Os escritos da série Doidos de Mim permitem-me encarnar certas personalidades incomuns, sempre na primeira pessoa do singular, oferecendo já no título um nome com características de diagnóstico e de cartão de apresentação. Aqui vão dois comedores de gente, mas de gente... morta! Um canibal e um necrófilo, companhias decerto não muito recomendáveis. Há porém o fato de que outros Doidos de Mim já se apresentaram no blogue, entre eles Hansen, O Barão de Momoicó, e A Bela Parricida.
É impossível falar como canibal e ser lírico, parece. Precisa-se de muita cautela pra se defender o indefensável, e K. Anibal não pôde usar nem um pouquinho de lirismo a não ser talvez na mençao à tonalidade triste das sonatas que ouviu enquanto jantava um casal de amigos algo a contragosto. Já o necrófilo Zé dos Caixões esbanja lirismo ao descrever suas abomináveis paixão e aventuras.
Interessante que na prática é o contrário: o canibalismo pode até ser defensável em situações extremas (lembrar o acidente dos Andes, e o mais recente, o da mina do chile, quando tudo já estava preparado...) mas a necrofilia, jamais. Confesso porém que fui influenciado por Alice Cooper pra poder ser tão lírico na necrofilia. A música é I love the dead.
Lembro de quando o Prof. Leme Lopes fez uma palestra no anfiteatro que já tinha seu nome, quando a homossexualidade perdeu a condição de entidade nosológica pura, acho que em 1986: ele lembrou que nem todas as chamadas perversões sexuais poderiam ser porém encaradas com vistas grossas (alguns mais empolgados já proclamavam o liberou geral) a necrofilia seria sempre sinal patognomônico de grave transtorno mental; ela é um extremo, um marco - e sempre é bom lembrar que existem marcos.
E não pense a leitora estar livre da obrigação de usar um crachá que a identifique psiquiátrica ou psicopatologicamente: o diagnóstico em cinco eixos da Associação Psiquiátrica Americana bem pode num futuro perverso ser transformado num crachazinho obrigatório onde a pessoa deve ser identificada quanto a seus rendimentos práticos levando-se em conta suas características psíquicas;
Mas por enquanto os diagnósticos verdaddeiros são usados apenas para permitir a melhor maneira de a Medicina ajudar alguém. Essa é a idéia, imorredoura, creio.
absaam
K. ANIBAL
- A parte mais chata ainda é que fim dar aos ossos,
sempre muitos e delatores demais a olhares circunspectos:
o abate da presa até torna-se fácil com o tempo.
No preparo, devem-se seguir os mesmos cuidados,
empregarem-se os mesmos molhos e temperos
da culinária das pessoas comuns:
um bom vinagrete sempre cai bem com churrasco;
certos grelhados sempre combinam com alho e pimenta,
e arroz e legumes são os acompanhamentos universais.
Só nunca revele o prato que está servindo aos convidados:
certa vez um casal de amigos não reagiu bem
ao saber que jantara um desafeto, e entrou em pânico,
e logo os vi muito falantes e desconfiados e perigosos,
sendo que tive que também jantá-los nos dias seguintes;
nunca um piano tocara tão triste aquelas sonatas!...
nunca o vermelho do vinho me dera calafrios em vez de calor.
Por isso nunca pergunte:
admiras porventura a carne humana?
E não se recomenda a sopa com ossos, aqueles delatores.
Antônio Adriano de Medeiros
ZÉ DOS CAIXÔES
- Quem sabe de todo o ardor,
do tamanho prazer que fica no frio túmulo
quando a dor da família volta pra casa chorando?
Quem fará companhia à linda jovem recém-chegada
naquela primeira noite em que a bela vai dormir
- Ai, ainda com todos os cabelos! - na casa dos mortos?
- Tu a abraçarias assim como eu, amigo leitor?
Quem sabe da beleza que não se desmancha
assim tão de repente como cessa o calafrio,
o tremor, esse calor, esse soprar que se chama vida?
Quem ainda a julga fonte de paixão,
digna de companhia apesar da tamanha frieza?
Em quem a paixão acende ainda aquele olhar tão opaco?
- Tu a amarias assim como eu, dileto leitor?
Quem ainda uma noite a despiria, na vizinhança
de tantos esqueletos curiosos e tão perscrutadores?
Quem dançaria com ela uma valsa ao luar?
Quem deliraria de prazer ainda uma noite
na companhia de dama tão insensível?
Quem ousaria desnudar a rosa fria?
- Tu a beijarias assim como eu, recatado leitor?
Antônio Adriano de Medeiros