segunda-feira, 28 de maio de 2012

A Peleja de Zé Piola com Diabo Louro

Cidade de São José do Egito, sertão de Pernambuco, berço de grandes poetas da viola e do cordel nordestino

Correm rumores, que não são boatos, no sertão, de que a Peleja de Inácio da Catingueira com Romano de Mãe d´Água, ocorrida na segunda metade do Século XIX em Patos, no Sertão das Espinharas, Paraíba, foi considerada a Peleja Mãe, o Desafio dos Desafios, porque ali é que surgiu o gênero do Desafio de Viola. Porém, o mais belo e bem trabalhado dos desafios é, sem dúvida, O Desafio do Auto da Catingueira, composição de Elomar Figueira de Melo, poeta e violeiro do sertão da Bahia.

Da última vez que eu tinha ficado dois anos sem ir ao São João de Santa Luzia, nos arredores da Grande Patos, foi quando, médico recém-formado, estudava psiquiatria no Rio de janeiro. Pois também em 2010 e 2011, não fui: em 2010 porque escrevia o desafio a seguir; em 2011, devido ao falecimento de minha Mãe, ocorrido em maio daquele fatídico ano. Mas esse ano eu vou, e por isso, já para a entrada de Junho, vou sertanizando o blogue.

É um desafio longo, uma peça cordelista que nem todos lerão de um só fôlego. Antes de mais nada, modesta homenagem que faço à cidade de São José do Egito, no sertão pernambuncano do Pajeú, considerada a terra dos poetas sertanejos, pois ali nasceram muitos poetas, sendo os mais famosos Lourival e Otacílio Batista, e Rogaciano Leite, entre  outros. A  cena se inicia numa cidade do sertão do Seridó, que tanto pode ser na Paraíba como no Rio Grande do Norte, e vai se encerrar em São José do Egito, havendo, pois, uma "fuga para o Egito", outra pequena homenagem que faço, dessa vez à Obra Maior.

É um desafio com final feliz: apesar dos três primeiros versos, o malungo, rapazote, Zezim, tem sua salvação, não se perdendo totalmente: ele, menino bem criado no sítio de seu pai, idealiza a cidade mais próxima como a síntese da civilização, e em um dia de feira, um sábado que vagava por lá sozinho, vê um cantador de viola fazendo seu improviso e ganhando alguns trocados, responde em versos ao violeiro, ganha sua simpatia, uma viola, e a alcunha de Zé Piola (Piola, algo em extinção, é a guimba, a ponta do cigarro; muita gente no sertão de antigamente pedia muita piola, quase não cobrando crigarros, fumando às custas dos outros, e ganhando tal epíteto), e fugindo, ou sendo raptado meio entorpecido por bebida, arte e outros meios, pelo violeiro Diabo Louro.

Diabo Louro não é flor que se cheire. Violeiro que não se sabe ao certo de onde vem, tem a má fama de que seu canto trazia a morte ou a desonra, pois a quem não lhe pagasse após ouvi-lo, sendo mulher ele violava, e sendo homem, ficava estatelado no chão, sem vida. Acontece que após encontrar Zé Piola, há uma atenuação desse "instinto ruim" de Diabo Louro, que só vai recrudescer em São José do Egito, sendo porém curado de uma vez pela interferência artístico-terapêutica de ninguém menos que o Dr. Antônio Cão, psiquiatra heterodoxo, um ser que ninguém sabe direito também de onde veio, sabendo-se apenas que descende do grande navegador português Diogo Cão, que em fins do Século XIV teria passado no litoral brasileiro, fincado o Marco de Touros no litoral norte-riograndense e, naturalmente, se encantado com a beleza das potiguaras e deixado uma semente bastarda por lá.

Em se tratando de uma cidade pequena, logo correram boatos de que o molecote Zezim teria se envolvido com um arruaceiro na feira, e o pai manda o velho João Mosca-morta ir buscar o menino; há uma bate-boca entre os três, Diabo Louro foge com Zé Piola no Comodoro (um tipo de Opala, famoso carrão dos anos 70, muito chique no sertão dos meus tempos de rapazote).

O destino da dupla quixotesca é São José do Egito, onde chegam numa sexta-feira á noite, hora funesta, que a Igreja Medieval atribuía à reunião das bruxas com o Diabo, o Mestre das Bruxas; há um livro interessante sobre a Inquisição, "Bruxas, Noivas de Satã", que refere uma encíclica papal onde um Papa do Século XI diz ter visto cruzando os céus á noite, montadas em vassouras, uma bando de bruxas lideradas pela Deusa Diana, as quais iriam para um Sabá; tal livro refere ainda que a Noite das Bruxas se reunirem com Sua Santidade o Diabo era na quinta-feira á noite, e que passou a ser uma sexta por volta daquele tempo, para coincidir com o Dia Sagrado dos Judeus, o Shabat, pois que o dia daquele admirável povo se inicia quando o sol se põe, e o Sábado se inicia pois na sexta à noitinha. O desafio de Antônio Cão com Diabo Louro é um Desafio em Noite de Sabá, mas quem vence é o Bem. À chegada na cidade está havendo um sarau pela saúde mental, razão da presença do Dr. Antônio Cão na cidade; a palavra "bespas", pronúncia com E aberto (no Brasil), "béspa", refere às "vésperas" de algo, geralmente alguma festa; no caso, o Desafio de Antônio Cão com Diabo Louro, em Noite de Sabá - um desafio perigosíssimo! Recomendamos cautela...



Há que se dizer que "rói-couro" é sinônimo de meretrício, cabaré, zona. "Já Morreu" é outro apelido sertanejo pra sujeito molenga, ou com cara de peixe-morto, de aparência sorumbática. No Capítulo IV, "Na Estrada Escura da Alma", uma das partes mais belas da presente peça, há menção a más viagens da embriaguez, quando surgem Assombrações clássicas do meu sertão seridoense, algumas citadas no Auto da Catingueira, e outras que eu mesmo inventei. Lá pra diante há a palavra "mausa", pronúncia sertaneja para Mauser, um tipo de pistola, a que Diabo Louro usa.

O poeta Gilmar Leite, nosso amigo nascido em São José do Egito, existe mesmo, como também outras pessoas citadas no poema.

Em nada mais nos restando a dizer, resta-nos a agradecer pela disntinta leitura, e ... Olhos á Obra!

absaam





A PELEJA DE ZÉ PIOLA COM DIABO LOURO, VENCIDA POR ANTÔNIO CÃO



                     "Que adonde ela tivesse, a Véa da Foice tava..."
                               Elomar, no Auto da Catingueira
                  


I - DO BATISMO DE ZÉ PIOLA

Me chamam de Zé Piola,
a cachaça e a viola
foram a minha perdição.

Sou da roça do sertão,
estudei e seio ler,
mas cedo meu coração
descobriu outro querer:
Eu vi numa feira um dia
improviso e cantoria
- Valia  a pena viver!

Apois dei de conhecer
um violeiro famoso
de quem o povo dizia
ter parte com o Tinhoso,
mode sempre que cantava
a Véa da Foice dava
seu recado doloroso.

Qual pavão misterioso
que gosta de se mostrar
tanto a voz como a cabeça
costumava levantar,
e a quem se demorasse
lhe ouvindo e não pagasse
gostava de provocar:

- "O corno não vai pagar?
Esse viado tá liso?
Cantar pra ladrão assim
só vai me dar prejuízo...
Tá se demorando em pé,
vá buscar sua mulher
que beijo, caso e batizo!

Só se não tiver juízo
eu concedo meu perdão;
mas se demorar ouvindo
eu vou chamar de ladrão
caso não deixe um trocado,
e se brigar é finado
e vai pra perto do Cão!"

À sua frente, no chão,
uma maleta de couro
recebia a doação
"em dinheiro, prata ou ouro;
só fumador de maconha,
mentiroso e sem vergonha
não aumenta meu tesouro!"

Eu ri alto, e Diabo Louro
- Tal era o nome do Cão -
volta o par de olhos negros
bem na minha direção:
- "Viadinho de Amanhã,
vá buscar mãe e irmã
pra pegar na minha mão!"

- Tens fama de valentão
mas não largas da pistola...
Eu também posso cantar,
só não sei tocar viola.
E saiba, Zé Brocoió:
estudo e sou De Menor
- Se cobrar vai pra gaiola!

Que nem num jogo de bola
quando o Brasil faz um gol
ao ouvir minha resposta
o povo todo vibrou,
e mesmo o tal Diabo Louro
vendo aumentar seu tesouro
muito animado ficou:

- "De homem na cara eu dou,
na mulher meto o chicote;
menina boto no colo,
com garota danço xote,
a mendigo eu dou esmola
e te dou minha viola
se responder, molecote!"

- Pode arrumar o pacote
que não vou mais pra escola
pois achei um professor
que, mesmo sendo gabola,
vai me ensinar cantoria,
a encrenca, a putaria,
beber e fumar piola.

- "O carro que não atola
é que tem bom condutor;
cabra que canta comigo
sai defunto ou sai doutor,
mas se tiver humildade.
franqueza e fidelidade,
tem um anjo protetor."

O famoso cantador,
conhecido e respeitado,
o violeiro temido
de Diabo Louro alcunhado,
me chamando "Zé Piola"
me deu a sua viola
e um abraço apertado.

Então foi ovacionado
e na maleta choveu
cédula, moeda, aliança,
e um milagre aconteceu:
O judeu Zé Nascimento,
da loja de instrumentos,
outra viola lhe deu.

E também assucedeu
o que chamou atenção:
pois Diabo Louro findou
a sua apresentação
e comigo ao lado foi-se,
sem que a Véa da Foice
deixasse um morto no chão.

        


II - DO PACTO COM DIABO LOURO


Me chamando de irmão,
bem disposto e educado,
pagou minha refeição
num boteco do mercado,
quis saber onde morava,
a idade, e se pensava
em trabalhar no roçado.

De tudo foi informado,
da Fazenda Solidão,
idade catorze anos,
caçula de sete irmãos,
ainda que tinha o plano
de viver que nem cigano
cantando pelo sertão.

Adispois da refeição,
no Hotel Vila Sorriso
me mostrou as posição
de acompanhar improviso
nas cordas de uma viola;
depois deu-me uma piola
que me deixou sem juízo.

Tive um acesso de riso
que quase não finda mais;
tudo que ele dizia
era engraçado demais;
foi quando tive a certeza
que na sua natureza
tinha um quê de Satanás.

Pra qu'eu recobrasse a paz,
pra parar de achar graça,
o Diabo Louro me deu
copo cheio de cachaça.
Depois disse: - "Zé Piola,
pegue já sua viola
que vou dar aula de graça!"

Então virou uma taça
de conhaque de alcatrão
e começou a tocar
a sua improvisação.
Aos poucos fui-me soltando;
quando vi, tava tocando,
depois da sua canção.

- "Sou cantador do sertão,
nascido no Seridó,
do lado da Paraíba,
já perto de Caicó;
já tive grandes amores,
também sofri muitas dores:
hoje levo a vida só.

Sou feito de pedra e pó,
tenho veneno e espinho;
a vida secou meu peito,
por isso vivo sozinho;
mas sou planta do sertão:
se chove, meu coração
se lembra do tal carinho.

Andei pelo mau caminho
pra poder sobreviver;
canto pra não passar fome,
já matei pra não morrer.
De Deus tenho a proteção:
posso até andar com o Cão
que nunca vou-me perder!

Ainda tá pra nascer
quem me vença na viola;
a quem me desrespeitou
matei à faca ou pistola;
quem vem me ouvir de graça
chateio só por pirraça:
ele foge ou se atola.

Carcará mata e esfola,
eu sou que nem Acauã:
quando canto morre um hoje,
ou dois se enterram amanhã.
Mas é boa a minha obra:
Acauã que mata cobra
se é peçonhenta e malsã.

Tarde, noite ou de manhã
posso fazer cantoria.
Hoje achei um molecote
que sabe fazer poesia;
nesse baião de viola
eu convido Zé Piola
pra me fazer companhia.

Eu lhe dou a garantia
de pano e sobrevivência;
cê fica dois ou três mês
táli como experiência.
Prometo: se não gostar
vir eu mesmo lhe deixar
lá na sua residência."

- Só não tendo inteligência;
só tendo a insanidade
de ser burro de nascença,
perdia a 'portunidade
que vale mais do que ouro:
aprender com Diabo Louro
ser cantador de verdade!

Eu juro fidelidade
a meu Mestre Professor,
e ao mesmo tempo agradeço
o imensurável favor
de entrar na sua escola
pra conhecer da viola
seus mistérios e valor.

Por onde meu Mestre for
prometo que irei consigo;
na alegria e na dor
serei sempre seu amigo;
e se tal jura trair
terei que admitir
até o mortal castigo!

- "Prometo te dar abrigo
e tratamento distinto;
a tudo que perguntar
prometo que jamais minto;
e sem mais formalidade,
saudemos nossa amizade
brindando com vinho tinto!"

         


III - DA NOVA FUGA PARA O EGITO


Eis que então no recinto
se ouviu baterem à porta.
Diabo Louro levantou-se,
a figura meio torta,
e quando a porta se abriu
foi que Zé Piola viu
o velho João Mosca-morta.

- "Se o senhor não se importa,
seu pai disse, Seu Zezim,
que o senhor fose pra casa
pois, se ele o visse assim,
podia dar confusão:
alguém ia pra prisão,
ou talvez lugar mais ruim..."

- Quem foi que disse a Paizim
o que eu andava fazendo?
- "Nossa cidade é pequena
e todo o povo tá vendo...
Logo correu o boato
de viola e assassinato
que o senhor tava bebendo..."

- "Assumo o que tô fazendo
e enfrento qualquer um!
Diabo Louro nunca teve
medo de homem nenhum:
vindo juiz, delegado,
daqui sai morto ou capado,
ou corre soltando pum..."

- "Homem, deixe de lundum...
O velho Manuel Morais
se dá bem com todo mundo
e sempre viveu em paz.
Estando um filho em apuro
não há lugar mais seguro
que a casa de seus pais!"

- Vade retro, Satanás!
Homem, que estória é essa?
Eu estou é bem demais,
eu tô é curtindo à beça!
Lá em casa é engraçado:
Só Jorge que é sempre amado,
e vive pregando peça....

Não tenho nenhuma pressa:
meu véi tá enciumado
por não poder hoje fazer hoje
o que não fez no passado?
Tô aprendendo viola...
Cê pensa que só na escola
é que se é educado?

- "Cê tá é embriagado...
Tenha cuidado, Zezim:
Já vi muito prejuízo
por causa de gente ruim..."
Nessa hora Diabo Louro,
raivoso que só um touro
na arena, diz assim:

- "Se está a falar de mim
preciso me defender:
nunca fale mal de um homem
antes de o bem conhecer;
além de não ser direito,
você mostra alguns defeitos
que procurava esconder.

Mas nós vamos resolver:
já tá passando da hora!
Vou mandar fechar a conta:
também já me vou embora.
No carro eu levo o Zezim...
Mas, já que sou gente ruim,
queira esperar lá fora!"

- "Pois não, senhor, sem demora!"
- Mosca-morta desce, aflito. -
Então disse Diabo Louro:
- "Melhor evitar atrito...
Tenho um plano a revelar:
Você já ouviu falar
em São José do Egito?"

- Final do Gênese... Bonito!
História cheia de encanto.
Era um filho de Raquel
com Jacó, e assim portanto
viveu antes que Jesus
fosse pregado na cruz...
Ôxente, mas ele é santo?

- "Bom, de santo eu não sei tanto,
mas de canto e canto, sei.
Existe um canto onde o canto
- o canto que lhe ensinei -
onde o canto é mais bonito:
É São José do Egito
- Lá onde o Poeta é rei!"

- Ah, agora me lembrei:
uma Terra de Artistas....
- "Essa mesma: em Pernambuco,
terra dos irmãos Batista
e de Rogaciano Leite...
Enquanto isso aproveite:
vá tomar banho e se vista;

vou mandar fazer a lista
e pagar a minha conta.
Nessa maleta maior
tem roupa lavada e pronta.
Certamente alguém vai vir
o frigobar conferir
enquanto você se apronta."

Com a cabeça meio tonta,
desci a escadaria.
Me vendo o véi Mosca-morta
satisfeito, já saía;
alguém foi buscar as malas,
e Diabo Louro sorria.

Assim, no final do dia,
para ficar mais bonito,
eu era o Santo Menino
em fuga para o Egito.
Comodoro fez o rapto,
pra se celebrar o pacto
lá no Pajeú bendito.


     

IV - NA ESTRADA ESCURA DA ALMA

                  "Andam monstros sombrios pela estrada,
                   e pela estrada, entre estes monstros, ando."

                                   Augusto dos Anjos


                  "Na estrada do desengano
                   andei de noite e de dia:
                   apois sim tá certo, vamo
                   cantar qualquer cantoria..."

                                   Elomar F Mello


Ainda hoje me agito
quando lembro a aventura
de ter saído escondido,
fazendo feia figura;
e enquanto voava o carro,
fumamos grosso cigarro
pra entrar na noite escura.

Sei que a uma certa altura
botei pra desconfiar
qu'estávamos sendo seguidos,
tinha alguém a vigiar...
Em tudo via malícia:
todo carro era polícia
que nos queria pegar.

Mas quando ousei perguntar
ao companheiro do lado,
vi Diabo Louro sorrir
como se fosse engraçado;
e ainda, achando pouco,
vei com assuntos de louco
e mundo mal-assombrado...

Falou de um Abilolado,
que endoideceu menino;
da jovem que correu doida
ouvindo tocar um sino;
e de Mané Catrevagem,
que depois de uma viagem
perdeu para sempre o tino.

Me contou de Celestino
que não parou de rezar,
da menina que morreu
feliz de tanto dançar,
e de um tal de Papafigo,
que se finge de amigo
pra crianças devorar.

Depois botou pra falar
da loucura cantadeira,
do amigo que endoidou
cantando em uma feira
famosa de Pernambuco,
e do poeta maluco
chamado de Zé Limeira.

E eu sentindo leseira,
idéias se indo embora,
pedaços d'alma ferida
tavam saindo pra fora,
e uma Voz me dizia
qu'eu num manhecia o dia:
ia chegar minha Hora.

Vi Saci e Caipora,
vi cabras de Lampião;
vi a Mula Sem Cabeça
correndo na contra-mão;
vi a Bruxa Bruzancã,
vi Gato Preto e Anã,
o Sapo Sunga e o Cão.

Eu vi uma procissão
só de gente degolada,
perdida, sem direção
e sem poder dizer nada,
mas me mostrando, por gestos,
que um destino funesto
era o fim daquela estrada.

Vi a Casa Abandonada
e vi a Cruz da Menina;
uma velha desdentada
maldizendo a minha sina;
e cigana cartomante
avisar que "mais adiante
essa agonia termina."

De cintura muito fina
esqueleto sensual
usando rouge e batom
prometia amor carnal,
pois inda tinha nos ossos
uns pendurados destroços
de pele cheirando mal.

Eu devo ter visto o tal
Boi Tatá dos cachaceiros;
fui vítima do Lobo Mau
que vive nos pardieiros
acuando as más viagens
com as latumia e visagens
do espíritos zombeteiros.

Xiquexiques e cardeiros,
magros e ameaçadores,
apontavam para mim
seus dedos indicadores,
e repetiam meu nome
como o causador da Fome,
da Peste e das Grandes Dores.

Ao ver meus dissabores
Diabo Louro, bicho ruim,
em vez de me ajudar
botou pra zombar de mim:
- "Acaso viu Lobisomem?
Tem medo de virar homem?
Já quer voltar pra Paizim?"

Daqui mais um bucadim
Tem a Serra do Teixeira
onde mora onça-pintada
e tamanduá-bandeira..."
Porém, teve que parar,
pois botei pra vomitar,
me deu uma tremedeira.

Vendo ter feito besteira
o homem se desculpou,
me pôs no banco de trás,
depois o carro limpou,
e disse: - "Não tenha medo,
pois ainda é muito cedo,
nem Nove Horas chegou."

Então tudo melhorou
pois eu vi, pela janela,
a minha Madrinha Lua,
bola de ouro amarela,
e, seguindo a tradição,
alevantei minha mão
e tomei a bênçao a ela.

- Ó Lua Cheia tão bela,
companheira sempre pura
não obstante as mazelas
que padece a criatura,
alumia a minha estrada,
traz a paz tão desejada,
sê o Sol da Noite Escura!

Não houve mais amargura:
Mâe Natura me acolheu
em seus braços com ternura,
e a vista escureceu.
Foi um sono de granito:
Só São José do Egito
pôde abrir os óio meu.

       
             
V - LATIDOS DE CÃO AMIGO


- "Vê se acorda, ô Já Morreu!"
- Fui desperto pelo grito
que ouvi de Diabo Louro:
- "Preguiça não é bonito!
É hora de despertar
para poder contemplar
a São José do Egito!"

Eu me sentia esquisito...
Minha cabeça doía;
uma sede muito grande
o meu corpo padecia.
Um pouco de sono e calma
na verdade a minha alma
desejava e me pedia.

- "Ressaca de cantoria,"
- Diabo Louro me explicou
- "Overdose de Poesia
foi o que lhe derrubou.
Agora já pro hotel
que está cheio o bordel..."
Então alguém nos saudou:

- "Boa Noite a quem chegou
e a quem aqui já estava!
Enfim é chegada a hora
que a cidade esperava:
Vai ter início o Sarau
Pela Saúde Mental
do Pajeú - Terra Brava!

Vou já passar a palavra
a poetas do sertão
pra declamarem seus versos
ou de algum poeta irmão;
mas para abrir o sarau
vou chamar um de Natal:
o doutor Antônio Cão!"

Ninguém na recepção
e nem também no café.
Todos estavam aguardando
alguém em quem tinham fé.
E eis que, a essa altura,
estranha e magra figura
cantou, ficando de pé:

- "Doutor, o senhor que é
padre, juiz, delegado,
grande cacique político
e bom tangedor de gado,
perdoe o verso que faz
nesse seu canto de paz
um poeta adoidaiado.

Doutor, não fique zangado
por não ver em seu curral
o povo tão satisfeito
como aqui nesse sarau,
trazendo a poesia mansa,
semente de esperança
para a saúde mental.

Nós viemos de Natal
para lutar no sertão
trazendo as nossas armas,
voz, poesia e violão,
- Deixe o poeta cantar!
Não mande seu carcará;
esqueça seu gavião.

Trazemos no coração
nosso sangue, nosso canto,
eu só derramo o cantar
porque dele vejo encanto;
deixe o sangue no lugar,
porque se o derramar
pode haver mais do que pranto.

A noite vestiu seu manto,
enfeitou-se de luar,
o povo saiu pra rua
pra ouvir nosso cantar,
daqui a pouco a sanfona
rasga a fama de cafona
e faz o povo dançar.

Deixe o poeta cantar
agora seu canto novo,
não permita que a serpente
de novo plante seu ovo:
a violência é semente
de ódio, inveja demente,
e só faz sofrer o povo.

Triste sertão do estorvo
de tiroteio e punhais,
da vingança e violência
comuns nos reinos feudais,
vamos plantar canto novo,
fazer nascer nesse povo
mais bonitos ideais!

Tem fábricas e hospitais,
tem quadrilhas e escolas,
tem fazendas e currais,
tem muito jogo de bola,
tem gente se arrastando
pelas ruas mendingando
atrás de alguma esmola.

Eu vou guardar a viola
e dar voz a meu irmão,
vamos plantar a lavoura
da cultura no sertão;
- que Deus nos livre das pragas
que impregnam estas plagas
com inveja e traição!"

Ouviu-se então no salão
a grande salva de palmas.
Diabo Louro já nervoso,
como quem enfrenta um trauma,
grita: "Alguém pode me escutar?"
Logo o abraça Gilmar,
lhe dizendo - "Tenha calma!"

A moça chamada Jalma
vem para a Recepção,
e diz para Diabo Louro:
- "Tô com superlotação"
Então Gilmar Leite arrasa:
- "Vocês ficam lá em casa
com Doutor Antônio Cão."




VI - DAS BESPAS


Muitas vezes um irmão
nos vem de outra linhagem
que não a hereditária,
aprendi nessa viagem:
comecei a melhorar
depois que o bom Gilmar
nos ofertou hospedagem.

Com muita camaradagem
o bom homem se dispôs
a nos levar para um banho,
e vir conosco depois
para que, quando o sarau
chegasse ao seu final,
pudéssemos cantar nós dois.

- "Vamo logo, ora, pois, pois!"
- Respondeu meu professor:
- "Esse tal Antônio Cão
é mesmo bom cantador?"
- "Não é tão bom violeiro
qual você, bom companheiro,
mas é poeta, o doutor."

- "E por que o tal senhor
podendo se hospedar
lá no Hotel da Capela,
veio escolher o seu lar?"
- No carro nos afastando,
os dois iam conversando,
eu atrás a escutar.

- "Além de ouvir Elomar,
de quem tenho a coleção,
foi pra ter mais liberdade
que o Doutor Antônio Cão
que há tempos é meu amigo,
de hospedar-se comigo
fez a honrosa opção.

O menino é seu irmão?"
- "É meu aluno e... Sobrinho!
Inda está engatinhando
nas cordas do nobre pinho....
Eu lhe dei essa viola
e o nome de Zé Piola:
ele gosta de um fuminho..."

- "Filho de gato é gatinho...
Ele tem a quem puxar.
Chegamos: aquela casa
em São José é meu lar."
- "Na maleta azul, Piola,
tem toalha... Não amola:
Vê se não vai demorar..."

Enquanto vou-me banhar
os dois ficam conversando.
Com o tempo escuto o grito:
- "Zé, você tá demorando!..."
Ao sair, diz Diabo Louro:
- "Vou já lavar o meu couro",
e se levanta cantando:

- "Homem, vá se preparando
para um duelo do Cão.
Nessa noite Diabo Louro,
novo Terror do Sertão,
seus versos vai derramar,
e um certo alguém vai ficar
estatelado no chão...

Sei fazer xote e baião..."
ele segue improvisando;
um cigarro fedorento
pro banheiro vai fumando.
Mas ao sair do banho
ele se mostra tacanho
ao me ver telefonando:

- "Com quem cê tava falando
que não lhe dei permissão?
- "Ele pediu pra ligar
pra casa de seu irmão..."
- "Já foi falar com Paizim
de novo, moleque ruim?
Vou te dar uma lição!...."

Eis que chega Antônio Cão
gingando e fazendo fita:
- "Ora, ora! Não me digam
que aqui temos visita...
Um dupla violeira!
A festa vai ser maneira;
a noite vai bonita!

Estela, Soraya e Rita
estão a nos esperar.
Já fizemos nossa parte,
o sarau vai terminar.
Vocês tavam demorando...
No carro estão aguardando,
eu vim aqui vos chamar."

- "Deixe eu vos apresentar
o Doutor Antonio Cão..."
A mim e a Diabo Louro
o doutor dá sua mão.
O Mestre, contrariado,
inda meio atrapalhado,
faz sua apresentação:

- "Quando morreu Lampião,
que foi o Rei do Cangaço,
Deus do Céu, vendo o sertão
sem mais ter homens de aço,
mandou fazer Diabo Louro:
- Acauã, Onça e Besouro,
de Tamanduá abraço..."

"- Todo circo tem palhaço,
tem trapézio e tem magia.
Vamos ver em qual dos três
o senhor se enquadraria...
Mas cante qual cabra macho,
se não tua lona eu racho
e roubo a tua guria..."

-"Esperava cortesia,
mas o senhor me irrita:
pois saiba que vou tomar
sua Maria Bonita.
Das três me diga o seu nome,
Assombração, Lobisome:
Estela, Soraya ou Rita?"

Uma Voz de Fêmea grita:
- "Ora, gente, por favor!
Vamos pra outro lugar,
guardem os versos de valor
pra gastar em outro canto...
Noite tão cheia de encantos,
de mistérios, de amor..."
  

       
VII - DE UM DESAFIO EM NOITE DE SABÁ

- "Mas se um da gente for
comprar comida e bebida"
- Perguntou Diabo Louro
- "Não será melhor, querida?
Muito tenho viajado,
estou um pouco cansado...
Que a maioria decida!"

- "Não havendo outra saída..."
diz Rita, contrariada.
Ela então fala seu nome,
e também são apresentadas
as outras duas depois,
como também são os dois
recém-vindos à noitada.

- "Temos cerveja gelada"
- Foi dizendo Antônio Cão
- "E cana na geladeira;
Gilmar busca outra porção.
Vamos ouvir Elomar:
depois se pode cantar
algum verso ao violão."

Diabo Louro disse - "Não!"
mas Soraya liga o som
com as "Cartas Catingueiras".
Diz Antônio - "Muito bom!
Vou pegar uma gelada..."
Diabo Louro faz piada:
- "Quero cachaça, garçom!"

Segue o papo nesse tom,
se falando amenidades.
Vez em quando se elogia
alguma das três beldades.
Gilmar traz Tonha e Côrrinha,
sendo esta a mais novinha:
deve ter a minha idade.

O doutor, muito à vontade,
com Soraya se beijou.
Diabo quis pegar Côrrinha,
a qual a custo escapou.
Me mostrei interessado,
ela veio pro meu lado,
e tudo se ajeitou.

Diabo então se levantou,
olhou pra Tonha e sorriu;
muito animado ficou
pois ela retribuiu:
se chegou para a donzela,
falou no ouvido dela;
depois o casal saiu.

Logo Antônio Cão pediu
de novo a sua viola;
Soraya a foi buscar,
ele disse - "Zé Piola,
bom garoto do sertão,
acompanha Antônio Cão
num pequeno bate-bola?"

Eu erro, ele me consola,
depois a gente acompanha;
de sextilha ou septilha
o Piola tem as manha.
E doutor Antônio Cão
eleva a voz no salão,
enquanto as cordas arranha:

- "Você hoje aqui apanha
se não responder direito
mostrando pra todo mundo
que é cantador de respeito!
Me diga, meu bom menino:
como cruzou seu destino
com o daquele sujeito?"

- O senhor tá com despeito
de meu mestre professor,
pois sabe-o mais competente
no canto que o senhor;
também mais sábio, mais forte
e mais bonito no porte,
e que ele tem mais valor!

- "Ora, me faça o favor...
Tô muito preocupado!
Um molecote tão novo
parece já transviado...
Eu faço até uma aposta:
alguém que d'outro assim gosta
deve estar apaixonado..."

- Você tá equivocado,
seu doutor Antônio Cão:
todo aluno por bom mestre
tem grande admiração.
Se da macheza duvida,
me empreste sua querida
que eu dou a comprovação.

- "Vou te dar uma lição
que vai ser sua desgraça:
seu corpo de suas vestes
em tamanho descompassa;
chegando aquele momento,
do minúsculo documento
ela ia até achar graça..."

- Eis que, vindo lá da praça
muito bem acompanhado,
Diabo Louro está de volta,
e o senhor tá desgraçado:
me tratou com zombaria,
mas agora em cantoria
você vai ser derrotado.

- "Eu estou preocupado,
poeta, e tenho razão:
O Zezinho por você
tá morrendo de paixão;
ele mal o avistou
rabo estre as pernas botou:
- quer o colo do paizão!"

- "Seu doutor Antônio Cão
eu não sei o que é pior:
se é fazer verso tão ruim
na falta de um melhor,
ou então, na sua idade,
vir para estranha cidade
e bater num De Menor..."

- "Tá se achando o maior
mas é um pobre coitado:
se aqui tem De Menor
eu estou preocupado,
pois um cabra sem vergonha
saiu pra fumar mais Tonha
e voltou muito excitado..."

- "O senhor tá enganado,
seu dotô, a meu respeito;
eu não sou cabra safado,
garanto, sou bom sujeito:
se um defeito há no Louro
é ser doido por rói-couro,
se é que isso é defeito..."

- "Cantando assim desse jeito,
com mentira e fantasia,
tá ficando cansativo,
tá me dando uma agonia...
Fico desestimulado:
proponho, Santificado,
dar pausa na cantoria!"

- "Como a vossa senhoria
convir, ou bem aprouver:
melhor que cantar com macho
é ouvir voz de mulher...
Ou cê quer parar agora
pra gente brigar lá fora?
Seja como cê quiser!"

- "Seu cantador, se puder,
peço pra não esquecer
que quem tem instinto ruim
não deve muito beber...
Pois sabe a humanidade
que no vinho a verdade
costuma de aparecer..."

- "Você não ia correr?
Não tinha pedido pausa?
Se acaso desistiu
me diga qual é a causa
pela qual parar não quer?
Cê não gosta de mulher
ou tá com medo da Mausa?"

- "Vou te dar honoris causa
pela beleza da rima...
Viola com violência:
é esta a tua obra prima?
Oh, não me faças vergonha!
Fuma de novo mais Tonha
para ver se se anima..."

- "O negócio é mais em cima:
agora o Diabo deu popa!
Me ouviu, tem que pagar,
meu canto não é estopa:
Vamos, Côrrinha e Soraya;
- Tirem a blusa e a saia;
depois, o resto da roupa!"

Uma responde: - "Me poupa!"
A outra diz: - "Assim, não..."
Porém logo se percebe
que vai dar em confusão,
e quem puder se garanta:
Diabo Louro se levanta
com uma faca na mão...

 
       
VIII - EPÍLOGO


Todos naquele salão
ficamos pinotizado.
Mas eis que Antônio Cão,
experiente  e letrado,
com sabedoria e calma
tirou do fundo da alma
outro verso assim cantado:

- "O Poeta nasce armado,
por dádiva do Criador,
com a palavra cortante,
com o verbo construtor,
e cada um que decida
que uso vai dar na vida
à tal dádiva do Senhor.

Uns cantam Paz e Amor,
outros a Guerra, a Intriga;
há o verbo que separa
e há aquele que liga.
Nós não viemos lutar,
mas sim o canto escutar:
- ninguém quer saber de briga!

A arma na mão amiga
primeiro causa surpresa;
depois, caso seja usada,
provoca grande tristeza,
e dor, e pranto, e lamento,
e grande arrependimento
em quem agiu com vileza.

O seu canto tem beleza
mesclada com amargura:
tire a faca dessa mão
que sabe usar da candura!
Sexta à noite, Diabo Louro,
é hora de mau agouro:
não faça feia figura!

Ora, que lição tão dura
queres dar a Zé Piola?
Ele só quer aprender
contigo a tocar viola;
não quer ver um corpo exangue
perdendo todo seu sangue
devido a faca ou pistola.

Como quem pede uma esmola
eu lhe peço pra soltar
essa arma, em respeito
a seu amigo Gilmar
e as cinco flores belas,
esperançosas donzelas
que querem te ouvir cantar.

Um passo te convém dar
para que tu cresças mais:
pague a quem te acolheu
com sorrisos, não com ais!
Bota essa faca no chão:
mais convém à tua mão
um instrumento de paz!"

Não esquecerei jamais
o que passou-se em seguida:
Diabo Louro solta a faca
e - Pobre alma arrependida! -
cai em um profundo pranto.
Antônio Cão pára o canto
e abraça a fera ferida.

Não houve depois dormida,
e me confesssei a Cão.
Contei da fuga de casa
e que aprendera a lição:
devolvi minha viola,
deixei de ser Zé Piola
e voltei pro meu rincão.

Paizim me deu seu perdão,
minha Mãe me abraçou;
o doutor Antônio Cão
em nossa casa almoçou;
Meus irmãos fizeram festa.
Daquela noite funesta
lembrança amarga ficou.

Muito tempo se passou
pra que eu visse Diabo Louro.
Cumprimentei-o e deixei
algo para seu tesouro.
Porém, depressa saí
e quase que não ouvi
seu canto de mau agouro.


             Antônio Adriano de Medeiros
             João Pessoa, junho e julho de 2010

domingo, 20 de maio de 2012

De quatro poemas afins


a lua em foto de oswaldo ribeiro filho, no céu de natal, mas com arbustos das dunas



Apois não é que há alguma relação entre todos os dois, ou os quatro poemas  a seguir? 

Eles - os quatro, ou os dois poemas a seguir - tratam de Deus, e do Diabo, e do Sol e da Lua, e da Mulher.

Essa Desgraçada, essa Flor do Mal, essa Deusa, essa Diaba, essa Fingida é a Terra onde medra a abominável e adorável e, quase sempre, louvável - até porque renovável - estirpe humana, e tem sido - talvez pela tempestade de sentimentos que desperta em seus filhos, que são todas as criaturas humanas, essa cambada de Filhos da Puta (e da Virgem, quase naturalmente) - sim, tem sido não totalmente sem razão, historicamente comparada a  Deus e ao Diabo, e ainda à Lua, mas mui raramente - interessante isso! - se compara a Mulher ao Sol. 

Poderia muito bem e de bom grado me perder nessa floresta de símbolos e de apelos discorrendo sobre tais mui justas correspondências, mas cansaria o leitor que decerto tem coisas muito importantes com que se preocupar, inclusive sua Maior e suas Pequenas - essas coisinhas tão adoráveis -  (sim, todas elas são suas, muito suas, demasiado suas, e sempre suas, não se esqueça disso!), mas não, vou falar só de minha coisas bem sentimentais.

O poema, os três poemas reunidos sob o título Deus e o Diabo na Terra do Céu, nasceu bi era composto só de dois sonetos, um tratndo do sol e o outro, da lua; mas um dia, aguardando com minha saudosa Mãe, lá debruçado sobre o muro da casa onde nasci a passagem da Procissão de Santa Luzia lá sobre a ponte do Açude Velho, quem, diga-me quem deu de surgir radiosa e dorada e bem grandona lá no céu? Ora, ora, mas é claro que foi a Lua. Que fez aquela boa mulher quando lhe chamei a atenção paraaquela lua tão cheia de luz? Ergueu em sua direção aquela mão direita que me segurava quando aprendi a nadar nas águas tão doces daquele velho açude hoje seco, e disse, com aquela voz tão cheia de sentimentos para meus ouvidos sempre fadados a sempre achar agradável aquela música, e falou - "A bença, Madrinha lua!", ensinando-me ali - Rogo ao Supremo que releve um  pouco se por acaso a boa mulher ali pecou! (- Besteira, Supremo: sei que você gostou!) - uma estranha adoração pagã diante da procissão que também surgia na Terra da santa cristã, uma espécie de Menina Jesus cega de tanto ver o Amor de Cristo, pois bem, uma estranha adoração pagã pelo astro, pois me ensinou que toda vez que se via a Lua Cheia em sua primeira manifestação mensal, se devia erguer a mão direita (ou decerto a esquerda para os sinistros) e dizer aquelas palavras.

Notei então que havia sido ingrato com a Lua no poema, e precisei acrescentar pois seu terceiro componente. Soubera algus dias antes de como se deu a gênese da Lua, e que a mesma está se afastando gradualmente da Terra Mãe alguns milímetros a cada ano, e ainda que foi a Lua que ordenou a órbita pontual da Terra, que até então, antes de ter sua filha e companheira Perséfone, girava meio desordenada e irresposável; e que tal ordenamente orbital que possibilitou o surgimento das Estações, e da vida - Isso é Mistério de Elêusis puro!

 Uma das muitas possíveis correspondências entre a Mulher e o Sol diz respeito ao espargimento de sangue e luz; ambos sendo imprescindíveis à nossa espécie, como os Dois, ou os Quatro.

Elementar, meu caro Washington!


absaam




O TRIBUTO DA MULHER

Qual o preço de ser a flor mais bela
dentre todas desse terráqueo jardim
e à noite brilhar mais que uma estrela
com mais graça que um anjo serafim?
Se mais velhas levam delicadeza
quando saem às ruas da cidade

– O sorriso é prenhe em gentileza;
e seus olhos são mares de saudade.
Certamente alguém que sofre tanto
tem no peito a fonte da poesia:
coração de mulher seca seu pranto
na esperança de ter uma alegria.
E sei que é alto o tributo com que arca:

o paga em sangue, e lá desde a da menarca.
  

               Antônio Adriano de Medeiros



 
DEUS E O DIABO NA TERRA DO CÉU


 


LUZ

Interessado que sou por mistérios ancestrais,
fui descobrir certa vez, num livro de Astrologia
- Velho e erudito Tratado como não se escreve mais -
as relações de alguns astros com a Fé e a Biologia.
Discorria sobre todos os corpos celestiais,
porém diferenciava a Ciência da Magia,
defendendo que a de fato são outros corpos astrais
que muito influenciam a nossa psicologia.
Dizia que Sol e Lua são bem mais determinantes
de nosso comportamento do que estrelas distantes:
o Sol é um astro vivo a espargir luz e calor,
e nenhum outro se equipara no Universo ao valor
que o astro-rei possui para a humanidade:
pois ele criou a Vida, ele é que é deus de verdade.

 


TREVAS

Não há trevas que resistam na Terra à luz do Sol,
- deus que morre e ressuscita a cada dia - :
quando ele morre, logo a Terra cobre-se com o lençol
negro do Luto, e em sinal de respeito silencia.
Sem ele é que então a Lua pode brilhar,
pois que as trevas são reino negro e frio:
toda dourada no horizonte ao despontar,
veste-se de prata quando escala o céu sombrio.
A Lua é astro parasita da luz verdadeira,
seu brilho é belo porém falso, pérfida Lua, alcoviteira
das coisas escusas, que encanta amantes e atiça
ímpetos criminais: sob seu reino o Pecado viça.
- Ó astro morto condenado ao fingimento eterno,
sei que no céu representas o Senhor do Inferno!
 



- A BÊNÇÃO, MADRINHA LUA!

Filha-irmã da poeira que ascendeu
quando a oceânica e primitiva Terra
explodiu ao chocar-se com Orfeu
- gigante da estirpe vagabunda que erra
no Cosmos à procura de uma fêmea
consistente e macia que o acolha e exploda
de prazer ao curá-lo de sua natureza boêmia -,
sei que tu és a um só tempo toda
bela e útil, pois que ordenhaste a vida
extraindo leite puro de um seio mineral
quando ordenaste a órbita da mãe perdida,
regulando dessa forma o seu ciclo sazonal.
E agora que te afastas e que de ti duvidei,
ó Lua!, te peço, com todo ardor dos fanáticos,
teu perdão e bênção, pois muito bem sei
que és a madrinha de todos os lunáticos.

 

              Antônio Adriano de Medeiros

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Antônio Cão celebra um casamento no Inferno



Um de meus poucos heterônimos, ou pseudônimos,  é Antônio Cão, "psiquiatra heterodoxo", que eu não sei bem dizer o quê significa, apenas que o Doutor Antônio Cão tem coragem de dizer e fazer certas coisas que os psiquiatras reais, digo, da realidade, são impedidos pela Ética e pela Tradição, como por exemplo revelar segredos da vida de seus pacientes e descer aos Infernos para celebrar o casamento de duas almas pecadoras, atendendo a um convite do próprio Diabo, transmitido por um emissário infernal. Não que eu já não tenha celebrado um casamento matuto num hospital psiquiátrico, de batina e com linguagem litúrgica, e que a mãe da primeira noiva retirou a filha do hospital sob termo de responsabilidade ao saber que a mesma "ia se casar com um louco" (sic), como também aconteceu com a referida Zabé do rimance a seguir.

O cangaceiro Pilão Deitado na verdade era "um cabra de Lampião" porque era um cangaceiro, mas sim do bando de Antônio Silvino, e morreu mesmo num casamento, celebrado na Fazenda Pedreira, no município de Caicó - RN, em 1901, no episódio que ficou conhecido como O Fogo da Pedreira, e que se encontra narrado numa da páginas deste blogue, a saber na página Causos e Causos, á qual se vai clicando aí em cima no nome da referida página. Já Zabé, a noiva suicida, é fictícia, e sua história pertence ao Reino da Poesia, e é contada no poema.

Há, modestamenete, impressionante riqueza de imagens poéticas no inferno poético descrito no poema a seguir, como a celebração do amor mesmo em hostes malditas, que o amor é universal, a emoção de Lúcifer ao ver um médico descer à seu palácio da amargura e do castigo esternos para atender a um convite seu (se bem que determinado por uma súplica da noiva, e ratificada por feiticieiros respeitados, como se verá no bojo do poema), até a própria liturgia do matrimônio em si, mui bela, pelo menos a nosso modo de ver.

Notar que talvez haja um trocadilho em substituir "emissário" por "´missário", se bem que o fiz - a meu ver, pelo menos - por razões da Métrica, se bem que posso mesmo ter sido usado por Forças Obscuras... É que o Doutor Anônio Cão descende de Diogo Cão, primeiro navegador a por os pés em hostes americanas ao sul do Equador, tendo ele inclusive deixado um Marco na Praia de Touros, no litoral do Rio Grande do Norte, ali pertinho de Natal, e quando encarno Antônio Cão também posso estar sendo levado por estranhos ventos para a Terra do Pecado, e temo ser o Brasil o representante na Terra de um certo lugar... Bom, recomenda-se, mais do que nunca, cautela ao leitor, mormente deve ele levar em consideração a aviso da última estrofe do presente rimance de cordel.


absaam




UM CASAMENTO NO INFERNO


Eu já desci ao Inferno
a convite do Capeta
que me mandou um 'missário
conhecido por Zambeta
que de chifres tinha dez,
às vezes tinha dois pés,
noutras vez era perneta.

Que me contou que Capeta
- o falso, o mal, o astuto -
andou sabendo que existo,
e das coisas com que luto;
e que eu fora intimado
pois ia ser celebrado
um casamento matuto.

- Meu bom leitor, eu labuto
com preciosas jazidas:
são as almas dos lunáticos
- naus que se acham perdidas;
prisioneiras do Lamento
que, às vezes, um tormento
as transforma em suicidas.

Me fora das mais queridas
a pessoa de Zabé:
da raça das deprimidas
que perderam toda a fé;
seres de estranha calma
que às vezes prometem a alma
a um tal de Lucifé...

Aconteceu de Zabé
matar-se num Carnaval,
fantasiada de noiva
com requinte especial:
escondido no corpete
ela trazia um bilhete:
- "Fui prometida ao Mal!"

Saía do hospital
e vi 'missário do Cão,
e quando fui inteirado
de toda a situação,
eu perguntei, assustado:
- "Mas me diga, Cão danado:
e quem é o noivo, então?"

- "Um cabra de Lampião
por nome Pilão Deitado
que foi morto no sertão
numa festa de noivado,
fez que n'é da conta minha...
Só sei que a tal doidinha
está feliz um bocado..."

- Meu bom leitor, fui tomado
por uma forte emoção:
agora conto ao prezado
de uma certa ocasião...
- Uma coisa muito triste,
pois isto também existe -
numa Festa de São João...

Dispara meu coração
ao fazer tal relato;
eu sinto forte emoção
quando me lembro do fato:
coisas que nunca se esquecem...
Certas coisas que acontecem
com os seres a quem trato.

Às vezes algum ingrato
põe um trabalho a perder
e destrói a alegria
quand'estava a florescer...
Pois existe gente ruim
que se entra num jardim
não deixa uma flor crescer.

Ela pensava em morrer,
por isso fora internada.
Mas ao saber que a Quadrilha
seria realizada
com casamento matuto,
Zabé despiu-se do luto:
queria ser a casada!

Mas a mãe fora informada
daquele tal casamento
- uma simples brincadeira
lá na Casa do Tormento -
e, se dizendo ser nobre,
ao ver um noivo tão pobre
não deu seu consentimento.

E causou constrangimento
tremendo no manicômio,
humilhando alguns doentes,
me chamando "Doid'Antônio";
que, diante da Quadrilha,
preferia ver a filha
ser entregue ao Demônio...

O noivo, o triste Perônio,
ficou muito chateado;
porém, no correr dos dias
de novo o vi animado,
pois a noiva Bastiana
mostrou-se muito bacana,
e foi bonito o noivado!

E quando fui informado
da ordem de Lucifé
eu entendi o que houve
com a infeliz Zabé:
o seu triste coração
nos braços do tal Pilão
recuperou sua fé.

- "Vá dizer a Lucifé
que eu faço o casamento!"
- "Então vamo logo agora,
Seu Dotô, neste momento..."
- "É bom o Diabo esperar,
pois eu preciso ir buscar
os devidos paramentos".

- "Seu Dotô, muitos nojentos
que foram padres na terra
vão direto pro Inferno
quando a vida se encerra:
comeram tanta menina
que no Inferno batina
dá mais que chuchu na serra!"

- "Às vezes a gente erra
ao fazer um prognóstico
por desconhecer nuances
do vero diagnóstico...
Mas escute bem, Zambeta:
serei padre do Capeta,
mas saiba: sou agnóstico!"

- Leitor, não posso ser lógico
onde há feitiçaria:
Zambeta deu-me uma hóstia
e, quando eu engoli-a,
vi labaredas de fogo;
uns bebendo, outros no jogo,
gritos e pancadaria.

Por volta do meio-dia,
era hora do almoço.
Vi vampiresa mirando
o meu distinto pescoço,
e um diabo-general
que comia um Cardeal
me oferecendo um osso.

Zambeta disse: - "Tal moço
veio a convite do Rei".
O general, animado,
logo respondeu: - "Já sei!
É para o tal casamento
que causa contentamento
à nossa mais nobre grei?"

De Lucifé perguntei
se alguém dava nutiça;
o general vomitou
um pedaço de carniça
da língua do Cardeal,
e este disse, afinal:
- "Ele foi pra santa missa..."

- "Se tem quem celebre missa,
o que foi que vim fazer?"
- "O problema é que a noiva,
dotô, escolheu você...
E também devo contar
- ó, não vá se chatear -
Alguém o quer conhecer..."

Nessa hora eu quis tremer
como visse o Lobisome,
e perguntei a Zambeta:
- "Quem está por trás do Nome?" -
Zambeta me respondeu:
- Dotô, você entendeu;
Ele tem seu sobrenome..."

Logo o cão-general come
do Cardeal a rabada;
Zambeta olha pra mim
e me dá uma piscada:
- "O que general comeu
é carne de Prometeu:
toda noite é restaurada".

Seguimos por uma estrada
d'estranha decoração:
só plantas que comem gente
vomitam vestes no chão;
e Zambeta diz, com calma:
- "Isto purifica a alma
que sai na defecação".

Zambeta apanhou no chão
a batina de um vigário,
e sorrindo disse a mim:
- "Vista-se de salafrário
e capriche no altar,
pois se o Diabo gostar
tem aumento de salário..."

Eu me senti um otário
com a batina amarela,
porém logo vi surgir
lá na frente uma capela
a qual era dedicada
à Virgem Descabaçada,
à Santa Falsa Donzela.

Uma menina banguela
veio em minha direção,
logo se ajoelhou
e beijou à minha mão;
disse chamar-se Luzia,
e que me daria a guia
para a celebração.

Eu senti pena do Cão
ao vê-lo emocionado:
- "Ó dileto e bom irmão,
sou um anjo abandonado...
Uma pobre criatura
que vive na Amargura
e por ninguém é amado.

Mas saiba: fui educado
nas hostes celestiais,
e quando soube da história
de Zabé... Dos tristes ais...
Da desesperada cena...
Tem coisas que causam pena
até mesmo a Satanás!

Eu falei com Caifás,
com Mefisto e Belzebu;
consultei as feiticeiras,
Gato e Sapo Cururu,
e foi este o veredicto:
para celebrar tal rito,
doutor, tinha que ser tu!"

Parecia um urubu
o Diabo empaletozado.
Eu aguardei o momento
preciso, pois sou danado:
me deu a mão Lucifé!
Depois abracei Zabé
- O rosto todo molhado...

O grande Pilão Deitado,
apesar de ciumento,
também me cumprimentou
mostrando contentamento,
e logo a grande matilha
ali parou a Quadrilha,
aguardando o casamento.

O Cão dá consentimento
e a turba silencia;
eu faço o Sinal da Cruz,
alguém grita - "Porcaria!"
Franze o cenho Lucifé,
Pilão chega com Zabé
e começo a poesia:

- "Em nome da pata, jia,
e do espírito manco,
eu celebro um casamento
nesta Capela do Pranto,
rogando ao Bom Jesus
que lance um pouco de luz
sobre as trevas deste canto.

Nenhum destes dois foi santo:
desperdiçaram a vida;
por isso que cada um
tornou-se alma perdida;
mas rogo ao Bom Cordeiro
que perdoe ao cangaceiro
e à infeliz suicida!

Assim como a margarida
pode florescer na lama,
e como o pior bandido
dorme tão frágil na cama,
de onde menos se espera
- da Casa da Besta Fera -
pode surgir um que ama.

Este que ao Pai clama
também é um pecador,
mas desceu ao Inferno
pra dizer a Ti, Senhor,
que a que hoje é cadela
já foi distinta donzela,
coração cheio de amor.

Ai, que imensa é a dor
e frágil é a carne humana:
um tornou-se cangaceiro
combatendo à ratazana;
outra tanto amargurou-se
até que um dia matou-se,
porque a vida é tirana.

Ó Pai: a quem se engana
é concedido o perdão
se a Ti busca de novo
do seio da podridão;
por isto o servo te roga
- de bata, batina ou toga -
Abençoa esta união!

Eu me chamo Antônio Cão,
hoje  desci ao Inferno
vestindo uma batina
e com o coração terno,
pra fazer o casamento
de quem quer o sacramento
que emana do Pai Eterno.

Ó Pai, criaste o Inferno
com a força da Tua mão
porque sabes da maldade
do humano coração;
mas Zabé perdeu a vida
num impulso suicida
e merece o teu perdão.

Abençoa esta união
pra toda a eternidade:
de hospício para hospício
veio Zabé na verdade;
se sua alma era louca,
a desgraça não foi pouca
e merece a piedade.

Ó Infinita Bondade,
fonte de todo perdão,
inspiração da justiça,
dois pontos da retidão:
abençoa ao matrimônio
que na casa do Demônio
celebrou Antônio Cão!"

Dos noivos peguei na mão,
pedi pra sair ligeiro;
Zambeta foi-me deixar
- era um diabo cavalheiro. -
Zabé saiu com o Cão,
porque ali o patrão
desfruta a noiva primeiro.

- Leitor, quem é fuxiqueiro
merece pena fatal:
Se saíres por aí
do autor falando mal,
eu rogo ao Pai Eterno
que mande para o Inferno
o teu espectro final!

         
Antônio Cão
 'missário: Antônio Adriano de Medeiros

terça-feira, 8 de maio de 2012

Sertão - com a seca na alma




Meninos, eu vi!

Era uma tarde e eu vinha de Caicó para Santa Luzia, tão sozinho e implacável como o sol que no céu ardia, e, logo depois de passar pela boa cidade de Várzea, do lado de cá da cerca, havia uma vaca muito gorda - ela destoava do magérrimo gado que vira antes, lá perto do Povoado Santo Antônio, mas não destoava da Seca que grassava no Seridó - pois estava morta, e já toda cheia dos gases da riqúissima putrefação prenhe em vida que é a morte individual. E quem eram os convidados para a Ceia do Senhor? Sim, também eles estavam lá, devidamente paramentados e pacientes, aguardavam solenemente a hora de participarem do sagrado ritual, os nobres urubus, vários, aguardavam sobre paus e arame farpado, como as notas musicais de uma pauta cuja sinfonia ia ser iniciada. Procurei eternizar aquela fortíssima e bela imagem em minha memória nesse primeiro soneto que posto hoje.

O segundo é ainda mais antigo, e também foi inspirado em fatos bem reais, visita a parentes, desses ultraconservadores que tenho, já idosos, em suas grandes e velhas casas, onde vivem heroicamente, aguardando o inexorável passar dos dias. Também num dos quartos daquela casa havia mesmo um funeral de uma barata, acompanhado e conduzido por dezenas de formigas, que também eram convidadas para a Ceia do Senhor.  O nome da senhora, Escolasta, eu agradeço ao Criador, pois ele  a um só tempo satiriza tanto o conservadorismo católico e inquisicional sertanejo, como o seu isolamento cultural, vez que o nome certo seria "Escolástica".

Interessante como a morte de um indivíduo, embora sentida e chorada natural, sentimental, justa e belameente por seus familiares e amigos, é sempre tão cheia de vida! Poderia incluir aí outro soneto que este blogue já tem, o Versos A Um Palhaço Morto, mas aí destoaria um pouco do tema seca e sertão, que os palhaços morrem democrática e universalmente. Por isso nunca achei muito justo, e deixo um pouco de admirar alguém quando sei que ele, egoísticamente, deixou escrito seu desejo de ser cremado. Respeito essa decisão tão pessoal e derradeira, mas não a admiro pois não posso deixar de julgá-la sinal de orgulho extremo, egoísmo radical e uma estranha teimosia contra o que chamamos de Deus, como se se tentasse negá-Lo á força, e mesmo recusá-Lo. Eu não recusariu Deus - Deus me livre! - caso descobrisse que Ele pode me ajudar - mesmo sabendo que não sou digno que entrasse  em minha morada. Pois é, e a cremação é um atentado contra a ordem natural da vida, contra os pequenos seres que precisam imediatamente do corpo, bactérias,  vermes - e os estudantes de Medicina e afins, que precisam saber anatomia (Ninguém queira ver aí nenhum trocadilho, hein?).

Finalmente - haja poesia pra aguentar tanto nhen-nhem-nhem, hein? - voltemos à Seca e ao Sertão. O sertão é interessante porque ele reduz tudo que é grande na vida à sua verdadeira pequenez. Ali os grandes coronéis não passam de velhotes conservadores e ultrapassados, os grandes heróis no futuro se mostram criminosos, e até mesmo os profetas e santos não passam de malucos ou fanáticos religiosos, além de políticos e/ou infiltados para manter a estranha fé medieval de um rebanho isolado e ignaro com fome de tudo. Ali se vive com a Seca na alma, e assim como a Terra devora tudo (Elomar - uma exceção á regra que diz que tudo que surge no sertão é pequeno, esse vai se tornando maior a cada dia - diz que foi o Sol que matou a terra ali. Se o foi, o fez de tanto fazer amor  com ela, que os dois transam através da quente luz), o rebanho humano também o faz com tudo que recebe.

Outro dia vi num programa no Discovery Channel que a China fez transposição de rios antes de Cristo. Por isso que não há deserto ali naquele grande país - um país que sempre foi grande desde a antiguidade, inclusive com um sistema de crença, o Confucionismo, sem a idéia concreta de um Deus, mas com fé no Bem, na Sabedoria e na Justiça que se iguala aos demais); enquanto isso, nós temos o maior rio em volume de água do mundo despejando a cada segundo sei lá quantos quilômetros cúbicos de água por segundo em algum ponto do mar... Se tal rio tivesse seu curso desviado ( - Nem que fosse só uma partezinha, digamos um quartinho do volume, viu Doutora?) ali bem antes de chegar no litoral do Pará, e corresse ainda um pouquinho sobre a Terra, eu juro que tal água ainda chegaria ao grande mar. E talvez uma parte da Terra ficasse mais molhadinha para continuar recebendo do Sol o seu grande amor, toda bonitinha e saudável como sabem ser as mulheres verdadeiramente sábias e belas.

Hoje vou deixar aqui um link musical para um grande poeta da música brasileira, o maranhense João do Vale, que sabia dos urubus pois cantou o Carcará no tempo devido, e cuja História é parecida com a minha, embora eu saiba ser bacterianamente  menor. 

http://www.youtube.com/watch?v=fOF-KoPiHzw

Ah, um soneto é latino, o outro inglês. Mas sem deixar de serem, ambos, bem sertanejos. Aprendi!

absaam



A SECA

Irritável, o homem com tudo perde a calma.
A mulher faz promessas, reza e vai para a procissão.
Mas lá do céu o sol queima cada alma,
como a dizer que o Bom Deus não ouviu a oração.

A tristeza contamina até as brincadeiras da infância,
pois correr num rio de pedras não tem lá muita graça...
Já o velho, fragilizado e saudoso, em sua ânsia
chora e não quer comer, enlouquece... Quanta desgraça!

Sem folhas, raquítica qual espantalho cheio de espinhos,
a Jurema não serve para os pássaros fazerem ninhos;
A vaca e o bezerro no fim da tarde estão mortos.

Junto da cerca feita com arame e alguns paus tortos
Uma algazarra medonha assusta qualquer cristão:
os urubus brindam à Morte nas terras do meu sertão.


Antônio Adriano de Medeiros.




AGOSTO

O sertão velho ardia mês de agosto.
Aquela casa simples, de mobília já gasta,
espelhava desde a sala o singular mau gosto
da solteirona que ali morava, Escolasta.
Às quatro da tarde Escolasta repousa
em sua espreguiçadeira cinquentona,
quando uma mosca rápida, brincalhona,
em seu nariz avantajado, zumbindo, pousa.
Escolasta acorda, dá-lhe um tapa, e pensa no café;
com certa dificuldade seu esqueleto fica em pé.
Daqui a pouco ela estará lá na cozinha
fervendo água no fogão, um presente da sobrinha.
Entretanto em seu quarto já caminham, em direção à porta,
algumas dezenas de formigas, carregando uma barata morta.


Antônio Adriano de Medeiros

terça-feira, 1 de maio de 2012

último soneto



Certa vez, aí pelo final dos anos 80, quando tinha escrito uns cento e poucos poemas, imaginei um livro onde caberiam todos eles, e cujo título seria Frutos da Morbidez - uma homenagem às Flores do Mal, pretensioso que era (?) - e tal livro teria três capítulos, para poder caber, sistematicamente, toda a minha obra poética: os sonetos malditos, os poemas anaplásicos (sem forma definida, herança das piores neoplasias, os cânceres mais destrutivos e incuráveis) e por fim o Zoológico Fantástico. Depois, uma tempestade de poemas inflacionou os frutos da morbidez, e talvez cada um dos capítulos pudesse hoje ser um livro à parte. 

Pois bem,  os sonetos malditos começariam com uma Advertência ao leitor para não ler tal livro, depois viria um Propósito, um convite (R.S.V.P) e começaria então um desfile de criaturas, fatos e situações não muito recomendáveis, malditas ao meu modo de ver, "assassinos e ladrões, rufiões, psicopatas, e sujos mendigos bêbados exalando mau-odor - são todos meus convidados para a Ceia do Amor!" (assim rezava - com o perdão da palavra - um dos sonetos malditos). Mas e na hora de acabar, de concluir os sonetos malditos, que mensagem iria deixar? 

Foi aí que surgiu o Último Soneto, que hoje postamos neste modesto blog. Um soneto com alguns versos esdrúxulos, ou seja, longos demais. Em seu ùltimo soneto o poeta faria reflexões sobre sua própria natureza, e razão de ter passado por todas aquelas situações, convivido com ou cantado aquelas criaturas... Enfim, ter suportado a existência.


absaam



ÚLTIMO SONETO

O Poeta é escravo de toda a raça humana!
Ele sente a dor de todos, e sofre por cada um.
Mas, parece que tal sensibilidade aos outros engana,
pois todos que o conhecem não lhe dão valor algum...

O Poeta é um degenerado, um fraco, espécie de deficiente
incapacitado para os assuntos práticos dos homens sérios...
A atividade mais simples lhe parece cheia de mistérios,
e ele erra, e repete, e torna a errar, feito criança ou demente.

Pobre Poeta! Quem o condenou a sofrer tanto assim?
- Foi o Diabo? Foi Deus? Os seus pai? A Matéria? A que fim?
- Ah, o Poeta nem ouve as perguntas que faço,

e segue indiferente, sem ódio, rancor ou cansaço,
esse ser tão sensível, e frágil e daninho, carregando a sua dor...
Mas ás vezes me conta um segredo, baixinho: "- O culpado é o Amor!"


Antônio Adriano de Medeiros