Causos & Causos

MODESTA CONTRIBUIÇÃO SOBRE O FOGO DA PEDREIRA 
VINGANÇA DE CANGACEIRO


[Antonio Silvino e seu Bando]

Minha boa mãe, com seus 89 anos, não gostaria de saber que estou contando isso; malgrado tais fatos tenham ocorrido por volta de 1901, ela ainda teme por vingança ou prisão: conhece o sertão dos diabos. Também Ivan Lessa, jornalista auto-exilado em Londres desde a Década de 60, decerto me desaconselharia, pois, segundo ele, é perigoso contar certos fatos envolvendo poderosos no Brasil: "Aí tudo termina em tiro ou Processo", escreveu ele recentemente.

Mas a verdade é que havia meu bisavô materno no meio do caminho. João Freire de Araújo estava no roçado trabalhando com seu filho Miguel, entre Santa Luzia e Caicó, na fronteira da Paraíba com o Rio Grande do Norte, quando de repente se viu cercado pelo bando do cangaceiro Antônio Silvino. Queriam saber o caminho para a Fazenda Pedreira e o intimariam a ir levá-los até  as proximidades das terras de Janúncio Nóbrega, pois eram convidados para o casamento de sua filha. Porém nada disseram de seu destino e planos  na presença do menino:

- Primeiro vá deixar esse menino em casa: tem coisas que não se conversa na frente de menino!

Só quando voltou João Freire de Araújo ficou sabendo que iria levá-los até a Pedreira

- E ai do senhor se negar a servir a Antônio Silvino e sua tropa justiceira! Ou se me enganar ou trair, indo fazer cabuetagem nos ouvidos dos macacos!

- Quéisso, Coroné Antôin Silvino: é uma satisfação pra eu poder servir a um homem grande como o senhor! Não só ensino o camin da fazenda do Coroné Janúncio, como convido os senhores pra almoçar lá em casa... Guiné e galinha não faltam, e a mulher com as meninas sabem preparar muito bem. E ainda tem feijão macaça e o arroz da terra, e um jerimum que é uma delícia... Quer dizer, é comida simples, de sertanejo remediado...

Quem tem vários bois esperando não perde tempo com galinhas, nem era costume de Antônio Silvino almoçar em casa de desconhecidos, ainda mais quando estava indo ficar com uns alguns muito bem hospedado dias numa grande fazenda a poucos quilômetros dali.

Decerto que no caminho João Freire de Araújo lembrou-se do que lhe contaram sobre as frequentes visitas do cangaceiro à casa de seu parente mais abastado, o Véi Amaro do Poção. Eu não sei o que é que tem beradeiro, a quintessência do matuto, o matuto que é matuto até para o matuto, pra achar que só porque está conversando com alguém importante, já é amigo íntimo dele, e se mete a querer dar conselhos e fazer perguntas inconvenientes. Pois consta que um irmão de meu avô paterno, que minha mãe chama de Ti Zezim, empolgado ali com a conversa com os cangaceiros, certo dia saiu-se com essa na casa do Véi Amaro do Poção, parente nosso:

- Mas menino, me diga uma coisa: os senhores são pessoas tão boas, tão agradáveis... Pra quê querem essas armas? Vocês não precisam disso...

De repente se fez silêncio no recinto, cortado apenas pelo riso sem graça do berradeiro, aquele riso meio histérico tentando ser agradável de quem nota que falou besteira e não  tem mais como remediar: "Rêrrêrrêrrê, rêrrêrrêrrê..."

Eis que Pilão Deitado levantou-se e dirigiu-se até o berradeiro, Ti Zezim. Ao chegar na sua frente, puxou o punhal e disse:

- A gente quer essas coisinhas porque quando encontra uma pessoa que a gente não gosta, a gente faz assim, faz assim, faz assim, faz assim e faz assim.

A cada "faz assim" de Pilão Deitado, ora de pé, ele esfregava o punhal na pele do berradeiro; primeiro no pescoço, dos dois lados, depois no abdome, dos lados, na frente e atrás, e parece que em seguida desceu pro ente pernas.

De forma que meu bisavô, que era um sábio, falava apenas quando instado a isso  enquanto caminhava ao lado de Antônio Silvino e seu bando de cangaceiros. Afinal, surgiu a casa da Pedreira, e João quis voltar. O cangaceiro deu permissão, mas com uma condição quase bíblica: que ele não olhasse para trás, do contrário receberia chumbo.

A festa, dizem, foi grande. Por lá permaneceram os cangaceiros três dias, e certamente mais tempo teriam ficado se não tivesse acontecido aquilo... O Fogo!

Pilão Deitado estava fora da casa, trocando idéias com moradores e encantado com algumas nóbregas de pele morena, quando começou o tiroteio. Foi uma Patrulha Volante da Paraíba que chegou sorrateiramente, e suspeita-se de que a informação exata de onde estavam Antônio Silvino e seu bando partiu de gente de Santa Luzia. Um tio-avô meu, Antônio Tomaz, de saudosa memória, contava que o bando, ao pernoitar nos arredores da Umburana, assustou e maltratou Caetano Marinho, o qual saiu correndo desesperado, e que um cangaceiro ainda apontou o rifle pra meter bala nele, mas que Antônio Silvino não permitiu o disparo:

- Ele correu, quer viver, deixe viver...

Bom, o fato é que  a volante, como era chamada a patrulha volante da Polícia, atacou de surpresa. Era bala zuando, bala indo e bala vindo, bala pra lá e bala pra cá. Logo o famoso Pilão Deitado estava estatelado no chão, coberto de sangue, como outros cangaceiros menos importantes. E a bala zoava em busca de Antônio Silvino e voltava das janelas da casa, tanto do térreo como do primeiro andar, enquanto tinha cangaceiro dentro de casa.

E haja bala, meu Deus, e haja fogo! Vivo, nenhum cangaceiro ficaria na fazenda, era decisão do comando da volante, que, quando tudo acabou, vistoriou toda a Fazenda.

Antônio Silvino escapou, como também o grosso do bando, sabe-se lá por onde, nem para onde. Consta - ainda segundo me contava Ti Totonho, como chamávamos Antônio Tomaz - que dois soldados ainda perseguiram o chefe dos cangaceiros, mas que Silvino matou os dois com um tiro só: vinham muito juntos um atrás do outro, afoitos pra pegar o famoso cangaceiro... Antônio Silvino era um herói para muita gente da região, e ainda hoje sua memória e respeitada naquele sertão. Conheço famílias bastante respeitadas - e respeitáveis -  de Caicó que trazem no nome de filhos uma homenagem ao cangaceiro, sendo que o nome "Silvino" é sinônimo de bravura. Após ser preso vários anos depois, tirou uns anos de cadeia em Campina Grande, mas morreu de causas naturais, já bem idoso, e em liberdade.

Aconteceu também de dois jovens cangaceiros se perderem na fuga e irem dar na cidade de Santa Luzia. Capturados imediatamente pelas forças da Lei, o Coronel Aristides Guerra, todo-poderoso de então, misto de prefeito, juiz e delegado, deu a seguinte  ordem:

- É pra matar de fome e sede na cadeia!

Muita gente ia olhar os enjaulados, e os via implorando por água e comida, mas nada se podia fazer. Eis, porém que a única pessoa que poderia se contrapor ao Coronel Aristides Guerra, a sua esposa, apiedou-se dos condenados e disse que de sede eles não morriam dentro de Santa Luzia, levando uma quartinha de água para os prisioneiros, a qual deveria ficar sempre cheia. Por isso o Coronel Aristides mudou seu plano de execução, e mandou abater os cangaceiros à bala nos arredores da cidade.

Contam que um deles chorava e implorava clemência aos algozes, mas que o outro, na hora derradeira, gritou, apontando o próprio peito:

- Atire aqui! Atire que eu quero ver o buraco da bala e lamber o sangue!

E foram executados.

Dez anos depois já ninguém falava mais dos executados, tudo estaria aparentemente esquecido. Mas um homem se lembrava, e não era qualquer um: Antônio Silvino, o Lampião da Paraíba. Chegou com seu bando de repente na cidade, recolheram as armas da polícia, e logo rumaram para a casa do Coronel Aristides. As lojas da família foram saqueadas e todas as mercadorias atiradas no meio da rua. Os rolos de tecidos, eles seguravam na ponta e o jogavam para o ar, como se fosse tapetes de boas vindas.

- Toma, pobreza!

Evidentemente que alguns populares se aproveitaram e pegaram as mercadorias. Nem todas as famílias se aproveitaram do saque, mas sei de algumas que o fizeram. Minha mãe me contou que uma vizinha sua lhe disse vários anos depois que "Fulano de Tal enricou" nesse dia, carregando mercadorias para casa.

Também os instrumentos da Filarmônica Municipal, cujos dirigentes eram de família ligada a Aristides Guerra, caíram nas mãos dos cangaceiros, que fizeram festa nas ruas com eles. O maestro Ezequiel Fernandes, que como todo artista tinha amor aos instrumentos de sua arte, estava num bairro afastado da cidade, o chamado Outro Lado do Rio, e, já sabendo que o bando invadira a cidade, ao ouvir o som de seus instrumentos teve um ataque cardíaco e morreu na hora.

A casa do Coronel Aristides Guerra ficava na praça em frente à igreja matriz. Ao chegarem lá para a vingança, uma e sua filhas protestou, Aristana. Contam que Antônio Silvio a segurou pelos cabelos puxou, e disse:

- Fique quieta, viu neguinha!

Alguns historiadores ligados à família do Coronel Aristides negam estes fatos, mas ouvi-os  de pessoas confiáveis,  de várias outras famílias de Santa Luzia, e todos confirmam a história.

O que o Antônio Sivino queria era humilhar Aristides Guerra e deixá-lo vivo para que sobrevivesse à humilhação. Acredito também que  o velho cangaceiro era inteligente a ponto de saber que se matasse um homem poderoso e ligado ao poder instituído, também seria morto caso um dia fosse preso pelas forças da Lei.

Assim sendo, ele apenas deu uma grande surra no Coronel Aristides Guerra, obrigou-o a ficar de quatro, montou sobre ele como as crianças fazem brincando de cavalinho, e o obrigou a dar algumas voltas em torno da praça que fica defronte à Matriz de Santa Luzia. Isso tudo acompanhado pelo som dos instrumentos da Filarmônica Municipal, e pelos gritos dos cangaceiros.

E assim, dez anos depois, escreveu-se em Santa Luzia o último capítulo do chamado Fogo da Pedreira, fazenda que fica no município de Caicó. 






         Antônio Adriano de Medeiros
         out - 2010