Não são só elas que são traidoras, todos o somos, que morrer é a suprema traição já que todo amor promete ser eterno, e desde o princípio nos ilude, sendo portanto a ilusão a condição sine qua non do amor. Seguem hoje dois poemas (três sonetos) de minha verve underground onde as musas - tão amadas! - continuam traindo mesmo após a morte...
Interessante foi ter percebido, enquanto reescrevia os meus poemas, que eles poderiam, de certa forma, se fundir num poema de Baudelaire, A Beatriz, onde a amada não morre literalmente, mas trai de uma forma tão terrível que é como se morresse: quem morre ali no poema de Baudelaire é a Musa idealizada, dando vez assim à simples mortal que é toda mulher, sofredora deusa falível duas vezes, na mortalidade frágil, e na carnalidade pecadora. No poema, Baudelaire encarna, homenageando-o, outro poeta imortal, a saber, Dante Alighieri.
Vai pois A Beatriz como bônus, na tradução de Ivan Junqueira.
absaam
SONETO DO AMOR IMORTAL
Eu sempre volto triste ao cemitério
onde está enterrado o meu amor.
Naquela cova esconde um mistério
que transforma em riso a minha dor.
Ai, nosso amor tão grande e proibido
não acabou com o crime passional
que um feioso e gorducho marido
julgou que seria o seu ponto final!
Plantei naquela cova a erva rara
que à minha amada era tão cara
- Ela que não era má, e nem medonha...
Num trago demorado a alma sonha
unir-se a partículas de Beatriz...
E no resto do dia eu sou feliz!
Antônio Adriano de Medeiros
UMA DESGRAÇA DO OUTRO MUNDO
I
A amada morreu e, sempre terno,
ao cemitério diariamente eu ia.
Lá rezava por nosso amor eterno
um Pai Nosso, um Credo, Ave Maria.
Porém, numa pegada de inverno
imenso temporal eis que caía.
Em casa fiquei preso – Ó Inferno:
um taxista sequer não me valia.
Com seis noites eis que o céu tenebroso
permitiu que um bom Quarto Minguante
me guiasse até a cova da amada.
À necrópole corri doido, ansioso...
Mas à porta me disse um esqueleto:
– “Tal desgraça não cabe num soneto!”
II
Cemitério escuro e pantanoso.
Fogos-fátuos tocavam numa banda.
Mutiladas crianças na ciranda
de um palhaço com nariz canceroso.
Fui à cova do amor venturoso
qual quem voa, não como quem anda.
Mas lá vi um quadro tão horroroso
que o meu coração quase desanda.
Pois quem fora um poço de virtude
vi de quatro por sobre um ataúde:
por defuntos nojentos violada.
E, montada por um meu inimigo,
quando o seu olhar cruza comigo
ela explode em terrível gargalhada.
Antônio Adriano de Medeiros
BÔNUS - A BEATRIZ - CHARLES BAUDELAIRE
A BEATRIZ
Charles Baudelaire
Num solo hostil, crestado e cheio de aspereza,
Enquanto eu me queixava um dia à natureza,
E de meu pensamento ao acaso vagando
Fosse o punhal no coração sem pressa afiando,
Em pleno dia eu vi, sobre a minha cabeça,
Prenúncio de borrasca, uma nuvem espessa,
Trazendo um bando de demônios maliciosos,
Semelhantes a anões perversos e curiosos.
Entreolham-se a mirar-me, aguda e friamente,
E, como o povo que na rua olha um demente,
Eu os via rir, entre si cochichando,
Piscando os olhos e também sinais trocando:
- Contemplemos em paz essa caricatura
Que do fantasma de Hamlet imita a postura,
Os cabelos ao vento e o ar sempre hesitante.
Não causa pena ver agora esse farsante,
Esse idiota, esse histrião ocioso, esse indigente,
Que seu papel de artista ensaia à nossa frente,
Querer interessar, cantando as suas dores,
Os grilos, os falcões, os córregos e as flores,
E mesmo a nós, que concebemos esses prólogos,
Aos berros recitar na praça os seus monólogos?
Com meu orgulho sem limite, eu poderia
Domar a nuvem dos anões em gritaria,
Deles desviando a fronte esplêndida e serena,
Caso não visse erguer-se, em meio à corja obscura
- Crime que até a própria luz do sol abala! -
A deusa a cujo olhar outro nenhum se iguala,
Que com eles de minha angústia escarnecia,
E às vezes um afago imundo lhes fazia.
Tradução de Ivan Junqueira
Charles Baudelaire
Fleurs du Mal
Charles Baudelaire
Num solo hostil, crestado e cheio de aspereza,
Enquanto eu me queixava um dia à natureza,
E de meu pensamento ao acaso vagando
Fosse o punhal no coração sem pressa afiando,
Em pleno dia eu vi, sobre a minha cabeça,
Prenúncio de borrasca, uma nuvem espessa,
Trazendo um bando de demônios maliciosos,
Semelhantes a anões perversos e curiosos.
Entreolham-se a mirar-me, aguda e friamente,
E, como o povo que na rua olha um demente,
Eu os via rir, entre si cochichando,
Piscando os olhos e também sinais trocando:
- Contemplemos em paz essa caricatura
Que do fantasma de Hamlet imita a postura,
Os cabelos ao vento e o ar sempre hesitante.
Não causa pena ver agora esse farsante,
Esse idiota, esse histrião ocioso, esse indigente,
Que seu papel de artista ensaia à nossa frente,
Querer interessar, cantando as suas dores,
Os grilos, os falcões, os córregos e as flores,
E mesmo a nós, que concebemos esses prólogos,
Aos berros recitar na praça os seus monólogos?
Com meu orgulho sem limite, eu poderia
Domar a nuvem dos anões em gritaria,
Deles desviando a fronte esplêndida e serena,
Caso não visse erguer-se, em meio à corja obscura
- Crime que até a própria luz do sol abala! -
A deusa a cujo olhar outro nenhum se iguala,
Que com eles de minha angústia escarnecia,
E às vezes um afago imundo lhes fazia.
Tradução de Ivan Junqueira
Charles Baudelaire
Fleurs du Mal