sexta-feira, 17 de junho de 2011

O Diabo com ciúme do Padim Ciço


Segue pois mais um cordel de nossa mosdesta autoria. Trata do suposto encontro entre o Padre Cícero Romão Batista com o Diabo, quando aquele, após sua morte, se aproximava do portão do céu. O poema fala por si mesmo, sendo talvez apenas necessário dizer que o Padim Ciço sofreu uma punição em vida: foi proibido de celebrar missa por dez anos, sendo obrigado a permanecer em Roma por longo tempo; mas depois aquele sanbto sertanejo foi perdoado pela Alta Cúria da Igreja. Há quem diga que suspeitavam de que o padre praticava falsos milagres, quando não que fosse mesmo um feiticeiro; é disso que o Diabo se aproveita no poema.
absaam

A DISCUSSÃO DO PADRE CÍCERO COM O DIABO

Convido o nobre leitor
a um debate especial:
dois seres muito afamados
do tal cordel ancestral
vão dedilhar a viola
numa noite sem igual.

Lá'stá o Mestre do Mal,
também chamado Tinhoso,
rei das treva e da mandinga,
o Diabo - bicho horroroso,
mas que mostra para o canto
ter um talento espantoso. -

Do outro lado, o Bondoso,
o meu padim Padre Ciço
- que já dormiu em palácio
e almoçou em cortiço -
cuja fé era tão grande
que parecia feitiço.

Mas acalme o rebuliço
para ouvir esse cordel,
pois que o debate já houve
lhe diz o vate fiel:
deu-se na década de trinta,
nos portões do velho Céu.

Emissário Gabriel
desceu à terra outro dia.
Não que viesse atrás
de outra Virgem Maria:
é que o anjo admira
quem sabe fazer poesia.

Estava na sacristia
de uma igreja no sertão
quando vi ao meu lado
chegar aquele clarão.
Nem bem chegou, foi dizendo:
" - Eu vim lhe falar do Cão.

De Lúcifer fui irmão,
rei dos anjos traiçoeiros.
Me preocupa você
– um leal dos de Medeiros -
fazer versos para o Cão,
sujo rei dos trambiqueiros.

Mas sei que são verdadeiros
todos relatos que faz,
por isso vou lhe contar
que houve, tempos atrás,
debate entre Padre Cícero
e os anjos infernais".

Me contou que Satanás,
quando meu padim morreu,
montou tocaia no céu
com bando de diabos seu,
e ameaçou o padre
quando ele apareceu.

São Pedro quase correu
ao ver a tropa do Cão,
mas outros santos chegaram
bem naquela ocasião.
São Pedro criou coragem
e espiou do portão.

Quando o santo do sertão
acabava de chegar,
estando o portão aberto
- ele já quase a entrar –
ouviu-se o Diabo dizer:
- "Safado, vim te buscar!"

E logo salta de lá
grande magote de Cão
qual macacos a pular,
repetindo palavrão:
assobiavam, zombavam:
- "Catimbozeiro!" "Ladrão!".

Perturbaram o coração
do santo padre vigário
as palavras que ouviu:
- "Cai a máscara, seu otário!
Você vai é pro inferno,
que é lugar de salafrário!"

Um sujeitinho ordinário
com cara de delegado,
autoritário, falante,
afoito e mal educado,
se chegando desse jeito
deixou o padre zangado:

- "Que mais queres, desgraçado?
Já me amolaste demais:
a suspensão, o exílio,
e outros sofrimentos mais...
Tu te infiltras na Igreja:
bem sei quem és, Satanás!"

- "A corte dos cardeais
ao Diabo dá acolhida?
Por que não afirmou isso
lá em baixo, ainda em vida?
Vi dizer que em Roma teve
o senhor boa acolhida..."

- "Minha alma enfurecida
não deixaria o sertão
pra viver na alta corte
- túmulo e altar do cristão -
se não fora antes forçado
por velho clero ladrão!"

- "Ciço, você inda não
entrou na corte celeste...
O Diabo veio buscar
o padre cabra da peste,
amigo de cangaceiro
e de ladrão no nordeste!"

- "Um só diabo que preste
não pode existir no mundo.
Ordeno nesse momento
que se cale, vagabundo:
posso quebrar sua cara
se persistir, Diabo imundo!'

- "Ai, que assim me confundo:
Não és um pastor da paz?
Não dizem que a intolerância
é coisa de Satanás?
Assim acabo voltando
aos jardins celestiais...

Pois argumentos demais
eu tenho nesse momento
para levá-lo comigo
ao inferno em julgamento:
provaram que em heresia
o senhor tinha talento..."

- "Satã, eu muito lamento
tod’esse seu preconceito;
se fosse um padre europeu
e agisse do mesmo jeito,
de mim morrias de medo:
era um santo de respeito."

- "Mas olhem só o sujeito!
Viram sua petulância?
Um rico senhor feudal
que explorou a ignorância,
ataca a Corte de Roma
com despeito e arrogância."

-"Simples fui desde a infância,
e beato me tornei;
era um padre sertanejo,
e um rico só virei
depois de morar em Roma,
onde dez anos fiquei."

- "Inocente, já notei,
sempre foi, lá no sertão...
Pra certos crimes políticos
ele não tinha visão,
mas logo se revelou
amigo de Lampião."

- "Foi chamado o Capitão
que ali chegou em paz.
O poder da santa fé
converteu os animais.
Houve desentendimentos,
e eles voltaram atrás".

- "Os seus dotes, ademais,
bem armaram os cangaceiros,
que então se transformaram
em modernos bandoleiros:
você deve ser julgado
por seus crimes carniceiros."

- "Bem sabem os brasileiros
que atendi ao chamado
dos militares da época;
o Capitão, bem armado,
quis voltar ao cangaço:
tava mais acostumado..."

- "Ciço, não seja malvado
e chegado à traição:
venha para o nosso lado,
você pertence ao Cão.
Seu quarto tá arrumado,
tem até televisão!"

- "Porque nasci no sertão
de xique-xique e favela,
te arrenego, desgraçado
- és ministro da mazela. -
Vou rezar Ave Maria
com os anjos na capela".

- "Mas da boca da donzela,
quando o sangue respingou,
foi a magia do Diabo
quem ali te ajudou:
esqueceu de nosso trato,
ô padreco traidor?"

- "Eu vou pra Nosso Senhor,
que está aberto o portão.
Quero encontrar-me primeiro,
para um aperto de mão,
com o beato Conselheiro
- o nosso santo primeiro -
o Bom Jesus do sertão."

Pois findou-se a discussão
com o Diabo derrotado:
saiu fazendo careta
com feio palavreado.
Já Ciço - diz Gabriel -
desde então vive no céu,
onde é muito respeitado.


Antônio Adriano de Medeiros

domingo, 5 de junho de 2011

de como o cangaceiro Lampião virou capitão do exército



Aí está mais um cordel de minha modesta lavra. Sempre tive muita curiosidade em saber como foi que Lampião veio a ser Capitão do Exército Brasileiro. Então um dia fui fazer uma rápida pesquisa, e descobri como foi que, em janeiro de 1925, Lampião chegou a Juazeiro do Norte para ser condecorado Capitão do Exército Brasileiro. Tudo fora tramado por Floro Bartolomeu, médico militar, político aliado ao padre Cícero: naquele tempo, a Coluna Prestes andava pelo sertão, degolando padres e divulgando o comunismo, e algo precisava ser feito, e assim Floro, que liderava no Ceará o Batalhão Patriótico de combate á Coluna, sabendo de como os cangaceiros conheciam a caatinga e da fé que Lampião tinha em Padim Ciço, quus trazer o cangaço para o lado do Bem. Deu que poucos dias antes de Lampião chegar a Juazeiro do Norte, Floro adoeceu do coração e precisou ir para o Rio de Janeiro - acabou morrendo - e coube aom padre toda a fama no episódio, pois recebeu sozinho o bando, e cumpriu o combinado, inclusive com as patentes de tenente a Antonio Fereira e Sabino, exigências do capitão Virgulino. Quanto a Maria Bonita ter ido ao Juazeiro também é licença poética: aqueles cangaceiros que perderam a cabeça por amor só se conheceriam na década de 30.

absaam


CANGACEIRO VIROU CAPITÃO QUANDO O DIABO ANDOU NO MUNDO


Certo dia Padim Ciço,
santo vivo no sertão,
foi, mandado pela Forças
defiensora da Nação
qual um anjo mensageiro,
contatar o cangaceiro
chamado de Lampião.

Patente de Capitão
e arma atualizada
eram os trunfos do vigário
para a difícil empreitada:
botar os cabras da peste
contra a Coluna Prestes
numa luta inusitada.

Duas gangues da pesada
andavam pelo sertão
naqueles tempos difíceis
– Parece até que o Cão
havia descido à Terra
insuflando grandes guerras
e o fim do mundo cristão.

Ou que outra explicação
teria uma alma crente
em vendo louvar-se a guerra
do leste ao ocidente,
qual se levar-se à matança
homem, mulher e criança
fosse uma coisa decente?

Lampião ficou contente
quando a notícia ouviu
e logo com todo o bando
pro Juazeiro partiu
– Só um santo verdadeiro
transformava um cangaceiro
em um cordeiro servil!

Mas quem tramou tal ardil
da grande transformação,
não foi, distinto leitor,
Padre Cícero Romão,
mas um aliado seu
– Foi Floro Bartolomeu,
sábio doutor da Nação.

Comandando um batalhão
o doutor e deputado
sabendo que Lampião
era muito devotado
à fé no santo Padim,
pensou: – “Esse cabra ruim
vai ser útil pra danado!”

Ao receber o recado
o bandoleiro, ciente
dos sentimentos humanos
entre o bando delinqüente
quis que mais dois cangaceiros
fossem, como bons guerreiros,
promovidos a Tenente.

Floro achou inteligente
o que pediu Lampião
e mandou um mensageiro
dizendo: – “Meu caro irmão,
eu garanto as três patentes:
pode escolher seus tenentes,
meu distinto Capitão!”

Mas eis que do coração
o Floro Bartolomeu
– Ó patriótica emoção! –
gravemente adoeceu,
e quando ao Juazeiro
adentraram os cangaceiros
tal chegada ele perdeu.

O padre quase não creu
quando lhe foi avisado
que na sua Juazeiro
o bando estava alojado,
e que o grande Lampião
vinha beijar sua mão
e deixar todo o pecado...

De ficar emocionado
o padre tinha razão:
sendo visitante o Prestes
e não o bom Lampião,
sua cabeça rolava
e o santo padre ficava
estatelado no chão...

O Padim Ciço Romão,
o tão famoso vigário,
quando abraçou Lampião
lhe ofertou um rosário,
dizendo: – “Deixe o Pecado!
Venha para o nosso lado
ser de Jesus operário.”

Lampião não era otário
e com tudo concordou.
Então a patente, as armas
e uma farda ganhou;
e de Capitão trajado,
com a família de lado,
para uma foto posou.

Todo o bando se trajou
com a farda oficial
sentindo alegria cívica
e orgulho nacional;
Tonho Firmino e Sabino
pulavam como meninos
– Tenentes eram, afinal!

Para combater o Mal
– Comunismo traiçoeiro! –
o Exército procurou
um grande herói cangaceiro;
abençoando o serviço
vinha o Padim Pade Ciço
– Santo, Padre e Feiticeiro!

Quando o santo cangaceiro
encontrasse Carlos Prestes
uma surra capital
daria no falso mestre,
porque o sertão, leitor,
não admira o doutor,
mas sim o cabra da peste!

Pena que tal faroeste
só existe no cordel;
naquele dia o sertão
botava mais um no céu,
e no inferno outro cão:
“Quando o bom São Lampião
mandou Marx pro beleléu!”

Tal qual o Anjo Infiel
caiu por ser pessimista
eu vi descer pros infernos
o diabo comunista
no lombo da Besta Fera,
e um novo santo que era
São Lampião - exorcista!

Em um cordel anarquista
de profundeza abissal
eu vi a Grande Batalha
opondo o Bem ao Mal
no sertão de Vitalino
com o bom São Virgulino
matando o Diabo a pau!

Do céu se ouve um coral
de anjos – Bendito dia! –
O Sol suspende o calor,
xique-xique acaricia,
e beata não se irrita
quando dizem que a Bonita
é pura como Maria...

Mas isso é só poesia,
a história foi diferente,
pois Lampião abriu mão
de ser nosso Presidente:
nem bem deixou Juazeiro
trocou o santo guerreiro
pelo diabo delinqüente.

Amedrontou muita gente
trajado de oficial,
cobra de duas cabeças
voltadas só para o Mal;
mas o Tempo tem das suas,
acabou perdendo as duas
certa manhã infernal.

E dizem, leitor leal,
estar Lampe consciente
de que em tendo derrotado
a Coluna delinqüente
nem bem se passava um mês
já era a bola da vez
do Estado intransigente.

Sei que perdeu a patente:
pra história oficial
poderia ser herói,
preferiu ser homem mau.
E não foi condecorado,
mas muito bem degolado
como lição de moral.

Vou pôr o ponto final
neste cordel vagabundo
e saio muito feliz
desse tempo tão imundo
que pariu stalinismo,
o cangaço e o nazismo
– Quando o Diabo andou no mundo!



Antônio Adriano de Medeiros