onde a pessoa deve ser identificada quanto a seus rendimentos práticos levando-se em conta suas características psíquicas;

Mas por enquanto os diagnósticos verdaddeiros são usados apenas para permitir a melhor maneira de a Medicina ajudar alguém. Essa é a idéia, imorredoura, creio.

absaam




K. ANIBAL

- A parte mais chata ainda é que fim dar aos ossos,
sempre muitos e delatores demais a olhares circunspectos:
o abate da presa até torna-se fácil com o tempo.

No preparo, devem-se seguir os mesmos cuidados,
empregarem-se os mesmos molhos e temperos
da culinária das pessoas comuns:
um bom vinagrete sempre cai bem com churrasco;
certos grelhados sempre combinam com alho e pimenta,
e arroz e legumes são os acompanhamentos universais.

Só nunca revele o prato que está servindo aos convidados:
certa vez um casal de amigos não reagiu bem
ao saber que jantara um desafeto, e entrou em pânico,
e logo os vi muito falantes e desconfiados e perigosos,
sendo que tive que também jantá-los nos dias seguintes;
nunca um piano tocara tão triste aquelas sonatas!...
nunca o vermelho do vinho me dera calafrios em vez de calor.

Por isso nunca pergunte:
admiras porventura a carne humana?

E não se recomenda a sopa com ossos, aqueles delatores.


Antônio Adriano de Medeiros





ZÉ DOS CAIXÔES

- Quem sabe de todo o ardor,
do tamanho prazer que fica no frio túmulo
quando a dor da família volta pra casa chorando?
Quem fará companhia à linda jovem recém-chegada
naquela primeira noite em que a bela vai dormir
- Ai, ainda com todos os cabelos! - na casa dos mortos?

- Tu a abraçarias assim como eu, amigo leitor?

Quem sabe da beleza que não se desmancha
assim tão de repente como cessa o calafrio,
o tremor, esse calor, esse soprar que se chama vida?
Quem ainda a julga fonte de paixão,
digna de companhia apesar da tamanha frieza?
Em quem a paixão acende ainda aquele olhar tão opaco?

- Tu a amarias assim como eu, dileto leitor?

Quem ainda uma noite a despiria, na vizinhança
de tantos esqueletos curiosos e tão perscrutadores?
Quem dançaria com ela uma valsa ao luar?
Quem deliraria de prazer ainda uma noite
na companhia de dama tão insensível?
Quem ousaria desnudar a rosa fria?

- Tu a beijarias assim como eu, recatado leitor?


Antônio Adriano de Medeiros