sábado, 20 de outubro de 2012

dalí, diarios 2, tic-tac podridão










Apelando então para o que seria uma espécie de “diapasão da alma”, não nos custa imaginar que muitas vezes quando o que vem do mais profundo em nós está vibrando numa amplitude bem abaixo do equador, e as emoções e palavras daí oriundas, por virem das proximidades do nadir, manifestarem igualmente coisas do pessimismo, da decadência, da doença e da morte, sempre se procurando – do contrário, não se faria poesia – que as faíscas arrancadas ao nada quente sejam expressas com o mínimo possível e necessário de beleza.



É, assegurando-vos com o que resta de melhor em minhas força, constituição e talento, com grande, sufocante esforço, que faço chegar aí três malamanhados elementos da Poesia. O primeiro, do nobre Pó, é quase uma continuação da presente introdução; já a segunda parte dos diários de um mieloma múltiplo dispensa maiores comentários, sendo que tic-tac podridão, como o Orfídio gosta de se referir ao Introitus da Ode à maldição, dá também sequência, ou se liga mesmo, numa união que temo funesta, aos próprios dários de mi eloma, nascendo lá, naquela coisa lá - nela! e, o que é mais grave, trazendo coisas de lá para cá, aceitando a corrupção, a cópula com a crápula, a aura da contaminação.

Devo lembrar que os dois deuses atacados de forma vil nos diários da indesejada era o trigo e a uva, Deméter e Dionísio, o pão e o vinho, o corpo e o sangue...



absaam





do nobre Pó


um sufoco do oco das profundas,
um presságio do eco das parábolas,
um percalço no eixo das paralelas,
um petardo no ego da paranóia,
um pesado na cara do patife,
um pescado anelo da patativa,
a patada desastre do paquiderme,
a partida dos astros, o jogo cósmico,
o preciso invólucro de ser pó ético,
a parcela de arte da amada poese,
a poeira prenhe de morte de toda peste,
a preciosa galanteria do cafajeste,
e sobretudo um verso, um verso qua ainda reste,
qualquer verso, reles verso, um verso que já nem preste...



                 Antôniio Adriano de Medeiros




diários de um mieloma múltiplo - 2




Pensava mesmo que eu fosse tão bobinha a ponto de aparecer aqui todos os dias, expondo meus segredos, me fragilizando? A Doença trabalha nas sombras; o despiste, o esconde-esconde, o só querer aparecer em último caso - e, mesmo assim, a contragosto, são nossos mais ancestrais arcanos... Assim como o crime, a doença nunca deve sequer de longe anunciar-se previamente, e vestígios, pistas - os terríveis sinais! - são os elementos que possibilitam nossas identificação, detenção, e posterior destruição - ainda que apenas em casos individuais – por aqueles... vocês sabem quem, não preciso de nomeá-los!

A doença precisa de uma aura de mistério, de se valorizar não se expondo demais, ocultando suas fraquezas, e aparecendo cada vez mais poderosa - a doença é mulher. Nada mais requer com santa, pura, bem intencionada naturalidade, que a ditadura da saúde, os apelos normativos do macho - basta olhar como se passam as coisas da estrita obediência à norma, àquela autoridade da razão, do bom senso, da esperança, da salvação...

E eu não estou aqui para brincadeira, não! A Doença - não uma doencinha qualquer, dessas más nascidas, que já chegam com duração limitada de vida, etc. -, quando digna de tal nome, tem algo de sagrado,  de definitivo, e mesmo de lei: o Processo já se iniciou, a Ampulheta já foi virada!

- Agora é com você, meu bem! (Confesso que ia dizer "amor", mas ficaria muito parecido com o linguajar das putas, e reafirmo que não sou uma qualquer... )

Na verdade, é com todos vocês...

Não, não sou cruel, apenas, de família muita antiga - digamos, aristocrática - procuro criar aforismos - rá, rá, como sou espirituosa! - pois bem, os aforismos de escória, para pespegá-los sobre meus tão desejados objetos de amor - e por isso costumo me divertir muito quando digo que não existem vivos, apenas moribundos.

A nós, deuses eternos, sempre nos causou curiosidade essa estranha, tresloucada paixão com que as pequeninas criaturas de barro, esses vagalumes de luz tão sutil, se apegam à sua existência passageira de mortal... E inventam coisas tão bonitas sobre isso - há quem diga até que foi por isso que nos inventaram, a nós potestades imortais - sendo o mais nocivo desses inventos, o mais sedutor desses devaneios, a mais grave dessas alucinações, aquela coisa do pão e do vinho - tanto que não somente eu, mas toda nossa dedicada comunidade de entidades mórbidas e malsãs, temos como uma das causas pétreas de nossa própria existência, o combate à lenda vil de irmanar-se a pão e vinho e retornar, ainda que, como dizem , "em espírito", do mundo dos seres que viraram coisas, e nesse ir e vir perpétuo se tornar também imortal...

Se bem que... Eu e a Maioral, eu e a Poderosa, e a Moira Corta Fio, ás vezes nos divertimos muito dizendo que os filhinhos diletos da Perfeição estão bem arrumados quando confiam sua imortalidade a um bêbado e a uma ciclotímica...

Por hoje, basta, vou parando por aqui... Acabei me expondo mais do que desejava...

- Mas não vou afastar-me assim de meu amante enfermiço sem dar-lhe uma prova cabal de meu amor: sei como ele leva a sério aqueles seus escritos... E encerro o capítulo de meu diário de hoje com um poema dele, um de seus surpreendentes poemas até para nós imortais, pelo que há aí de autoconhecimento, sabedoria, humildade e aceitação do  Destino.

É o Introitus, soneto que abre a Ode à Maldição:


                                               
                                          mi eloma aam




INTROITUS


Dentro do meu peito existe
errado, pois do seu lado direito,
cercado de ossos, triste,
um coração mais que imperfeito,
semelhante a um cemitério
onde reina a solidão...
O seu batuque é funéreo,
tic-tac podridão.
Ele vai marcando as horas
de uma vida amargurada,
pois a minha humana ossada
só teve tristes outroras:
rosas podres, amores falsos, persistente traição...
- Eis da vida de um verme a mais perfeita tradução!

           


                                    Antônio Adriano de Medeiros