quarta-feira, 22 de agosto de 2012

sutilíssima Trindade


Não é que o modestíssimo blogue teve uma semana bem produtiva? Quem diria, hein?

Mas eis que daqui a pouco outro dever, mais nobre, me chama, e me afastarei deste querido e temperamental laptop, tendo como destino aquelas queridas e tão acolhedoras hostes norte-riograndenses, para três dias de rotina com almas de poetas mais sensíveis e errantes que o comum dos rapsodos.

Confesso que preferiria que em minha ausência o blog ficasse tendo por página de apresentação aquela de ontem, com A Matéria do Poema. Mas é que ontem à tarde um alguém muito especial se materializou em palavras só para mim, e em respeito à atenção dispensada por ter ele vindo do éter cósmico se apresentar a alguém tão desprovido de talento e virtude, não resisto à tentação de acolhê-lo: não iria deixar ao relento do anonimato por alguns dias o melhor criminalista desse país...

Refiro-me ao Dr. Phil Lantra de Nascença Jr, a quem finalmente tive a honra de conhecer pessoalmente. Sim, porque através de telefonemas já havia travado conhecimento com sua egrégia pessoa, quando solicitou-me os modestos préstimos profissionais para atender a demandas do não menos ilustre senhor Dr. Gall Lombroso Dallalei, e do controvertido Sr. Cockão, cujas autodescrições pessoais e personalíssimas se seguem àquela do Sua Excelência o Dr. Phil Lantra Jr.

Na autoapresentação que o Dr. Phil Lantra Jr. faz de si mesmo ele fez questão de colocar uma epígrafe do poeta Augusto dos Anjos, extraída do soneto o Morcego, cujos versos finais são:

- "A consciência humana é este morcego:
por mais que a gente faça, à noite, ele entra
imperceptivelmente em nosso quarto."

O Dr. Phil Lantra Jr., disse-me ele, fez questão de incluir o terceto final, a moral do soneto de Augusto dos Anjos não apenas para mostrar que tem cultura poética, que seu saber humanístico em muito ultrapassa os vastos conhecimentos jurídicos que domina, mas sobretudo para dizer que felizmente tem a sua consciência limpa.

Acredito que o mesmo valeria para os outros dois, pelo que pude perceber deles.

O Dr. Gall Lombroso Dallalei deve seu pomposo nome a dois baluartes dos primórdios da, digamos, neuropsiquiatria, os Drs. Franz Joseph Gall, médico e anatomista alemão criador da Frenologia, teoria que diz ser capaz de determinar o caráter, características da personalidade e o grau de criminalidade de alguém pelo formato da cabeça, lendo caroços ou protuberãncias ósseas, e do italiano Cesare Lombroso, célebre psiquiatra do Século XIX, criador do conceito do "criminoso nato", inluenciado pela frenolgia de Gall mas que a ampliou bastante, sendo que bastava olhar para uma pessoa que, pelas características físicas da mesma, ele diria se era ou não um "criminoso nato"... Lombroso foi ainda um estudioso e praticante da mediunidade e do espiritismo, tendo ainda o mérito de ter sido o primeiro a defender medidas preventivas para o crime, tais como a educação, a iluminação pública e o policiamento ostensivo; também foram seus estudos que tempos depois deram origem ao que se chama hoje de vitimologia. Eram estudiosos de um tempo muito arcaico, e naturalmente, se hoje algumas de suas idéias parecem engraçadas e mesmo meio loucas, é bom olharmos para o futuro e pensarmos o que vão achar das nossas - e daquelas dos célebres cientistas de hoje - daqui a duzentos, trezentos anos... O Dr. Gall Lombroso Dallalei é poderoso empresário, político, e homem ligado à lei, sendo que, pedido seu, não revelaremos qual a sua relação com a lei, ou seja, qual a sua profissão.


Já o terceiro membro da Trindade, como veremos, não gosta de falar muito, nem mesmo revela o seu verdadeiro nome, apresentando-se apenas como Cockão, o Rei dos Cabeças. Malgrado seja um homem poderoso em seu meio, vive como que nas sombras da clandestinidade. Figura bastante controvertida, o Sr. Cockão comercializa certas substâncias químicas que a lei, a medicina, o bom senso e as tradições da sociedade não recomendam, não aceitam e mesmo abominam e combatem. As ideias do Sr. Cockão são também bastante estranhas e controvertidas, como veremos; aliás, as ideias das três raras personalidades aqui apresentadas são bem sui-generis.

Os poemas em prosa - gênero criado pelo poeta francês Charles Baudelaire em meados do Século XIX, espécie de minicontos com parágrafos ou estrofes bem cheios de idéias inovadoras, surpreendentes, fantásticas e mesmo estarrecedoras; ele chega a reclamar em um de seus poemas ao fato de o Diabo só ter aparecido a ele uma vez, e de tê-lo deixado aqui na Terra, quando o poderia ter levado sabe Deus para onde - pois bem, os poemas em prosa da série Doidos de Mim se caracterizam por sempre serem autodescrições de certas personalidades singulares, caricaturando traços de uma profissão, de um caráter, ou mesmo de personalidades mórbidas para a composição das quais eu emprego e empresto meu pouco conhecimento aplicado a cada caso, razão pela qual chamo, a meus meninos traquinas, de Doidos de Mim.

A imagem que antecede os poemas em prosa e esta longa e cansativa preleção é irônica e inversa: os macaquinhos deuses orientais Nada Ouço, Nada Falo, e Nada sei são exatamente o contrário dos Doidos de Mim, principalmente dos três aqui apressentados, que julgam tudo saber, tudo ouvir, e sobre tudo querem opinar.


absaam

DOIDOS DE MIM


PHIL LANTRA DE NASCENÇA Jr.


              "Meu Deus, e este morcego?"
                     augusto dos anjos


- Eu sou Phil Lantra de Nascença Jr.
Sou o melhor criminalista desse país!
Também tenho outras qualidades, poeta, cantor...

Naturalmente que cobro meus honorários
de acordo com a qualidade de meus serviços.
Se você não dispõe de soma próxima ao milhão de reais
para investir nos trâmites de um Processo,
não deve me procurar.

Tenho várias estagiárias - e também alguns estagiários -
que se esmeram sobretudo no que chamamos
de seleção econômico-natural dos clientes.
Parcelas iniciais abaixo dos Quinhentos Mil
tornam impossível a prestação de serviços
de acordo com nosso padrão de qualidade.

Porque a sinceridade e a honestadidade antes de tudo!

Naturalmente que clientes preferenciais
não precisam perder tempo com estagiárias
- a não ser nos raros casos em que assim o desejem. -
São clientes antigos, ou recomendados previamente
por estes, sempre com contato telefônico prévio.

Porque a questão do crime é muito complexa.
Só há crime quando existe o puro Mal!
E o que chamamos de Mal em nosso comum cotidiano
- e portanto, o que o vulgo julga ser crime -
muitas vezes é uma questão de preconceito,
uma interpretação desvirtuada dos fatos, um erro
de julgamento da comunidade que muitas vezes
não consegue compreender as verdadeiras intenções
do agente da ação, que na verdade pretendia
apenas fazer o Bem.

Vejamos o caso dos bancos, das empresas,
do comércio: não são eles os verdadeiros
agentes do progresso econômico da humanidade?
E ali sempre há um pouco de usura,
o juro, o lucro, ás vezes um monopoliozinho,
uma pequena chantagem, quem sabe até
incluindo uma doce e brincalhona pitada de extorsão...
Mas não são eles que permitem o emprego de tantos,
o desenvolvimento econômico, e sobretudo
o que é mais sagrado, o progresso social?

O puro Mal - o Crime strictu sensu - é raríssimo,
a imensa maioria das vezes tudo não passa de preconceito
ou se deve a um erro de comprensão, de esclarecimento.
Nada que uma boa conversa entre quem se julga vítima
e o suposto algoz não possa resolver.

Amiúde, porém, quando a assim chamada vítima
se mostra totalmente incapaz de compreender
- por doença mental ou patologia de caráter -
as sutilezas da conspiração de fatos que levaram
ao equivocado fenômeno ora nomeado crime,
é perfeitamente natural que o necessário e justo acordo
se faça apenas entre os homens da lei.

Suprema ignorância vemos no conceito,
digo, no preconceito, do que chamam de crime passional
- um crime adjetivado, Sábio e Bondoso Pai!

- Piedade, Senhor, piedade!

Como pode haver crime quando as emoções,
os sentimentos, alterações de humor, a paixão,
tudo que existe de mais belo e tipicamente humano
provocou o ato impulsivo e impensado
que veio a ferir ou destruir o ser mais amado,
ou o suposto ou real rival na suprema,
santa e belíssima batalha do amor?

Na guerra e no amor tudo é permitido,
reza a velha e boa tradição,
e não foi o Supremo Criador que primeiro nos disse:
- "Crescei e mulplicai-vos"?
Ora, se no cumprimento deste primeiro mandamento
- ùnico Mandamento que o homem, por duas vezes,
ora como Adão, ora como Noé, o construtor da Arca,
teve a honra e o privilégio de ouvir da Boca do Pai -
vem a infeliz e pequena criatura humana
a sucumbir à tempestade de emoções
Daquele Mais Elevado oriunda,
que mereça nossa compreensão, nossa compaixão,
e sobretudo o nosso perdão, mas nunca a punição!

Evidentemente que quando aí vêm a ocorrer
os lamentáveis excessos da ocultação de cadáver,
do esquartejamento, da dissolução por meio químico,
da combustão pelo fogo, ou do odiável canibalismo,
aí a coisa é elevada aos parâmetros da patologia mental
- que pode ter sido apenas momentânea
e provocada pela súbita e inesperada visão
da obra do ato impulsivo e impensado
e a aterradora tempestade de emoções daí oriundas,
sendo necessário para isso o laudo preciso e cabal
de respeitado Perito em Psicopatologia Humana,
sendo que também podemos recomendar os melhores,
o que porém acresce aos honorários processuais
valores em torno dos cinquenta por cento.

Fato é que tenho a consciência tranquila
para afirmar que nenhum de meus clientes
- faço questão de afirmar: absolutamente nenhum
de meus clientes - é, foi, ou será, um criminoso!
E que odeio, desprezo, abomino mesmo
a figura para sempre reprovável do delinquente,
com algumas das quais já me defrontei
do lado de lá do embate dos trâmites processuais.

Criminosos são os clientes dos outros!

E nenhum morcego jamais teve a petulância
de vir à noite ao meu quarto incomodar meu justo repouso!

Justiça!

Meu nome é Phil Lantra de Nascença Jr.!



                       Antônio Adriano de Medeiros
                       João Pessoa, 21 de agosto de 2012
                       Para os DOIDOS DE MIM








GALL LOMBROSO DALLALEI


- Eu sou a lei! Alheio a qualquer sofrimento
quero aplicá-la à força, e sob o meu paletó,
se alguém se atrevesse a apalpá-lo!,
encontraria pelo menos um coldre,
sinal de pequeno objeto metálico cheio de balas,
- coisa que posso usar porque só faço o bem! -,
balas que tornam mais doce a nossa vida saudável,
e que plantam nos jardins distantes da cidade
as almas que não merecem o descanso eterno.

Detesto os tempos de hoje,
esses tempos doentes onde os que caíram,
aqueles que infringiram as sagradas normas
- macularam o higiênico papel da lei -,
querem encontrar justificativas para o Hediondo,
minimizando sua predisposição inata para o Crime.

Meu supremo ódio reservo aos drogados.
Uma morte só para eles é pouco.
Sentiram prazer em desrespeitar a Norma
- essa abstração da Virgem Imaculada -,
e ainda ousam dizer que são recuperáveis!

Morte aos vermes! Morte aos anjos caídos!
Morte espiritual antes, morte física depois!
Não permitamos que se recuperem
porque dariam o enganoso exemplo de que seriam homens,
e de que nós, os verdadeiros homens,
não passaríamos de burricos mentirosos e venais;
nós, que temos o direito de confiscar todas as substâncias ilícitas,
porque, além de não as usarmos nunca,
nós, os intocáveis, não as venderíamos jamais...



                   Antônio Adriano de Medeiros
                   Da série DOIDOS DE MIM, remaquiado






COCKÃO, O REI DOS CABEÇAS


- Cara, qualé?

Viver é sentir, não precisamos mais agir,
só usar a substância.
Tudo que nós sentimos é mero efeito de substâncias.
Queira Deus chegará o dia em que tudo dependerá de
substâncias: uma para você se sentir saciado da fome,
outra pra você dormir, uma terceira pra ficar acordado,
aquela outra para você ter prazer.

Sim, mas isso quando a humanidade tiver alcançado
um altíssimo grau de desenvolvimento, saca?

O trabalho ficará então a cargo somente das máquinas,
dos clones humanos, ou de alguma outra espécie
de ser inferior que ainda não consigo identificar.
Quem sabe o fruto do cruzamento do homem com o macaco,
digamos assim, o operário perfeito?

Será que na prática já não é assim?

Não brinque com a sutilíssima e sorrateira Química,
que a Química pode tudo!

O fato é que devido à lamentável existência
dos muitos desgraçados seres inferiores
que não conseguem conviver com o proibido,
nós precisamos permanecer assim na clandestinidade,
atuando meio que nas sombras,
porque sobretudo nós não podemos deixar de vender...

Porque está escrito: "Lembra-te homem,
que és pó, e ao pó retornarás!"

Cara, qualé?




                          Antônio Adriano de Medeiros
                          DOIDOS DE MIM