domingo, 30 de setembro de 2012

Os poemas da semana e a frase do semestre



Toda frase que nos toca no sentido de revelar algo que antes não percebêramos ou algo que já sabíamos mas nunca fora dito por pessoas oficialmente importantes, transforma o enunciador, ainda que no passado tenhamos nutrido para com ele alguma reserva, em um doce mestre. Mas a frase, que digo do semestre porque certamente o jullgamento do mensalão será o assunto mais importante no teatro de gala picadeiro pau-de-arara e taba onde transcorrem os fatos socioculturalmente importantes da cena brasileira quiçá até do ano, disse-a Miro Teixeira, deputando fluminense, hoje na Folha de São Paulo.

Os cursos de Engenharia, Direito e Medicina ainda são, ao lado da vocação religiosa verdadeira, creio eu, aqueles que operam no coração do estudante as mais gratas transformações, e é patético ver nos outros a vibração, a exaltação e a empáfia que decerto também já a tivemos e não admitíamos censura alguma na boa e sonhadora juventude, naqueles momentos grandiosos em que, tomados por uma Verdade subitamente revelada, pairam acima dos mortais comuns, causando inveja e admiração e embasbacamento nos mortais comuns que o cercam como certamente as Musas, nove ou dez, causavam nas belas mulheres na memória ideal do Homem e do Tempo. Me afastei da Academia e mesmo digamos da companhia dos médicos sábios (talvez queira pôr alguma ironia aqui - podem rir de mim!) porque alguma coisa em minha alma cabocla e cangaceira anarquista criada em casa grande à beira de açude de pequena cidade sertaneja, e mimada por quatro irmãs e um irmão extremamente culto - herdeira certamente da Cacimba da Velha primordial de um de Medeiros original, o Sebastião, herdada por Ignácio Baptista de Medeiros, dito Inácio Batista  Velho, ou mesmo do idealizado Possão do Velho Amaro, este idealizado na memória eidética de minha boa, falante e sonhadora Mãe, real e mitológica, pois bem algo em minha alma irrequieta não consegue se controlar nos momentos em que os Mestres se equiparam aos deuses imortais, e subitamente pesca de águas profundas ou pega no ar misterioso e mal oxigenado alguma mensagem trazida por um pássaro da Memória Atávica do Tempos Ideais, e faz aquela observação inesperada que revela aos demais que o pretenso deus é só um mortal comum como nós, até mesmo - me perdoem, por favor, se julgarem pretensão, até mesmo como eu... - e nesses momentos o deus que cai fica com muita raiva (a primeira reação do maniforme contrariado é a irritação, depois a raiva, em seguida a fúria e a agressão, e não raro persiste um rancor crônico; há quem diga que as explosões de agressão e morte em brigas de trânsito vêm do fato de que o cérebro humano experimenta um prazer tão grande ao guiar um carro que, estando a mente intoxicada pela euforia e naturalmente que também pelas substanciazinhas ali ora abundantes, reage também conforme o modelo radical do infeliz (? - Rá, rá, rá!) maníaco no episódio agudo da velha e boa Psicose Maníaco Depressiva). A alma de homens assim, como decerto a minha também, demora a digerir certas coisas, e assim o mais fraco há que arcar com os prejuízos, mas quando isso parece não ter fim porque, como gostam de dizer, "geografia é destino", a alma do sertanejo termina indo se esconder com os calangos nos serrotes dos xique xiques, a seus olhos muito chiques.

A frase de Miro Teixeira é a seguinte:

"Nós sempre soubemos que os juízes e os ministros não são divindades. Pena que eles só descobriram agora."

(Do deputado federal Miro Teixeira, PDT-RJ, sobre os recorrentes desetendimentos entre membros do STF durante o julgamento do mesalão - Folha de São Paulo)


                                                      *            *            *


Falar nos ar das alturas, lembrei que minha condoreira alma sofreu boa peça pregada pelo corpo de bípede maníaco que ora a hospeda, semana que passou. Acredita que de repente meu sangue se tornou inoperante, como se eu tivesse sofrido uma hemorragia e perdido dois terços do rio vermelho que corre em meu corpo e me nutre? Uma fraqueza e uma dor de cabeça eram grandes. Ainda na Paraíba, busquei ajuda de parentes médicos, mas o mesmo, surpresos com o fato de um simples psiquiatra dizer que estava precisando de "uma papa de hemácias", sem antes cosultá-lo com sintomas e exames a respeito, duvidaram peremptoriamente e se negaram a desperdiçar o sangue paraibano com possíveis queixas delirantes, sei lá; e só no dia seguinte, quando eu estava prestes a seguir viagem para Natal em busca do bom sangue potiguar, chegou a sábia autoridade com ameças de internamento urgente pois eu estaria "sem condições de dirigir".

O sangue bom potiguar deu sinais logo na acolhida, e chegou literalmente, no volume necessário, pelas quatro da tarde, após exames necessários, aquele sangue fez um bem tão grande ao meu corpo que o coração todo feliz já na noite do dia seguinte queria fazer estrepolias de trapezista no ar, encantado com a lua; claro que os bons amigos médicos ás vezes se excedem em seus cuidados, e diante da recomendação escrita de ser rapidaemte internado "só para avaliação e exames" por um hematologista me deixou cismado, pois tais especialistas andam muito próximos dos cardiologistas, e, sendo meu coração genética e funcionalmente bastante saudável, prefiro ficar distante de tais profissionais e suas drogas potentes e exames invasivos, pois vá que eu tenha uma emoçao forte e seja diagnosticada uma arritimia e aí... Vae victis!

Resta saber, quem, o quê, que estranho mal, entidade mórbida ou sobrenatural, habita absconso nas sombras profundas de difícil acesso do meu ser tão bem trabalhado por Cronos a partir da poeira primordial das estrelas, um ser que, não sendo sobrenatural, deve ser um monstrinho bem pequenininho mas que costuma crescer e sacanear a casa que o hospedou, fazendo a revolução em nome do povo proletário dos vermes, bactérias e insetos.

Em suma pode ser um câncer ou tuberculose ou coisa assim, e disponho de alguns dias para decifrá-lo com a ajuda de alguém mais sábio e experiente. A Anemia poderia resultar também de uma crônica e grave avitaminose B que teria provocado uma infecção oportunística talvez de origem fúngica, mas outros sinais indicam a possível presença de um daqueles dois agentes da revolução universal do proletariado dos pequenos seres, e tal hipótese, a fúngica oportunística, parece não ser levada muito a sério.

Suspeito ainda, sempre, dos seres sobrenaturais,  da velha Batalha do Bem e do Mal, a tudo assistindo, e  de herméticos mensageiros carregando recados, ordens, bilhetes e despachos dos deuses invisíveis. Quanto a Ele? Não tá nem aí em suas brincadeiras criativas com Ela, e só em último caso tomará alguma partido.

Mas eu não sou digno...

                                                              *          *          *

São quatro poemas, dois poemas livres e dois sonetos. Interessante que os dois sonetos têm o dístico final, os versos 13 e 14 rimam entre si, e cheguei a pensar em inglesá-los, eles que nasceram latinos  e ciosos de suas estrofes perfeitas de tão bem trabalhadas. Nossa, mas como protestaram, eles, os sonetos, quando pensei em inglesá-los por achar a forma dos versinhos todos juntos mais discreta e elegante, depois que conheci a elegância dos sonetos de Jorge Luiz Borges. Deus me livre de irritá-los, Deus me livre de ao menos pensar em mexer naqueles quartetos e tercetos! O meu nome agora é Nunca Mais.

Os dois primeiros falam de insetos e moscas. O primeiro, o Dos Insetos, foi um poema de Nanin que cresceu demais, como o pé de feijão de Joãozinho, assustou o Menino e o Adulto assumiu o prejuízo. Fala sobre si mesmo, dispensa pois demais cometários.

Os dois sonetos têm algo em comum, e juro pelo que é mais Sagrado que só o percebi na hora de comentar: ambos se referem a mulheres mortas em crime passional, que retornam do além, ora para amedrontar o assassino, ora para o deleite daquele que a amava e era retribuído, alguém que não era seu marido. Não gosto de falar sobre isso, mas sempre que a idéia ou ameaça da morte ronda o meu ser, lembro de minha irmã, Dinha, que partiu tão cedo, ela que me botava pra dormir quando bem criança balançando numa rede e cantando "Xô, xô, pavão...",  assassinada em crime passional extremamente cruel em Boa Viagem, em cuja casa então eu morava, por uma ex-amante do marido que se fantasiou de paciente e marcou consulta no último horário do dia de uma festa na casa e... A assassina da dentista era formada em Medicina.

Hoje teve que sair. Tem 30 anos.

Finalmente, assumidamente para um outro tipo de irmã, uma aeda, uma rapsoda, a cantora Cássia Eller, o poema O Dia da Cássia - Dor! É uma ficção poética, vez que a causa oficial da morte de Cássia Eller foi "infarto do miocárdio", inclusive com laudos toxicológios e cardiológicos que confirmam tudo muito bem.

Há um video no youtube onde Cássia, tão jovem, tão bela, canta aquela que foi a música  que despertou em mim o interesse pela Danada, Eleanor Rigby. Há legendas no vídeo. Da voz é desnecessário falar, mas não custa dizer que a pele estava ótima.

Vale a pena ir em http://www.youtube.com/watch?v=3nDk12b4Vq0

Tem também ECT, acústico, em: http://www.youtube.com/watch?v=muS41ZXfijk

absaam




DOS INSETOS


Também dentre a grei do seres diminutos
pairam nuvens de insetos: a indesejada gente
dos barbeiros e das mariposas - jamais serão homens!
Vivem a parasitar a luz verdadeira, desprovidos
que são de luz própria, tristes vagam lumes
de pequenos seres pseudo-luminosos,
de carona com a peçonha das ferroadas,
reles imitações das verdadeiras picaduras
venenosas de que só sabem os répteis sinuosos
e mais sutis porque se misturam com o relevo, deslizantes.

O bater de suas asas irritantes me lembra
um helicóptero de ares belicosos, por isso a mim,
menino desconfiado, um inseto é sempre um animal
suspeito, traiçoeiro pedaço da natureza dos vermes;
querem reduzir tudo a seu pequenino
universo de insignificâncias.

O diabo mau não tem coragem de, ou não pode, mostrar sua face,
usa disfarces diminutos prenhes da falsa cor,
do mimetismo das borboletas que só prestam mortas,
do cantar dos grilos irritantes,
da luz monótona e pantanosa dos vaga-lumes,
da alternância sutil de esperanças e gafanhotos,
da podridão das moscas, tapurus alados,
das doenças e inflamações dos besouros,
coisas de marimbondos, cavalos do cão.

Ai, como é pobre o vampirismo dos pernilongos.

Nada a dizer sobre as pestes homicidas,
sintetizar antítodotos contra pseudópodes
mal empregados os sons, nunca articulados;
mesmo os artrópodes ora pulam na pele de vira-latas,
ora se escondem como aranhas nojentas,
quando não nos pêlos de gatas sebosas.

Tenho minhas reservas contra os bichos.



               Antônio Adriano de Medeiros




ELA


Quando ontem cheguei em casa
ela abraçou-me com seu vôo circular;
acho que me esperava no sofá.
- No ar haveria um cheiro de carne em brasa?

Tão musical o zumbido daquelas asas
insistindo em me acompanhar,
a me lembrar os gemidos, as algazarras
que a falecida fazia nas horas de amar.

Virá da cova rasa a qual ela perfuma,
esta mosca travessa? Será parte de alguma
de suas carnes? Quais? Das que inquietam?

- E toda noite vem uma: decerto me espreitam.
Moscas verdosas que acendem como vaga-lumes
a lembrança dela, a quem matei por ciúmes.


               
                    Antônio Adriano de Medeiros





SONETO DO AMOR IMORTAL


Eu sempre volto triste ao cemitério
onde está enterrado o meu amor.
Naquela cova esconde-se o mistério
que transforma em riso a minha dor.

Ai nosso amor tão grande e proibido
não acabou no crime passional
que um feioso e gorducho marido
julgou seria o seu ponto final.

Plantei naquela cova a erva rara
que à  minha amada era tão cara
- Ela que não era má e nem medonha...

Num trago demorado a alma sonha
unir-se a partículas de Beatriz...
E no resto do dia eu sou feliz.


              Antônio Adriano de Medeiros
              Antologia de Escritas, n 1






O DIA DA CÁSSIA - DOR!


- mera ficção romanceada pretensamente poética -


                                                                                                           à memória de Cássia Eller




- O homem médio abomina, amiga,
aqueles ares aos quais você nascera habituada,
pois não consegue respirar neles e, desconhecendo-os,
não quer permitir que ninguém voe naquelas paragens;
é visceral, pois, tal aversão, tal proibição
dos homens médios, que nem todos são medíocres,
pelo contrário ás vezes, mas alguns esquecem
de que uma proibição tão radical acaba em preconceito
e costuma perturbar o julgameento em momentos preciosos...

Você os desafiava, ares proibidos e homens médios
- melhor dizendo, só os meio-homens -
pois vocé inteira era quase dois, era completa.
Mas decerto em alguns momentos sentia-se muito sozinha
naqueles ares, as viagens foram muitas e longas e vazias.
Você queria livrar-se dela amiga, mas seu sangue
as queria às vezes por demais, e você dividida sofria,
e a angústia cresceu dor forte no peito
naquele dia de ré caída.

Você procurou os homens médios, angustiada,
uns que deviam ser homens inteiros,
mas eles desconheciam os ares proibidos e sua dor,
pois são do tempo em que só tínhamos um coração
e não esse que é bomba e sede de sentimentos.
Os meio-homens, cegos de orgulho, preconceito e ignorância,
iniciaram então manobras caras e complicadas em seu corpo
usando aparelhos invasivos e drogas pesadas para seu coração,
e você morreu.

Talvez bastassem diazepam, água e quem sabe um pouco de mel...

E assim aquela que era caçadora de si mesma
acabou sendo a caça de meio-homens,
paradoxais caçadores amigos do Lobo Mau.

Mas você continuará cantando para todos,
você que sozinha era inteira e até mais,
que sobrava de ser gente,
porque você era dois: Cássia Ele e Cássia Ela.



                 Antônio Adriano de Medeiros











segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O Debate do Tucano com o Sapo - primórdios do Zoológico Fantástico

 Após a leitura do civilizado debate abaixo, o leitor perceberá o quão distante os bichos do Zoológico Fantástico estão dos tempos de selvageria acima registrados



O debate que inspirou o poema abaixo acabou gerando os dois melhores Presidentes da recente História do Brasil: foi um debate de Fernando Henrique Cardoso com Luiz Inácio Lula da Silva, e o poema foi escrito já após a eleição, vencida pelo FHC.

É dos primórdios zoológicos, mas aí já estão presentes os ingredientes básicos, o sempre necessário uso de algum chá ou coisa parecida para ter acesso ao mundo dos bichos que falam, o guia que traz a relíquia farmacêutica e me convidará e guiará pelas hostes da Floresta Encantada e anunciará o convite e o evento para o qual fui convidado, e a natural troca de elogios entre os diplomatas selvagens, eu e o guia, dois bichos. Não negarei que também presente está minha insegurança de neófito, ou minha preguiça ancestral,  decerto um pouco de ambas, no fato de ter escrito o poema em sextilhas, deixando a septilha, mais nobre, para o final, e até inventando uma explicação nobre para tal escolha insegura e preguiçosa, a saber que para o final eu deixo uma estrofe "com um verso a mais, de presente ao leitor..." Que nada, é que a sepçtilha dá mais trabalho, tem que rimar o quinto verso com o sexto, antes do sétimo a cada estrofre!

Presentes também estão os preconceitos que tucanos e seguidores do sapo barbudo, a esquerda social democrata e a esquerda mais marxista naquela época mas que hoje já se pode dizer também social-democrata, PSDB e PT, nutriam um pelo outro, a saber: que uma era radical, semiletrada, incompetente, e teria tendência ditatoriais; e que a outra seria herdeira da tradição ladroeira (els que dizem,  eu não!) da política brasileira, servis aos americanos, e que queriam vender o que sobrasse de seus furtos, trambiques e  falcatruas. aos ricos do norte, que seriam também suspeitos, e não um povo que criou a maior democracia do planeta e aquela que foi a economia mais admirável dos últimos sessenta anos no mundo. 

O distinto Sapo e o Professor Tucano por pouco não chegaram às vias de fato em alguns momentos, mas a bichocracia estando já amadurecida fez com que contivessem seus impulsos agressivos, o que merece elogio deste vate. Agora que outras eleições ocorrem, numa democracia tão amadurecida que ninguém mais tem sonhos radicais, e mesmo o povo está algo desinteressado e mesmo de saco cheio de propostas políticas, e no maior palco da democracia brasileira, a saber a cidade de São Paulo, um outro candidato que nem é dos tucanos nem dos seguidores de Sua Excelência o Sapo lidera a pesquisa, vermos que o populismo de Jesus e sua trupe travessa venceu os dogmas marxistas e filosófico-sociais dos intelectuais uspianos e sorbonnistas, dá o que pensar, né Macunaíma? 

Liberemos, pois, os bichos, que os bichos sabem: são os bichos que mandam; nós, quando pudemos, apresentamos uma ideía aqui ou ali e, caso tal idéia caia nas graças deles, dos patrões, dos donos de tudo, dos velhos bichos naturais que gostam de pão e circo, devemos agradecer a graça de tão nobre distinção, embora no íntimo exultemos de alegria por termos dado uma aprimorada na velha e boa vida.


absaam



ZOOLÓGICO FANTÁSTICO



V


O DEBATE DO TUCANO COM O SAPO

Na região amazônica,
na floresta tropical,
acontece cada coisa
que surpreende o mortal:
foi lá que vi, certo dia,
um debate sem igual.

Quem pensa que o animal
é privado de linguagem
e só sabe se expressar
por seu grunhido selvagem,
vai pensar que tô mentindo
ou contando pabulagem.

Sou poeta de coragem
e amo o chão brasileiro,
me meto em qualquer paragem
com meu verso verdadeiro
- quem me guiou na viagem
foi um índio feiticeiro.

Me disse o pajé matreiro
coisas de que duvidei,
falou que bicho falava
e eu não acreditei:
- "Pois então venha comigo,
eu mesmo lhe mostrarei"

Pois o pajé era rei
de uma tribo da floresta
que com plantas se alimenta
e com os bichos vive em festa,
coisas que fazem pensar
que a vida ainda presta.

Uma apreensão funesta
logo então me dominou
na hora que eu tomei
o chá que o pajé mandou,
pois ele virara peixe
depois que àquilo entornou.

E tudo se transformou
depois que provei do chá,
mergulhei no Rio Negro,
era peixe, um Acará,
e descambei rio acima
a floresta a espiar.

Eu vi bicho conversar
e planta fazer agouro,
descobri todo o segredo
de transformar terra em ouro
e que a água do planeta
é nosso maior tesouro.

Mestre compadre besouro,
um tal Cavalo do Cão,
foi quem veio avisar
que ia haver eleição,
e um debate àquela noite
era a maior atração.

Ouvi que a grande nação
lá da floresta encantada
com relação à dos homens
é bem civilizada,
e a bichocracia ali
há tempos foi implantada.

Comemos da farinhada
que nos mandou urubu,
tomamos boa cachaça
com cobra surucucu,
ouvimos a serenata
do maestro cururu.

Disse o sapo: - "Eu sei que tu
fazes verso de improviso,
porém se fores contar
como é nosso paraíso,
alguém decerto achará
que tu perdesse o juízo!"

- "Mestre Sapo, se preciso
eu trago aqui pra provar!
Uma festa igual a esta
não tem em outro lugar...
- Me dê mais uma formiga,
Compadre Tamanduá!"

O sapo barbado está
por ser um sapo ancião,
e era um dos candidatos
disputando a eleição,
pondo-nos a explicar
sua estratégia de ação:

- "O professor é ladrão,
o tal pássaro tucano,
e eu vou mostrar à nação
qual é o seu real plano:
ele quer é nos vender
baratinho a americano!

Nosso solo é soberano,
aqui quem manda é a gente!
Eu vivo n'água e na terra,
por isso sou mais consciente
do que quem vive no ar
e cisma em ser presidente..."

Uma planta inteligente
fez um aparte legal:
- "Mas o professor tucano
tem o voto vegetal:
se derrubarem a floresta,
rio seca, maioral!"

Chegara a hora afinal
do início do debate,
tucano empaletozado
foi pegando o arremate:
- "Que sejamos pragmáticos,
sonhar é coisa pra vate!

Eu vou te dar xeque-mate
agora e da próxima vez,
mas saiba ser elegante,
sapo perdedor freguês:
não queira mudar o jogo
logo no seguinte mês..."

- "Como estão vendo vocês"
(Responde o sapo, irritado)
"ele acha que nós somos
um povinho revoltado;
que nos falta educação,
um magote de iletrado...

- Tucano, bicho safado,
quem muda sempre és tu!
Deixas trajes coloridos
e vens pra cá como anu!...
Assim empaletozado
mais pareces urubu!"

- "Sinto pena, cururu,
ao vê-lo ser tão primário...
Tá menosprezando pássaros,
pobre sapinho ordinário?
Esquece da educação
e só pensa no salário..."

- "Colorido salafrário
que quer vender a nação
e vive mancomunado
com a velha corrupção,
hoje aqui nesse debate
vou te dar uma lição!

És bicho sem coração
e estás vendido ao Mal,
dizes ser um democrata
de esquerda e coisa e tal,
mas és capaz de amanhã
virar neoliberal...

Nem neo, nem liberal:
tu vives de galho em galho;
és parente do macaco,
gostas de baixar o malho;
liberdade para ti
assusta qual espantalho!"

- "Vai pra casa do caralho!...
(- Desculpem, fiquei raivoso:
mas não posso permitir
que este sapo feioso
venha aqui me comparar
a um general odioso!)

- Ô seu batráquio seboso
já de memória perdida,
esqueceu que vocês foram
a esquerda consentida?
No seio da ditadura
sua trupe foi urdida!"

- "Tua retórica vendida
achincalha o trabalhador,
mera massa de manobra,
simples coisa sem valor:
deixaste de ser ateu,
mas queres ser o Senhor!

Tem diploma de doutor,
porém o seu laudo é falso:
ele é guilhotinador,
quer nos pôr no cadafalso:
tucano, lá onde for,
estarei no seu encalço!"

- Só não vá, sapo, descalço:
a política tem espinhos...
Não é essa coisa lírica
que pensam seus barbudinhos:
você só engole insetos,
eu posso engolir sapinhos...

E conheço alguns caminhos
que o seu saber ignora:
só sabe andar e nadar,
vive no tempo de outrora;
porém eu, posso voar
pra Europa a qualquer hora...

A sapa sua senhora
pode até servir pra cama,
mas não pode se adequar
ao papel de uma Dama
educada e erudita
como a nação reclama."

- "Mas vejam como difama
da honesta e boa Jia!...
Só cozida em restaurante
é que o senhor aprecia?
Jia pra Primeira Dama
não serve nem na poesia...

Paca, tatu e cotia
gosta de comer também?
Quanto custa essa floresta,
vai vender por mais de cem?
Cabe mais alguém na turma,
ou não tem pra mais ninguém?"

- “Ah, deixa de nhenhenhem,
raivoso que só protesta!
O que quero é proteger
como ninguém a floresta,
e que os bichos da nação
vivam de trabalho e festa!

A cachorra da mulesta
parece que te mordeu!
Por que vives reclamando
contra o que Deus te deu?
Batráquio tem seu valor,
pássaro também tem o seu."

O feiticeiro me deu
um aviso nessa hora:
ia passar o efeito
da xaropada da flora,
tudo ia se transformar,
precisávamos ir embora.

O bom mestre Caipora
veio então se despedir,
pararam até o debate
quando a gente ia sair,
porém eu não dei um passo
antes do os aplaudir.

De tudo que ali eu vi
jamais me esquecerei,
e já disse ao feiticeiro
que um dia voltarei:
logo que entrar de férias
para a selva partirei!

E lhes digo porque sei,
feiticeiro me contou,
que o Professor Tucano
dali saiu vencedor,
mas que o Sapo Barbado
foi lá homenageado,
pois também tem seu valor.


                    Antônio Adriano de Medeiros
                    ZOOLÓGICO FANTÁSTICO    



domingo, 23 de setembro de 2012

poemas de saco cheio e morte



Leitora - Rosa que cativo! - o balaio, o cesto que este mal ajambrado, pequeniníssimo, tênue, tísico, mínimo, raquítico, e paupérrimo Príncipe da Grande Arte traz hoje só tem mercadorias novas, frutos colhidos na semana em meu pomar secreto, além de flores imaginárias ultra-perfumadas, que não quis arrancar de Dona Roseira e Afins os objetos que usariam para se perpetuar, para - Que Loucura! - dá-los a Outra Flor - só para cativá-la ainda mais...

- Eu sou responsável, Éxupéry!

Uma pequena feira, mas de boa mercadoria, pois, sendo o primeiro poema sobre a prenhez do Poeta, que deve ter lá sua forma poética preferida, mas nem por isso seria cego para a sempre rara e tão fértil, encantadora Beleza que têm toda e qualquer Poesia digna de seu sagrado Nome.

Foram onze as cabeças degoladas dos cangaceiros que chegaram a ficar expostas num museu em Salvador, e depois, dizem, foram enterradas por misericórdia e alguma vergonha, que os ingleses e demais europeus requintados parece que só por algum tempo seguraram o espanto e riso de zombaria diante de obras de arte tão estranhas, há muito não expostas como trofeus e medalhas nas casas onde devem exibir sua beleza as Musas, nove ou dez. O cangaceiro Corisco, diga-se de passagem, tão selvagem quanto outros, arrancou mais onze cabeças de soldados e "mandou de presente" para o delegado da chacina em Angicos...

Não, os cabeças que me encheram o saco são outros, de cangaceiros da própria alma, lampiões  e lamparinas de um querosene sujo com que se embriagam e que até que decerto brilham por algum tempo, mas que demonstram procupante dificuldade em perceber que não têm mais pavio para queimar e assim de repente começam a seu auto-sacrificar pelo fogo, incendiando por primeiro a fagulha da Alma...

Finalmente, Dona Morte, ora em mim Bela Adormecida, essa semana abriu os olhos e até que se levantou e deu um passeio pela Casa, examinando aquilo que um dia será seu, que às vezes a gente de repente percebe que ervas daninhas estão crescendo em nosso jardim, e Ela foi lá - não as regou, apenas contemplou-as e até com carinho tocou algumas, mas eu tive coragem e enfrentei a Velha, que deixara em seu muquifo nos porões de meu corpo a Foice e, me dirigindo ao Criador, roguei que adiasse ainda um pouco o triunfo da Viúva Negra, tendo porém a cautela de não irritá-la, fingindo orar ao Pai por eventuais leitores, não por mim mesmo, que prudente nunca é entrar em conflito aberto com Ela, ir desafiar enxuí de abelha raivosa... A Oração Cautelar é uma prece que tem lá a sua melodia, mas, como negar que ali há principalmente o intuito de fazer rir ao leitor antecipando o que um dia acontecerá, mas, claro, sempre levando a sério a possível - Eu Creio! - Intervenção do Pai, que é sobretudo Justo, ou não seria Bom. 

Com a melodia, a hilaridade da Oração Cautelar em alguns momentos se torna incontrolável.

- Entendeu? Eu também não muito, mas a Tua Alma rogo que leia o que segue, preferindo, por pudor, nada rogar ao teu Jardim, Rosa.

É Primavera!



absaam





VENTRE LIVRE


Entre os poetas há sempre
um grave dó.
Ainda que os versos não deem
um só neto,
estarão sempre prenhes
em canto.


           Antônio Adriano de Medeiros
           Natal,  20 09 2012





SACO CHEIO DE CABEÇAS


- Gente, quanta fissura,
quanto desespero
com o mata e cura...

Tenham calma, chega de pajelança!

O melhor tempero
para a alma
ainda é a temperança.


        Antônio Adriano de Medeiros
        Natal  20 09 2012





ORAÇÃO CAUTELAR




Que Deus adie a hora da tua morte!

Que Deus adie a chegada das velas e do caixão!


Que Deus adie o choro das carpideiras,

e a chegada do padre e das freiras

falando em Ressurreição.


Que Deus adie os ataques de choro histérico,

o frio rigor cadavérico

e o Terço em volta de tuas mãos.


Que Deus adie a vinda das moscas gulosas,

o nascimento das rosas

e o cheiro de putrefação.


Que Deus adie aquele profundo sono

em que ficarás em completo abandono

até te dissolveres quase todo sob o chão.


Que Deus adie a chegada das bactérias

e as dentadas das bocas funéreas

sobre o teu sofrido coração.


Que Deus adie a Missa de Sétima Dia,

as visitas de cova, e a alegria

dos herdeiros ao receberem seu quinhão.


Que Deus adie a Nota de Falecimento,

a leitura do Testamento,

o total esquecimento

e o sempre merecido perdão.


Que Deus adie a hora da tua morte!

Que Deus adie a chegada das velas e do caixão!





                Antônio Adriano de Medeiros

                Natal, 21 de setembro de 2012

domingo, 16 de setembro de 2012

Pássaro - Que tanto há mar!

Na imagem acima, uma bela e sombria Safo de Lesbos prestes a se jogar do penhasco sobre o mar, em quadro de Charles Mengin - 1877




"Há quem afirme serem nove as musas. Que erro!
 Pois não vêem que Safo de Lesbos é a décima?"




Platão


Considerada a maior de todas as poetisas, contemporânea de Sócrates e Platão, Safo, da ilha grega de Lesbos, tornou-se mito, e teve sua obra poética queimada em público por monges medievais em Constantinopla e Roma no ano de 1073, sendo que o que hoje conhecemos dela é uma parcela ínfima do que escreveu, obras redecobertas em 1897. Aristocrata, bela e sábia, já aos 19 anos foi exilada de sua ilha  natal quando a burguesia local derrotou os aristocratas, retornando anos depois. Casou com um rico comerciante, teve uma filha, Cleis, e ficou viúva e ainda mais rica cedo, abrindo uma escola para moças, sendo que assim se refere ao fato a Wikipedia - "Concebeu Safo uma escola para moças, onde lecionaria a poesia, dança e música - considerada a primeira 'escola de aperfeiçoamento' da história. Ali as discípulas eram chamadas de hetairai (amigas) e não alunas. A mestra apaixona-se por suas amigas, todas. Dentre elas, aquela que viria a tornar-se sua maior amante, Atis - a favorita, que descrevia sua mestra como vestida em ouro e púrpura, coroada de flores. Mas Atis apaixona-se por um moço e, com ciúmes, Safo dedica-lhe alguns  versos"  enciumados, a moça é retirada da escola pelos pais, e Safo diz que para si teria sido melhor se a favorita tivesse morrido. Safo escreveu muitos poemas de amor dedicado a mulheres, e tendo criado a primeira escola para moças, imagino o ciúme que provocou nos homens "educadores morais", privados de terem as flores juvenis sob sua guarda. Conta-se que, apaixonada por um marinheiro que a humilhou, a Poetisa (assim chamada para contrapor-se a ninguém menos que Homero, o Poeta) dirigiu-se a um penhasco de Mitilene, capital da ilha de Lesbos, abriu os braços e se jogou no mar.

"Plus belle que Vênus se dressant sur le monde", segundo Charles Baudelaire - "mais bela que Vênus, se jogando sobre o mundo". A palavra "dresser" em francês, alçar-se, erguer-se, elevar-se, também descreve o ficar na ponta dos pés, de forma que a morte de Safo também pode ser vista como o seu balé para a imortalidade.

O palavra "lésbica" deve-se à sua fama, referindo-se á ilha, por ter tido Safo amantes mulheres e por ter escrito poemas de amor para mulheres, como também certamente "safada", "safadeza" e que tais, derivadas de seu próprio nome, que o ciúme era grande. Mas Safo amava os humanos, sem qulaquer exclusividade  de gênero. E foi por amor, nobreza, e certamente para nos ensinar algo, a Mestra amestrando a vil corja humana, que ela inaugurou a "pequena confraria dos poetas sucidas", sendo que o único efeito colateral, além de sua morte (tivesse apenas escrito um poema sobre  o voo fatal, teria sido melhor, ainda que o mesmo tivesse sido queimado pelos monges fanáticos medievais, tarados piromaníacos), pois bem, ficou o efeito colateral de enganar algumas bobinhas e bobinhos por aí que pensam que é só se matar que ficarão sendo celebrados como Grandes Poetas...

O soneto, que eu dou graças ao Grande Poeta por tê-lo escrito, é sobre os dois mares, o mar de águas e o de palavras, e o dístico final, vindo do Mais Profundo para me deixar feliz, vendo o mundo tão pequeno lá em baixo, cita Safo de Lesbos - o título do poema, não diga a ninguém, também pode ser Pássafo de Tanto Amar, um soneto com título alternativo, secreto. Interessante que o escrevi em Natal, com caneta sobre papel, e o verso final, onde se lê "está Safo de Lesbos..," eu notei que escrevi sem o acento, "esta Safo de Lesbos...", e notei que me referia á minha pobre alma. É que o poema fala de dois mares, um calmo e um tempestuoso, por sobre os quais se atira a nossa alma de poeta.

O poema Lesbos, de Charles Baudelaire, complementa a postagem, talvez um dos mais belos poemas já escritos, e que está também em outra parte deste blogue, uma elegia a Safo de Lesbos, do qual tirei a epígrafe do soneto, razão pela qual a versão original do poema de Baudelaire segue após a tradução.

Para que a alma nobre e sensível do Lector tenha uma perfeita compreensão do que senti após a escrita do soneto, destaco aqui a estrofe do poema Lesbos que muito tocou ainda criança, o qual relampeou à pobre alma naquele bendito momento:

"Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre
Pour chanter le secret de ses vierges en fleurs,
Et je fus dès l'enfance admis au noir mystère
Des rires effrénés mêlés aux sombres pleurs;
Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre."

"Pois Lesbos entre todos me escolheu sobre a terra
Para cantar o segredo de suas virgens em flor,
E desde a infância conheço os mistérios que encerram
risos frouxos mesclados a estranhos chororôs;
Pois Lesbos entre todos me escolheu sobre a terra."

Baudelaire conhecia bem nossas irmãs sonhadoras, tão sofredoras...

Notar, porém, que Baudelaire se enganou sobre o "franzido e austero" olhar de Platão com relação a Safo. O olhar que o velho Plato lançava à Poetisa era outro... Notar, também, que há duas Vênus no poema Lesbos: a deusa e a estrela da manhã e da noite, ou planeta Vênus. A que tem ciúme de Safo é a deusa, e aquela erguida sobre o mundo porém menos bela que Safo é a estrela.


Obrigado!


absaam




PÁSSARO - QUE TANTO HÁ MAR!


                 "plus belle que Vénus se dressant sur le monde!"



Além do vasto mar de vagas incessantes
por onde as caravelas escoaram dobrões,
existe um outro mar de vogais, consoantes,
por onde os caros versos escoam emoções.
Há um mar todo estúpido, salgado, lunático,
e um mar todo espírito, sagrado e lúcido;
um mar de dinossauros, terrível, antipático,
e um mar de dignos salmos, melífluo e lúdico.
Há um mar de naufrágios, monstros e procelas,
e um mar de naus frágeis, mantras e donzelas.
Um mar que nos afoga, devora, massacra,
e um mar que nos afaga, dá voz e mais sagra.
- E por sobre os dois mares, pássaro colossal,
está Safo de Lesbos em seu vôo fatal.


                  Antônio Adriano de Medeiros
                  Natal 12 09 2012




LESBOS

Charles Baudelaire

Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias,
Lesbos, ilha onde os beijos, meigos e ditosos,
Ardentes como os sóis, frescos quais melancias,
Emolduram as noites e os dias gloriosos;
Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias;

Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas,
Que desabam sem medo em pélagos profundos,
E correm, soluçando, em maio às colunatas,
Secretos e febris, copiosos e infecundos,
Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas!

Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,
Onde jamais ficou sem eco um só queixume,
Tal como Pafos as estrelas te veneram,
E Safo a Vênus , com razão, inspira ciúme!
Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,

Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,
Onde, diante do espelho, ó volúpia maldita!
Donzelas de ermo olhar, dos corpos amorosas,
Roçam de leve o tenro pomo que as excita;
Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,

Deixa o velho Platão franzir seu olho sério;
Consegues teu perdão dos beijos incontáveis,
Soberana sensual de um doce e nobre império,
Cujos requintes serão sempre inesgotáveis.
Deixa o velho Platão franzir seu olho sério.

Arrancas teu perdão ao martírio infinito,
Imposto sem descanso aos corações sedentos,
Que atrai, longe de nós, o sorriso bendito
Vagamente entrevisto em outros firmamentos!
Arrancas teu perdão ao martírio infinito!

Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?
Ou condenar-te a fronte exausta de extravios,
Se nenhum deles o dilúvio pôde ver
Das lágrimas que ao mar lançaram os teus rios?
Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?

De que valem as leis do que é justo ou injusto?
Virgens de alma sutil, do Egeu orgulho eterno,
O vosso credo, assim como os demais, é augusto,
E o amor rirá tanto do Céu quanto do Inferno!
De que valem as leis do que é justo ou injusto?

Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo
Para cantar de tais donzelas os encantos,
E cedo eu me iniciei no mistério profundo
Dos risos dissolutos e dos turvos prantos;
Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo.

E desde então do alto da Lêucade eu vigio,
Qual sentinela de olho atento e indagador,
Que espreita sem cessar barco, escuna ou navio,
Cujas formas ao longe o azul faz supor;
E desde então do alto da Lêucade eu vigio

Para saber se a onda do mar é meiga e boa,
E entre os soluços, retinindo no rochedo,
Enfim trará de volta a Lesbos, que perdoa,
O cadáver de Safo, a que partiu tão cedo,
Para saber se a onda do mar é meiga e boa!

Desta Safo viril, que foi amante e poeta,
Mais bela do que Vênus pelas tristes cores!
- O olho do azul sucumbe ao olho que marcheta
O círculo de treva estriado pelas dores
Desta Safo viril, que foi amante e poeta!

- Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida,
A derramar os dons da paz de que partilha
E a flama de uma idade em áurea luz tecida
No velho Oceano pasmo aos pés de sua filha;
Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida!

- De Safo que morreu ao blasfemar um dia,
Quando, trocando o rito e o culto por luxúria,
Seu belo corpo ofereceu como iguaria
A um bruto cujo orgulho atormentou a injúria
Daquela que morreu ao blasfemar um dia.

E desde então Lesbos em pranto lamenta,
E, embora o mundo lhe consagre honras e ofertas,
Se embriaga toda noite aos uivos da tormenta
Que lançam para os céus suas praias desertas!
E desde então Lesbos em pranto lamenta


Charles Baudelaire, em francês
Flores do Mal
trad. Ivan Junqueira



Lesbos


Mère des jeux latins et des voluptés grecques,
Lesbos, où les baisers, languissants ou joyeux,
Chauds comme les soleils, frais comme les pastèques,
Font l'ornement des nuits et des jours glorieux,
Mère des jeux latins et des voluptés grecques,


Lesbos, où les baisers sont comme les cascades
Qui se jettent sans peur dans les gouffres sans fonds,
Et courent, sanglotant et gloussant par saccades,
Orageux et secrets, fourmillants et profonds;
Lesbos, où les baisers sont comme les cascades!


Lesbos, où les Phrynés l'une l'autre s'attirent,
Où jamais un soupir ne resta sans écho,
À l'égal de Paphos les étoiles t'admirent,
Et Vénus à bon droit peut jalouser Sapho!
Lesbos où les Phrynés l'une l'autre s'attirent,


Lesbos, terre des nuits chaudes et langoureuses,
Qui font qu'à leurs miroirs, stérile volupté!
Les filles aux yeux creux, de leur corps amoureuses,
Caressent les fruits mûrs de leur nubilité;
Lesbos, terre des nuits chaudes et langoureuses,


Laisse du vieux Platon se froncer l'oeil austère;
Tu tires ton pardon de l'excès des baisers,
Reine du doux empire, aimable et noble terre,
Et des raffinements toujours inépuisés.
Laisse du vieux Platon se froncer l'oeil austère.


Tu tires ton pardon de l'éternel martyre,
Infligé sans relâche aux coeurs ambitieux,
Qu'attire loin de nous le radieux sourire
Entrevu vaguement au bord des autres cieux!
Tu tires ton pardon de l'éternel martyre!


Qui des Dieux osera, Lesbos, être ton juge
Et condamner ton front pâli dans les travaux,
Si ses balances d'or n'ont pesé le déluge
De larmes qu'à la mer ont versé tes ruisseaux?
Qui des Dieux osera, Lesbos, être ton juge?


Que nous veulent les lois du juste et de l'injuste ?
Vierges au coeur sublime, honneur de l'archipel,
Votre religion comme une autre est auguste,
Et l'amour se rira de l'Enfer et du Ciel!
Que nous veulent les lois du juste et de l'injuste?


Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre
Pour chanter le secret de ses vierges en fleurs,
Et je fus dès l'enfance admis au noir mystère
Des rires effrénés mêlés aux sombres pleurs;
Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre.


Et depuis lors je veille au sommet de Leucate,
Comme une sentinelle à l'oeil perçant et sûr,
Qui guette nuit et jour brick, tartane ou frégate,
Dont les formes au loin frissonnent dans l'azur;
Et depuis lors je veille au sommet de Leucate,


Pour savoir si la mer est indulgente et bonne,
Et parmi les sanglots dont le roc retentit
Un soir ramènera vers Lesbos, qui pardonne,
Le cadavre adoré de Sapho, qui partit
Pour savoir si la mer est indulgente et bonne!


De la mâle Sapho, l'amante et le poète,
Plus belle que Vénus par ses mornes pâleurs!
— L'oeil d'azur est vaincu par l'oeil noir que tachète
Le cercle ténébreux tracé par les douleurs
De la mâle Sapho, l'amante et le poète!


— Plus belle que Vénus se dressant sur le monde
Et versant les trésors de sa sérénité
Et le rayonnement de sa jeunesse blonde
Sur le vieil Océan de sa fille enchanté;
Plus belle que Vénus se dressant sur le monde!


— De Sapho qui mourut le jour de son blasphème,
Quand, insultant le rite et le culte inventé,
Elle fit son beau corps la pâture suprême
D'un brutal dont l'orgueil punit l'impiété
De celle qui mourut le jour de son blasphème.


Et c'est depuis ce temps que Lesbos se lamente,
Et, malgré les honneurs que lui rend l'univers,
S'enivre chaque nuit du cri de la tourmente
Que poussent vers les cieux ses rivages déserts.
Et c'est depuis ce temps que Lesbos se lamente!


                                   — Charles Baudelaire

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Do Zoológico Fantástico - A Escola da Floresta


Acima flagrante de um momento de rara dedicação aos estudos, de um dos alunos da Escola da Floresta.


Também para amenizar mais a coisa por aqui, que a barra andou pesada, mas sobretudo atenendo ao pedido de amiga mui querida - ela quer ler mais poemas do Zoológico Fantástico, a engenheira preciosa - segue um antigo poema Zoo, dos primordiais, dos pilares do Zoológico, a Escola, a Universidade dos Bichos.

Não foi em um dia normal que me chamaram a conhecer a UFAN, universidade federal dos animais, mas sim eum um dia com performance de arte na biblioteca central, e os bichos mais chegados às artes estavam ouriçadíssimos. Tinha show de rock e tudo mais. Interessante que, assim como nos campi humanos, ali a coisa começou com mais repressão, mas depois relaxo: "o coral das arapongas começou séria a noitada, mas depois rolou um rock com a turma da macacada..."

O leitor não vá estranhar a abundância de professores da espécie asinina: Jegue, Jumento, etc. As semelhanças com a academia humana são bem reais.

Tive a honra e o prazer de receber aula especial de Mestre Professor Jumento, o mais respeitado dos catedráticos daquela academia. As lições me pareceram um tanto ou quanto equivocadas e mesmo paradoxais, mas todo conhecimento deve ser respeitado.

Rolou uma paquera danada na hora do rock...

Em nada ficou-se devendo á nossa humana Academia. Se paquerei? ah, deixa pra lá! Fui com mais nobres intenções...

absaam



ZOOLÓGICO FANTÁSTICO




 VIII

A ESCOLA DA FLORESTA

Cruzando a Barba do Bode,
passando o Boi Encantado,
depois da Baixa da Égua,
- tem que se andar um bocado -
é que o templo da burrice
se encontra localizado.

Lá somente é ensinado
conversa pra boi dormir;
papagaio faz palestra,
junta burro pra assistir:
da escola da floresta
vou contar tudo que vi.

Quem me guiou foi Saci
- que conhece tais quebradas -.
Vi hienas macumbeiras
rindo nas encruzilhadas,
e dez cachorras doentes
correndo desembestadas.

Todas as coisas narradas
nesse presente momento
foram ali vivenciadas
com muito contentamento;
pedi pra contar a história
e tive o consentimento.

Mestre Professor Jumento
ensina filosofia,
o Burro é o catedrático
supremo da economia,
e a Mula Sem Cabeça
a mestra na poesia.

Égua a psicologia
aos alunos ensina,
Doutor Jegue é o decano
do curso de medicina,
Urubu é latinista,
só dá aula de batina.

O veado é gente fina
e sonha em ser antropólogo,
o rato estuda direito,
o gato quer ser biólogo;
porco é doutor em política,
e o cão, grande teólogo.

O ilustre paleontólogo
tiranossauro é reitor;
asno mostra a todo mundo
seu diploma de doutor;
raposa não fez concurso:
é prima de um senador.

Papagaio é orador
muito bem conceituado,
pavão é um professor
com fama de ultrapassado,
e piranha levou pau
de novo o ano passado.

Quando o pátio está tomado
por galinhas juvenis
macaco se entusiasma,
fica contente, feliz,
e geralmente tem briga
entre a turma dos saguis.

Nos grêmios estudantis
preguiça é quem se destaca;
nos intervalos das aulas,
- lá na cantina da vaca -
a paquera rola solta
de guaxinim com macaca.

Comi tripa com ticaca
que abutre nos preparou,
e fui pra biblioteca
com engenheiro castor,
onde nosso amigo urso
nos viu e nos abraçou.

Veado então se chegou,
- tinha performance de arte! -
ouriçado e triunfante,
e olhando pra toda parte;
paca estava de odalisca
toda verde, - era de Marte.

Cachorro de bacamarte
veio fazer presepada
e o coral das arapongas
começou séria a noitada,
mas depois rolou um rock
com a turma da macacada.

A Chita entusiasmada
caprichou na bateria;
Tarzan veio dar uns urros
- ele ensina ecologia -,
um gorila na guitarra
tocava, e se remexia.

Lá teve música e poesia,
dança, teatro e pintura;
papagaio discursou:
- "Agora ninguém segura,
que o mundo fique sabendo:
o bicho é que tem cultura!”

A roliça tanajura
dançou rebolando o tchan;
elefante expôs seus quadros,
declamou versos a rã;
foi representada a peça
Os Burros do Amanhã.

O professor Acauã,
como sempre pessimista,
reclamou contra a presença
da "abelha comunista",
que trouxe comida típica:
mel pra vender a turista.

O gorila guitarrista
depois de beber cachaça
por pouco não faz a festa
acabar numa desgraça
dando em cima da cadela
de um cachorro de raça.

Quem me deu aula de graça
foi o Professor Jumento:
disse que tinha o instinto
mais valor que o sentimento,
defendeu a força bruta,
desprezando o pensamento.

Transmitiu-me o ensinamento
filosófico animal:
que levar vantagem em tudo
é a regra principal;
até citou Charles Darwin
e a Seleção Natural.

Diz que só existe o mal
quando reina a liberdade;
que nada vale o indivíduo
perante a comunidade,
e está no livre-arbítrio
a luz da humana maldade.

Defendeu a falsidade,
a astúcia e a roubalheira,
que esse negócio de ética
não passava de besteira;
se disse o grande guru
da política brasileira.

Falou que em qualquer feira
hoje se compra diploma,
basta o bicho ter no bolso
dinheiro em certa soma;
e que o bom diplomado
é aquele que embroma.

Fez elogios a Sodoma,
a canibais e à orgia,
e disse que se algum bicho
nega essa filosofia,
deve voltar para a selva:
que fosse fazer poesia!

Agradeci com alegria
esse e outros favores,
e pedi consentimento
pra contar a meus leitores
como são inteligentes
os burricos sorridentes,
os nossos bichos doutores.


              Antônio Adriano de Medeiros

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A Náusea e a Bunda - poemas do underground




Hoje a barra tá pesada aqui! Os dois poemas de hoje, novíssimos aliás, possuem versos e remetem a imagens e cenas não recomendáveis  a corações frágeis, a mentes pueris, a pessoas melindrosas...

- Afastem-se!

 A trilha sonora recomendada é do Velvet Underground, música Venus in Furs, onde me inspirei para o último verso do primeiro poema: "different colours made of tears". Dá pra ler ouvindo-a em outra página aberta, é só ir para o link que segue - http://www.youtube.com/watch?v=9nGsUbZpCKM

No primeiro poema são citados meus heterônimos mais comuns, presentes em outros poemas, Tonhão, Antônio  Cão, Tonho da Santa, além do nome como sou comumente chamado, Adriano; resolvi deixar o infante Nanin longe dessas coisas... Mas o poema em si nada tem demais, e  fica até ingênuo perto do que vem depois, do segundo poema...

Sofri grande influência do existencialimso francês em minha juventude, um dos meus escritores prferidos era Sartre, e o romance A Náusea me marcou muito. Os escritos que se tornaram o livro foram encontradas numa estação de trem, ninguém conhece o anti-herói daquelas páginas, o escritor não ficou famoso. A leitura daquele livro deixa o cara com uma visão mais pessimista da vida. Nunca esqueci da frase, da frase ´"A Núsea sou eu!", quando o autor percebe que o quadro de ansiedade e angústia que o ataca de repente nas mais diversas ocasiões (mais ou menos semelhante à "síndrome de pânico", tão em moda hoje em dia) é o que ele tem de mais subjetivo, é seu verdadeiro eu, expressa seus reais sentimentos diante do mundo.

Pois bem, além da Náusea, a Bunda, tão exibida em  minha amada terra, e até, dizem, na representação clássica do coração, que dizem ser uma bunda invertida, pois bem, além da Náusea, a Bunda me foi servida de forma marcante em dois filmes franceses, O Último Tango em Paris, da década de 70, e mais recente em 2002, no controvertidíssimo filme Irréversible, naturalmente Irreversível. Aqui está a descrição do filme, extraída da Wikipedia - "Irréversible (IЯЯƎVƎЯSIBLƎ), ou Irreversível (br/pt), é um filme francês de Gaspar Noé lançado em 2002. Considerado um dos filmes mais controversos e perturbadores daquele ano devido, principalmente a duas cenas extremamente gráficas de estupro e assassinato. Fora isso, a narrativa em ordem cronologica inversa e os ângulos e rotações que a camera faz servindo para separar cada cena, também colaboram para o desconforto dos espectadores."

O poema A Náusea e A Bunda remete ás duas cenas mais fortes daquele filme. Darei, porém, algumas informações talvez não percebidas pela maioria dos leitores. Por que o apelido do psicopata, do tarado e assassino do filme, tão supostamente querido no meio underground homossexual parisiense, é Tênia? Tênia (pronúncia do filme, Teniá, mesmo no filme dublado, respeitando a pronúncia francesa) remete a um parasita hermafrodita gigantesco (para as dimensões do reino dos vermes) que vive nos intentinos dos humanos... A Teníase tem ainda a complicação da Cisticercose, quando o verme, em sua fase larvária, pode parasitar nosso cérebro, chegando-nos através das carnes mal passadas (ou cruas, vá lá!) de porco (Tênia solium), ou de boi (Tênia saginata). Imaginei que no caso do Teniá, em sendo ele um psicopata assassino, seria o caso de um verme de porco.

Digo ainda que, no filme, uma bela jovem, Monica Bellucci, tida como a mais bela e talentosa das atrizes francesas daquela época, numa boite em região ultra-periférica e barra-pesada de Paris, após brigar com o namorado, resolve ir pra casa sozinha. Só que ela não considerou a hora nem o local onde estava e, prestes a atavessar uma aveninda larga, de mão dupla, sem canteiro central. digamos uma Avenida Brasil na sexta à noite as duas da manhã, é aconselhada por uma baixinha cafuza suspeitíssima a descer a uma passarela subterrânea, semelhante a uma galeria do metrô ou mesmo às catacumbas romanas, só que àquela hora muitíssimo mal frequentada... É lá que ela encontra Teniá prestes a estuprar um travesti, mas, ao ver carne de primeira, o Porco muda de idéia e de vítima, atacando aquela a quem julgou ser apenas mais uma putinha neófita á procura de um freguês noturno...

O que se segue, o poema procura narrar à sua maneirar, e me nego a descrever de outra forma. Digo apenas que a vingança do namorado e de amigos da Bela conta o Teniá ocorre numa boite gay  ultra-barra-pesadíssima, e quando o Teniá já está prestes a estuprar o ex-namorado da Bela, cercado por travestis e afins eufóricos, tem sua cabeça esmagada com um extintor de incêndio, empregado pelo amigo daquele que seria mais uma vítima do porco. A torcida de travecos e afins então muda de lado.

O título do poema é A Náusea e A Bunda porque nunca uma cena de cinema me provocou uma sensação tão desagradável, um mal-estar tão grande, como o primeiro chute de Teniá no rosto da Bela cambaleante.

Ah, "joie de vivre", pode ser traduzido por "alegria de vive", e remete à felicidade, ao ideal da vida feliz; Taenia solium é o "nome científico" da tênia do porco. 

O Banquete está servido!

absaam




THE COLOURS OF MY BLUES


Certa noite em que estava perdido
na escuridão,
caminhava, caminhava e caminhava
sem razão.
Mas gostava da viagem.

Não sei por que
- quer seja eu, quer não -
qual Adriano ou Tonhão,
como o heterodoxo Antônio Cão
ou na simplicidade de da Santa Tonho,
sempre gostei de retornar ao
sonho medonho.

E quando desperto,
e quando acordo,
e quando falta...

- Luz?

Todas as cores vestidas de lágrimas.





           Antônio Adriano de Medeiros
           Natal, 07.09.2012










 
                            A NÁUSEA E A BUNDA


                       - Inspirado em cenas do filme Irréversible, com Monica Bellucci -




Ela precia atravessar aquela rua.

No subúrbio barra-pesada
da megalópole parisiense
a meia-noite já ficou bem para trás,
e uma bela e jovem mulher, sozinha,
precisa atravessar uma certa rua.

Do outro lado da rua seu plano de vida
acena
com promessas de joie de vivre.
É só chegar em casa e aguardar
o nascer do sol.

Mas antes ela precisa atravessar aquela rua.

De repente o outro lado
ficou tão distante...
O lugar é esquisito,
desértico e com tipos estranhos,
avenidas muito largas
e cheias de carros,
e de repente ela sente
o medo
de que aquela felicidade cotidiana
lá do outro lado...

- É tão grande assim, a rua?
Ela precisa ser atravessada...

No asfalto há muitos carros, e vermes
no submundo da passarela subterrânea.
Embaixadora das profundezas infernais,
refugo já desprezado
de tanto usado
pelas artes e turbas de Satanás
- latina, bem morena, baixinha e gorducha -
uma bruxa lhe fala
com seus lábios de mil boquetes baratos,
que pode ser muito perigoso atravessar
a rua ali àquela hora...

Os motoristas são barbeiros perigosos
que querem chupar seu
sangue no asfalto.
- Melhor descer à galeria subterrânea
dos vermes pequeninos, intestinos.

A Beleza vai descer às profundezas
às catacumbas dos vermes
nus, seus, intestinos.

A Beleza não atravessará a rua.
- Alguém vai atravessá-la nua.

Tem-na só
a tênia solium.
O verme abunda
na carne do porco.

Quando a garra grotesca do Diabo
apalpa a polpa sedosa
das nádegas de Maria
as labaredas infernais ardem tão alto
que o extintor de incêndio vira tacape.

Quando a serpente satânica
está cheia de veneno
primeiro é preciso esmagar-lhe
o cabeção.

Ela precisava atravessar a rua de pústulas
para a vida na virtude.
As artérias estão todas pútridas
de vício e vírus, veículos e vermes.
A serpente do Mal túrgida,
vesículas, vísceras, veneno.

- Ela foi atravessada nua, ela foi violada no chão.
Primeiro foi arrombada,
depois foi morta com chutes na cara.
Porque era uma puta muito gostozinha,
e o verme se empolgou e chafurdou na lama
intestina dela,
e sangrou, e sangrando assim
teria que ir a um hospital,
e a putinha ia acabar revelando o que não devia,
e o inquérito policial identificaria
inequívocos ovos de Taenia solium,
e assim se chegaria ao porco.


Não há mais o perfume da dama-da-noite.
Das catacumbas do metrô,
das profundezas sombrias da noite marginal
sobe agora uma fragrância
nauseabunda
de fezes, sangue e enxofre,
que se mescla ao cheiro de óleo diesel
e gasolina daquela fatídica rua.

Mas haverá sempre ali
uma rosa esmagada,
sangrando no meio rua.



              Antônio Adriano de Medeiros
              07 a 10 de setembro - 2012








segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Algumas Quadras de Mário Lago e um soneto meu




O saudoso poeta, compositor a ator Mário Lago, 1911- 2002, que foi ainda radialista e advogado, em foto da contracapa de um de seus discos.


Quando, numa peça de teatro, numa novela, sua presença se manifestava, a peça ou a novela adquiriam um quê de respeitável, de nobreza, tinha um input, um upgrade de valor. Falo de Mário Lago, que ganhava a vida como ator, mas que era em verdade um sambista - compositor e poeta!

Não sabia que fora programado pra ser diplomata, malgrado viesse de um família de músicos: a mãe foi a primeira a perceber-lhe o talhe nobre, e decidiu que era próprio para usar não um simples paletó, ou o terno já gasto pelos bacharéis bajuladores, aproveitadroes e mentirosos, mas sim a casaca respeitável dos diplomatas. Essa a Queda subjetiva do poeta - Sim, porque os poetas, pelo menos os respeitáveis, por que não dizer os verdadeiros, os poetas precisam sobretudo cair; imploram por uma queda; será porque desejam ser a um só tempo Criador e Lúcifer? São muito pretensiosos esses poetas... - Pois aquela era a Queda do doce Lago, não ter sido o diplomata que mamãe sonhou, não ter se adequado ao nobre figurino idealizado pela costureira que o nutriu.

Fato é que ganhei um presente raro, o psiquiatra Filipe Teodoro Gurgel de Oliveira, meu amigo, dos raros ajuizados e modestos, de alma boa e competência e amor pelos pacientes de Natal, me deu um CD com várias músicas, poemas e depoimentos sobretudo poéticos e enriquecedores de Mário Lago, autor de Amélia, Aurora e, sobretudo, de Fracasso, além de outros sambas que só os verdadeiros amantes dessa arte tão vasta, poética e genuinamente brasileira - como o citado doutor ali do início do parágrafo - conhecem.

Seguem algumas quadras belíssimas de Mário Lago, que as declama com seu sotaque de quem se orgulha e ama a ascendência portuguesa, coisa que também a tenho, mas diluída já, só não na aparência e na pele, por muitas gerações de sertanejos e sertanejas, mesclada ainda pelo sangue de uma índia que - dizem meus parentes saudosos do primitivismo que em realidade nunca conheceram, querendo parecer ainda mais selvagens - pois bem, mesclado ainda pelo sangue indígena inicial que serviu ao  legítimo português das caravelas Sebastião de Medeiros, índia que foi "pegada a dente de cachorro na serra". O problema é que outra índia, irmã da primeira, precisou servir a José Tavares da Costa, primo e em tudo semelhante a Dom Sebastião, o de Medeiros... Parece que quem foi pegada a dente de cachorro na serra teria sido em realidade a ìndia Mãe das duas, a célebre Mãe das Sete Irmás da Cacimba da Velha.

Mas o que é uma simples cacimba sertaneja diante de um Lago carioca? Demos pois um bom fim à lagoa!

Pela raridade e beleza das quadras do Diplomata do Teatro, o dono deste arremedo de Café Nice dá a mesa principal ao Sambista, reservando para seu modesto soneto o espaço ás escuras, na área dos fumantes.


absaam!


QUADRAS DE MÁRIO LAGO


Dizem que as santas são santas
porque sofreram demais.
Mas se é o sofrer que faz santas,
tu, minha mãe, que serás?

           Mário Lago


São de pecado os seus passos
- É a que se deve insultar...
Mas leva um filho nos braços
- Silêncio quando passar!

            Mário Lago



Sou teu marido e não dono,
dono em amor é ruim.
Mas como te amo com o que sinto,
que sejas dona de mim!

             Mário Lago



Dizes que nada fizeste
pra que ela esteja zangada.
Mas sua zanga é por isso:
por não teres feito nada!

            Mário Lago


Queres que eu vá á tua casa
pra ver teus pais... Isso não!
Caçador arma a armadilha,
mas não convida o leão!

            Mário Lago


Por que em meio à alegria
meus olhos querem chorar?
Há uma cadeira vazia:
meu pai não vem mais jantar!

            Mario Lago


Felicidade é tão fácil!
Uma receita lá vai:
Mulher dizendo "meu nêgo",
Nenén dizendo "papai!"


           Mário Lago


*      *      *



REFLEXÕES DE UM SONETO QUANDO NASCE


Qual se na noite de um céu sem deus e preto
se esboçasse o crepúsculo da manhã,
o mais sutil dos poemas - um soneto -
vai caminhando entre o sonho e o amanhã.
Com os precisos movimentos de um gato,
eis que um fantasma, uma luz, ou fio d'água
traça um desenho cabalístico - Eu fico estupefato
de como a fera é tão dócil quando afago-a!
Vai alto o sol, já passa do meio-dia,
mas no soneto reina o sonho e a calmaria,
porque conspiram - o ritmo, a rima e a métrica -
uma barreira de arte mefistofélica.
E quando acaba nos deixa a mensagem forte
de que o final é a antítese da morte.



             Antônio Adriano de Medeiros
             Natal, 29 de agosto de 2012