quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Trema: reflexões sobre a velha Morte

 Na imagem acima, as três Moiras ou Parcas, ou ainda Meras, em grego Nona, Décima e Morta, em Roma, Cloto, Laqúesis e Átropos, elas tecem, soltam e cortam o fio da vida, e nem mesmo Zeus poderia se contrapor a suas decisões: "Interessante notar que em Roma se tinha a estrutura de calendário solar para os anos, e lunar para os atuais meses. A gravidez humana é de nove luas, não nove meses; portanto Nona tece o fio da vida no útero materno, até a nona lua; Décima representa o nascimento efetivo, o corte do cordão umbilical, o início da vida terrena, o individuo definido, a décima lua. Morta é a outra extremidade, o fim da vida terrena, que pode ocorrer a qualquer momento." (wikipedia)


Interessante que não encontrei o significado da palavra "trema" na Net que expressa, no teatro, a extrema ansiedade dos atores nos momentos que antecedem a entrada em cena; encontrei tal significado da palavra "trema" em meus tempos se jovem culto, cosmopolita, sonhador e estudioso, no IPUB -UFRJ, em um livro que  ainda tenho sobre Esquizofrenia: o período pré-mórbido, quando a pessoa sente que algo está mudando em seu ser, mas ainda não descobriu o que é, ainda não fechou o delírio, período este de extremíssima ansiedade psicótica (o mundo, em verdade o Eu, está se transformando, sofrendo uma profunda mudança), é descrito fenomenologicamente se comparando-o àquela ansiedade dos atores antes de entrarem em cena.

Acredito que quando se sabe ser portador de uma doença grave, nessa fase em que o diagnóstico definitivo ainda não está fechado, e se portanto é uma doença grave ou gravíssima, em meu caso se precisarei de quimioterapia só ou do transplante de medula óssea, também se  possa falar em "trema", não só no sentido em que usam tal palavra o teatro e a psicopatologia fenomenológica, mas até mesmo como imperativo do verbo tremer...

São quatro poemas, todos tendo a Morte como tema, Álbum de Mórbidas Recordações, espécie de balancete da vida de um boêmio inveterado com as consequentes sequelas corporais e psicológicas, e os retoques finais da Pintora, da Escultora, da Parca Má, daquela que corta o fio.

Versos a Um Palhaço Morto é um soneto antigo, da semana em que morreu a Princesa Diana em Paris. Ele descreve o que se passa no velório de um palhaço, o que se vê e o que não se vê, o macrocosmo e o microcosmo, mostrando não só ironias, como também compensações; o verbo "animar" é, no verso final, empregado em dois sentidos, alegrar e dar vida. O palhaço morto é aqui emblemático de todo ser humano, inclusive de princesas reais. Certa vez, numa consulta de emergência, fiz um ex-palhaço, ora raivosíssimo, cair em pranto ao declamar tal poema para ele, que me agradeceu muito depois. Como podia um palhaço há vários anos só raivoso? O palhaço tem que ser feliz! Botou pra contar piadas depois... Lembrou-se de que já fora o Caviloso.

Reflexões de um Pretenso Moribundo é de ontem, e descreve bem o trema, já com uma interpretação compensatória final.

E finalmente (e finamente) um poema da fase adolescente de Nanin, A Morte, no qual ele faz lá suas reflexões juvenis, algumas bem poéticas, sobre tal fenômeno característico do homem. Nanim era meu apelido de menino, dado pelo irmão mais novo, Decim, Anderso David de Medeiros, que não conseguia pronunicar "Adrianim"; Nanim, de Nano, quer dizer pequenininho, e é um pouco como a gente se vê nesses momentos tormentosos de trema, tremores e temores. Nanin com "n" ficou um heterônimo, pra mostrar que o Menino sequer escrevia seu próprio nome direito... Um mau poeta, sei-me desde menino...

Mas, refletindo mais profundamente sobre a existência, as mudanças, as decepções, as perdas dos sonhos, não posso deixar de lembrar o verso do Maior, Fernado Pessoa:

- "Morri muitas vezes..."



absaam











ÁLBUM DE MÓRBIDAS RECORDAÇÕES



Fumava.
E a fumaça arrancava-lhe de um resto de pulmão
o odor nauseoso da putrefação.

Tossia.
Sinfonia de espasmos; contrações, magra costela
- Como se à Morte tentasse expulsar pela goela!

Contava
de antigas orgias, amores desfeitos, outros carnavais...
E taras e beijos, traições, intrigas - ódios ancestrais!

Bebia.
Irmão siamês de um copo de cachaça,
cotidiano prazer, tira-gosto da desgraça.

Falava.
Rouca voz da Morte, úmida, a borbulhar
- Na garganta em rubro catarro a se desmanchar.

Agonia!
Uivo dos condenados, lamento mais gutural,
gemido de desespero, ecos do grito primal...

Chegava
Dona Morte a retocar com seu lápis de ironia a magra face,
para que o sorriso da caveira ali melhor se estampasse!




                             Antônio Adriano de Medeiros
                             Caicó - 1992






VERSOS A UM PALHAÇO MORTO


Tu ficaste mais sério, amigo, no caixão.
É sempre tão formal um traje de defunto...
Em ti, terno e a gravata inspiram coimpaixão:
sarcasmo ou ironia? - calado, me pergunto.
És o centro das atenções, mas hoje ninguém
sorri, pois és agora um homem sério.
- A sutil metamorfose do ritual funéreo
transforma vis palhaços em dignos de um Além...
A civilização é essa maquiagem
a ocultar dos homens o destino da Viagem...
- Eu quero hoje louvar, palhaço, a tua nobreza
expressa na fidelidade à tua própria natureza:
pois, mesmo quando fazes chorar uma família histérica,
animas no teu corpo a fauna cadavérica.



            Antônio Adriano de Medeiros







REFLEXÕES DE UM PRETENSO MORIBUNDO



                   "Chegava 
                          Dona Morte, a retocar, com seu lápis de ironia, a magra face,
                          para que o sorriso da caveira ali melhor se estampasse"
                                 
                                aam, álbum de mórbidas recordações




Uma vontade danada
de escrever.
Mas a vontade dá em nada
porque não consigo é crer
que ainda valha a pena.

Penso em meu corpo frio
esquálido, esquelético,
entre quatro castiçais.

Incomodarei alguns que precisarão
carregar-me até a cova. Na curva
da igreja matriz pego a reta
e desço até o cemitério.

Acreditam que agora deram de aplaudir
o féretro quando vai adentrando
pelo portão da necrópole?

Eu não sou digno...

Os velhos, experientes, os  sábios esqueletos,
sorriem, aquele riso  sarcástico
mas também condescendente,
de quem compreende que a vida sempre é um exagero,
uma ilusão, e que elogios e aplausos não nos tornam mais santos,
e que vitupérios e vaias não nos tornam ainda mais vis.

Mas hoje olho com tristeza para os magros esqueletos.
De repente dei de suspeitar que o sorriso da caveira
é de cumplicidade, como se quisesse dizer
"É só isso mesmo, eu me enganei também..."

Como são gentis os esqueletos, irmão!



                   Antônio Adriano de Medeiros
                   João Pessoa, 09 out 2012   







 A MORTE


Eu pensava que era ainda muito criança
para pensar na Morte,
aí descobri que as crianças também morrerm,
o que é uma injustiça. No mínimo um erro
na ordem natural das coisas.

Quis me revoltar com o que supunha ser um erro de Deus,
mas aí lembrei que também talvez fosse uma injustiça
certas pessoas terem nascido,
ou outras não terem morrido ainda,
aí desisti: o mundo não é perfeito mesmo.

Se nem Deus dá jeito, eu é que vou dar?

A Morte é uma coisa
que a gente vê acontecer com os outros.
Ela tanto acontece com pessoas que a gente não gosta,
como com pessoas de quem a gente gosta.

Mas parece que sempre tem alguém
que gosta de uma pessoa que morre.
Por isso a gente deve sempre respeitar uma Morte.

Porque ela nunca falta, dizem.

A Morte é quando o corpo da gente
deixa de ser sujeito e passa a ser objeto
indefinidamente.
Ela nos transfroma numa coisa.

Se bem que andei sabendo que há controvérsias
sobre esse "indefinidamente": há quem julgue que não.
O natural seria que sim, tudo indica isso.
Mas também pode-se pensar que não,
que a Morte pode ser um renascer da própria Vida...

É mais agradável, e principalmente mais educado
pensar de tal forma: quando alguém morre
a gente deve respeitar o desejo de seus familiares
de que ainda vão se encontrar de novo
algum dia.

Porque a Morte é às vezes
uma coisa muito difícil de suportar.
para algumas pessoas.

E também parece que tem pessoas
que só são importantes quando morrem.
Antes não tinham valor nenhum, mas quando mortas...

Porque a Morte é antiga, é nobre, é muito importante:
a Morte é real?

Mas a Morte é sempre triste.
A não ser na loucura chamada Guerra, quando
- já vi num filme - tem pessoas que ficam muito felizes
com a Morte de outras.

Por isso nunca entendi direito a loucura da Guerra,
porque acho estranho existir uma Festa da Morte.

Normalmente a Morte é acompanhada por:
a Notícia, o Velório e o Enterro.

A Notícia anuncia a Morte, e é uma hora complicada,
difícil, uma hora de emoções muito fortes.
Há pessoas que se desesperam verdadeiramente
com uma Notícia de Morte, e querem morrer também...
Seria um contágio emocional da Morte.

Mas normalmente elas desistem e aceitam a Notícia.

No Velório a pessoa que morreu fica deitada
num caixão - que é uma cama que tem tampa -
e cercada por velas acesas. Mas o nome é Velório também
porque o corpo está sendo velado - cuidado, homenageado -
pelos seus familiares e amigos, ou simplesmente por pessoas
que respeitavam ou admiravam quem morreu.

No Enterro a pessoa que morreu é deixada
num lugar chamado Cemitério. Pode ser numa cova
cavada na terra, ou numas casinhas que tem lá.
porque o Cemitério é a cidade dos mortos: eles ficam morando lá;

Os dois momentos mais difíceis da Morte são
a Notícia e o Enterro. Porque implicam sempre algo definitivo,
uma partida e uma despedida para sempre.

Então a Morte é sempre algo muito triste
quando acontece com as pessoas que a gente ama.

Mas você, menino ou menina assim que nem eu
que gosta de brincar e que sabe
que a Vida é uma grande e boa brincadeira,
pode pensar que a Morte talvez seja simplesmente quando
a gente abandona o nosso corpo,
assim como deixa de lado também
um brinquedo que quebrou.



                   Nanin
                   (Um outro, o mesmo Antônio Adriano de Medeiros)