quinta-feira, 11 de outubro de 2012

O Açude de Nanim

Vemos acima Santa Luzia da Paraíba, do alto do Monte São Sebastião; o Açude Velho é o de lado de cá, da parte baixa da foto; na verade, só a metade dele, não a minha: a minha casa ficava mais para  o lado esquerdo da foto, onde há ainda uma ponte separando os dois lados do açude referido. O meu lado do açude fica quase o tempo todo permanente seco.

Celebrando pois a memória dos anos passados, deixo de lado o tema da Parca Má, lembrando que a Morte só chega depois, e que muitas vezes houve vida, e muito boa vida antes. 

Foi cerca de um semana depois de sair de casa que eu caí naquele choro. Tinha dezesseis anos e saíra de minha casa em Santa Luzia para ir estudar em Recife, segundo ano do segundo grau, lá na casa de Dinha em Boa Viagem, onde ainda moravam Douglas, Nathalie e Karen, Alicinha chegando depois. Era uma tarde, estava estudando literatura ou biologia, e de repente eu percebi que nunca mais voltaria ao meu quarto de brinquedos nem haveria nunca mais o Açude Velho... Meu Deus, como eu chorei!

O Açude Velho de Santa Luzia, oficialmente Açude Padre Ibiapina, teria sido construído por aquele santo homem, em finais do Século XIX. No fim dos anos 50 do Século XX meu pai adquiriu umas terras à beira do açude, para ajudar na urbanização da cidade, visto que era comerciante e banqueiro de bicho e precisava expandir a loja, onde morava até então com meus irmãos - eu deixara para nascer na casa à beira do açude - Eu não sou Peixes? Pois bem, construída a casa, nasceu Nanim, o Primeiro Menino, e ficou sendo, naturalmente, o dono daquele pedaço do açude, que era o melhor para se tomar banho, visto que havia uma calçada do lado direito da casa, onde nascia o sol, e até uma pequena balaustrada de onde a gente podia "frecherar", ou flecheirar, como queiram, que é pular na água de ponta cabeça, que nem um pássaro em busca de vida.

Mais ou menos por volta de 1978 um prefeito, cirurgião, cismou de que "o Açude Velho está contaminado", e decidiu arrombá-lo para evitar epidemias delirantes. Na verdade ele parece que precisava saldar dívidas de campanha doando terras do açude a amigos, inclusive meu irmão mais velho foi um dos principais agraciados. Outro irmão, o segundo, que já dorme entre os justos, homem culto e bastante irônico, após participar de algumas reuniões no hospital com o referido prefeito recém-eleito,  vaticinou - "Ele parece que quer secar o açude porque Dinalva não quis namorar com ele quando era estudante de medicina, pois agora vive falando nisso..." Dinalva, que também já dorme entre os justos, era minha irmã com fama de a mais bonita da cidade e, a bem da verdade, outras "moças ricas" e bonitaas também eram citadas com mágoa pelo prefeito, entre elas "Norma de Chico Braz", segundo me Disse o referido irmão culto.

Hoje, passados tantos anos, vejo que havia exageros idiossincráticos no prefeito, o coitado acabou se matando anos depois no exercício de outro mandato, sendo digno pois do Perdão de Nanim, que talvez o Dr. Antônio Ivo de Medeiros, que era um homem bom e bem intencionado, tenha sido, ao ser o primeiro a arrombar o Açude Velho, apenas um instrumento de seu tempo, pois a cidade precisava crescer ainda mais, outros prefeitos também doaram terras, mas hoje ainda persiste um resquício do que fora antes o Açude Velho de Santa Luzia, o Açude de Nanim.

Nas noites de São João, o bom era jogar fogos, cobrinhas principalmente, dentro d'água e vê-las dipsarar que nem piabas em chamas, ou pequenos torpedos da paz.

Enfim, estando recolhido para tratamento ou outra finalidade que determinará o Santo dos Santos, nada como enriquecer o espírito com recordações assim, sendo que agradeço não ter-me bitolado apenas em assuntos médicos puros, ter-me humanizado em literatura e arte, guardando pois para momentos assim, derradeiros ou de suma solidão e introspecção, escritos que me façam viajar no tempo, rever antigos conceitos e preconceitos, celebrar, pois, a Memória...

Cumpre dizer ainda que os açudes do sertão enchem e secam, conforme a época do ano e, durante uma seva prolongada o açude seca completamente, revelando primeiro atoleiros e montanhas, terras novas a descobrir, inclusive o Brasil, que eu decobri aos 8 anos na seca de 70: O Brasil, descoberto por Nanim e sua intrépida trupe, ficava lá do outro lado do açude, justamente onde hoje está a sede nova do Yayú Club. Também os açudes racham a lama e deixam aparecer espinhos. Quando a lama racha, o barro é bom pra se fazer esculturas de índios, cavalos, bois, bodes, e tudo o mais. Quanto aos espinhos, o sábio Nanim descobriu como enfrentá-los mesmo descalço: sim, porque só tem graça brincar em açude seco se for descalço - é só ir no atoleiro e providenciar umas botas de lama bem grossonas...


absaam


                                ESCRITOS DE NANIN


O AÇUDE

Não sabe o mar? Pois eu descobri
que para meninos assim como a gente
existe uma coisa melhor do que o mar: é o açude.

O açude é o mar próprio para crianças.
As ondinhas pequenininhas parecem carícias
que o vento faz porque gosta da água,
e elas também acariciam a gente porque gostam da gente,
não como aquelas ondas do mar que nos derrubam
ou sacodem longe, ou podem até arrastar pra nunca mais, dizem.


A água do açude também deixa a gente mergulhar de olhos abertos
pra ver como é lá embaixo e procurar coisas e bichos.


Porque o açude também tem bichos,
mas tudo para crianças, peixinhos pequenos
que não engolem a gente nem arrancam pedaços,
embora tenham me dito que a traíra pode morder um dedo.
E tem os patos, as garças lá longe, o mergulhão, o martim-pescador,
todos medrosos, saem correndo quando a gente vai falar com eles.
E tem também o amigo aruá.
O aruá é amigo porque deixa a gente chegar perto e até tocar nele
quando está preso na calçada de casa ou numa pedra.
Ele anda de um jeito muito engraçado e lento,
e também esconde as pernas dele como o cágado,
mas esse não gosta que a gente toque nele,
tem que ir atrás e ele se esconde, ou também pode morder.


Diz que quan do o cágado morde um, "só solta quando o sino bater". 
Eu então perguntei á Mamãe - "E se for tarde da noite, e a igreja
estiver fechada e o sacristão dormindo, como se faz?" -
A minha boa mãe então me respondeu que "quando o sino bater"
é apenas uma forma de dizer que o cágado. o terrível, o perigoso cágado,
depois de morder sua vítima só a solta depois de morta.

Eu, menino esperto, pensei, porém, que uma faca bem amolada
facilmente poderia cortar aquele pescocinho de cágado...


Quer dizer, o açude não é essa besteira de piscina
que mais parece uma banheira grande.
Mas o bom mesmo do açude é que ele tem dono.
 

O açude pode ser de um só dono
ou pode ter donos de pedaços dele, quando o açude é grandão
ou então quando fica numa cidade.


Pois saiba que eu já tive um açude.


Quer dizer, não era bem meu, era de vovô-elefante,
mas só tomava banho ali quem era meu amigo e se eu deixasse.
Porque eu era o menino daquele açude.
Todos os filhos de vovô já eram grandes, e eu fui o primeiro menino
que apareceu lá depois que ele fez aquela casona dele.
Por isso que nem adiantava os outros meninos,
ou mesmo minha irmãzinha Rosa que era maior do que eu mas é menina,
pensarem que mandavam ali: quem mandava era eu!

Talvez por ser muito bom, ele enchia e secava.
Secava para a  gente descobrir terras novas, montanhas e atoleiros,
e até fazer uma botonas de lama grossa e poder andar sobre espinhos.
Mas bom mesmo era quando o meu açude enchia.
Ele sempre enchia quando eu ia na casa de vovô depois do Natal,
só uma vez ele não encheu, mas aí eu comecei a pedir a Papai Noel
todo Natal que não esquecesse de encher meu açude,
e assim foi até aquele dia que vovô-elefante ficou só dormindo
e dizem que depois venderam as terras do açude,
uma tal de política ou polícia, não sei direito a diferença,
sei que vovô só os chamava de macacos raivosos
(não sei porque, acho os macacos tão engraçados).


Fizeram umas casas sem graça e hoje o açude nem enche mais,
pois deixaram ele bem pequenininho e ele ficou com raiva.

Ele enchia com a chuva. Era assim: ele podia até estar todo seco,
mas aí começava a chover, e a água da chuva toda saía correndo pra lá,
vinha das ruas, dos córregos, dos riachos e dos rios.
Nem adiantava chamar pra ela ir pra outro canto
como imagino que outros meninos chamavam,
mas ela só queria ir pra lá, atrás e de lado da casa da vovô.
Aí a gente ia marcando com um pau onde estava a água
pra saber se ó açude tava recebendo água de outros rios lá de longe,
e depois ia olhar e o pau tinha desaparecido sob a água.
Porque só podia tomar banho se ele enchesse até sangrar.
Demorava uns dias, mas teve um dia que eu marquei com meu pau
lá longe e choveu a noite toda.
Quando eu fui olhar no outro dia, o açude já tava cheião.
Eu saí correndo como um doido naquele dia
e não quis nem tomar café. Só depois que assaram umas piabas.

Para mim, aquela foi a manhã de todas as manhãs.


                                     Nanin,
                                     um outro, o mesmo Antônio Adriano de Medeiros