quinta-feira, 25 de outubro de 2012

de boca e flor, viola amor e espuma de onda




"Será que da festa universal da morte surgirá um dia o amor?"

                              
   Thomas Mann, A Montanha Mágica


- Bate, bate, bate coração,
dentro desse velho peito:
você já tá acostumado
a não ser amado, a não ter direito..."

                    Cecéu



Vamos mais com as coisas do coração, que mais belas, mais amenas, e despertam sentimentos mais facilmemte compartilháveis e imensuravelmente gratificantes que aqueles da doença, morte, ossos e apodrecer. Só que hoje, mesmo sem ele tomar a palavra, não posso deixar de falar de mieloma, mas são só minhas as reflexões, viu?

Qual subterrâneo esgoto apodrecido sinistro e fatal que de repente tivesse recebido uma alta dose de amoníaco, sabão, água sanitária, desinfetantes e mesmo um concentrado químico de luz do sol, assim também lá nas profundezas rochosas dos serrotes de meus ossos sertanejos um banho de vida começou a varrer ontem um aglomerado de impurezas e miasmas pestilentos e mortais. Três gentis enfermeiras se revezavam com educação nos cuidados, havendo ainda do sábio esculápio a preocupação com a devida hidratação, para que as indesejadas impurezas fluíssem com a necessária presteza pelos canais de excreção renal, alguns já afetados; malgrado invisíveis em sua covardia de assassinos microscópios, os expurgados davam a um certo líquido do meu corpo uma coloração mais amarelada, e um odor organico forte demais, semelhante ao "cheiro de remédio". Ainda hoje e amnhã retornarei para uma hidratação segura nos dias de bombardeio inicial das cavernas dos fanáticos por sua teologia da destruição. Grande preocupação é com a ocorrência de febre, indicadora de infecção; agora há pouco ao começar a escrever, a mão direita escorregou automaticamente para uma gaveta onde há um macinho, tão bonitinho apesar da carinha do Zé Serra, de Parlíament, e sacou um cigarro. Um vento frio e úmido me lembrou de fechar  a porta da varanda - confesso que ainda procurei ver se o Corvo estava lá: não estava, nem vi sinais da passagem - e guardei o cigarro, não sem antes dar uma boa cheirada nos demais cigarros do maço, que o fumo do Parlíament é pré-torrado e talvez seu cheiro apagado seja melhor e mais inebriante até do que aceso.


Isso tudo, mormente a descrição da limpeza dos esgotos rochosos, talvez não seja algo muito bonito de se dizer de si mesmo; lembro sempre de um amigo que costuma botar mulheres imaturas oferecidas e indesejáveis pra correr com um método infalível: quando acossado por quem não deseja, começa a falar de antiga micose de que padece, e que tal coisa crônica vai se agravando a ponto de já ter-se tornado uma uretrite e ... já vi três se levantarem ao mesmo tempo quando chega a tal desfecho, nessas festinhas de jovens modernos, univeritários, intelectoliberais.


Todo o parágrafo final de A Montanha Mágica é belíssimo. As Sombras, narradoras do superbo romance, ao verem o heróico "filho enfermiço da vida" que ficara sete anos internado em um sanatório para tuberculosos por ter ido visitar um primo doente nos alpes suíços e apresentado sinais que bem poderiam retratar apenas a dispnéia das alturas, é convencido a ficar um tempo para investigação - e só desce sete anos depois, para lutar na primeira grande guerra - ele se encantara com uma gatinha quente russa, com o iluminista Satã das Luzes, e com um  naftalínico jesuíta medieval da paixão das trevas - pois bem, as sombras, ao descreverem que um obus, uma desgraçada bomba voadora, atingira a cabeça do herói e que ele caíra semi-inconsciente na lama sob poeria e chamas, se recusam a descrever o que se segue a ele, e com a nobreza de Atena olhos glaucos quando disposta a auxiliar Ulisses, passam a se precoupar com o fato de, se depois da festa ancestral da morte, doença, desgraça, fome, miséria, violência e dor que é a Guerra - ressurgiria um dia o amor.


Isso é poesia em prosa da mais pura. Thomas Mann é inigualável nesse requinte.


Pois acredita que uma das preocupações recorrentes de quem enfrenta também a guerra contra uma doença grave é se em sua vida renascerá ainda um único exemplar de rosamor?

É então que entra o forró de Cecéu, que Elba canta, e ouvi hoje na voz da saudosa Marinês.


O poema Boca de Flor teve inspiração numa pessoa de verdade;  filha de uma psicóloga amiga minha, queria se médica a todo custo, e aí por seus  17 anos, um pouco menos, a gente começou a ir sempre, umas vezes por semans, duas, três,  sempre a bons restaurantes de Natal, éramos amigos mesmo, e como que prometidos, mas tinha um problema - a ninfa era demasiadamente Britomártis - ninfa cretense perseguida, desejada, sonhada, buscada em correrias em bosques, montanhas e praias, por ninguém menos que o Rei Minos, taradão, o pai do Minotauro, e, numa dessas perseguições, a ninfa - ó terrível e radical desespero diante do inexorável Mal - prestes a ser alcançada por aquele que a queria tão profundamente a causar pavor, se atirou no mar... Há quem diga que teria virado espuma de onda, mas ainda teme o sexo, sequer suportando falar de Afrodite Vênus quando, por exemplo, Safo a encontra e se dispõe a coneversar com as intenções mais puras...

A minha amiga, quase revelava agora um apelido perigoso, sempre reagia não a coices e pontapés, mas a protestos e reclames e enredos à mamãe, ou outros protetores igualmente fortes (mamãe é pessoa muito boa e delicada, sendo do mundo da arte, também); eu sempre levava no mínimo uma esculhambação toda noite, e teve mesmo o dia em que, tendo bebido Casillero del Diablo - pode haver outro responsável? - ao mudar de terceira pra quarta a mão escorregou e bateu próximo ao joelho da ninfa, sendo tal gesto interpretado por seus olhos e mente vigilantes como algo possivelmente com intenções sexuais (imagine!), e nesse dia os protestos cujo sotaque eu gostava de ouvir, por sabê-los tão sinceros, os gritos foram acompanhados pos azunhadas cruentas, o que me casuou  certo desagrado.


Outro dia a bela precisou de imprimir um texto, a impressora dele tava com defeito, e ela pediu pra ir lá em casa resolver logo o problema. Mas como diz Eclesiastes, há o tempo de poupar e o tempo de deitar fora, e quem não estava inspirado naquela tarde era eu, sei lá, tinha faca ali tinha tudo... Precisou da intervenção de um fuzileiro naval de nossas competentes forças armadas o difícil, raro alvo. Ela havia aceitado ser enfermeira, por sugestão minha, vez que seguidamente levava pau na medicina... Outro dia me reencontrou, bela, educada, cheia de vida, e me pediu pra lembrar do nome da ninfa... Riu pra danado.


O poema
Boca de Flor tem uma verdade muito forte, do medo e desejo e necessidade de amar, coisas que às vezes os jovens brutos nem se tocam, querendo não serem imaturos nem brutos, mas assim a vida prossegue; exclui da dedicatória as iniciais de Britomártis. Às vezes talvez o ocnrário e humildade não é orgulho em excesso, pode ser insegurança também.

Afe, Maria: essa introdução tá longa demais, parece inté A Montanha Mágica. Segue uma
Lição de Jardinagem, agora tão necessária, que o blog já tem noutra parte também, e depois, pra coisa pegar fogo, o Soneto Viola a Dor coisa de cordelista que se mete a escrevr sonetos... Vá se enxergar, violeiro! Se bem que tem certas coisas que dependendo da idade e da condição social, e do grau de intimidade de outrem envolvida, que é melhor faze rno simbólico que no concreto.

Enfim, Espuma de Onda, de Cesare Pavese, que narra o belíssimo suposto encontro e diálogo entre Britomártins  (etimologicamente doce virgem), a ninfa cretense que se jogou no mar com medo dos homens, e Safo, a Poeta, que se jogou no mar por estar cansada de mulheres e homens; uma raridade, foi presente do disitnto Oswldo Ribeiro Filho, edição especial, sempre releio Diálogos com Leucó. Notar certas ironias bastante eróticas, certas censuras veladas, tanto da ninfa para a Poeta, como desta para a outra; di Britomártis - "Você não quer tomar espuma de onda, você preferia mesmo era tomar outra coisa..." 

Também há a felicidade do fato de elas terem virado espuma de onda, e de Afrodite Vênus ter surgido da espuma de onda; Britomártis morre de medo até de falar em Vênus, e quando  Safo se insinua - bem burrinha essa Safo, hein? - sorrateiramente, a florzinha estremece toda e pede pra mudar de assunto - "Não fale nela, menina..."


absaam



BOCA DE FLOR


Quando cruzei com o olhar da tua boca
eu tive medo.
Me senti presa. Vi
o quanto era pequeno, passageiro,
mero repasto
de algo infinitamente poderoso e belo.

Esfinge: és um fingir
que me sagra e me devora.

- A tua boca é um pedaço do Tempo,
flor da Eternidade,
janela esteticamente ornada
ao lado da porta do Caos.



                 Antônio Adriano de Medeiros




LIÇÃO DE JARDINAGEM


          "a rosa vermelha é do bem querer"
                              Ronnie Von


Eu sei que guardas, amor,
na floresta pantanosa,
a tua mais rara flor,
a rosa úmida e cheirosa;
e que a ofertas em louvor
à ocasião preciosa
em que o poder criador
da natureza viçosa
nos impregna o corpo inteiro
do mais puro, mais forte e mais verdadeiro
senrimento que na vida nos é dado.
E eu, que sou um jardineiro dedicado,
sempre antes de colher-te a flor tão rara,
bebo o seu néctar, lambuzando a minha cara.


                       Antônio Adriano de Medeiros





SONETO: VIOLA À DOR


                 “pra quê rimar amor e dor?”
                       

Primeiro a sedução: o doce falar, a rima,
os passos na suave contra-dança...
A melodia pela grande obra prima,
e nesse ritmo é que o poema avança.

Não convém que seja hostil à balança,
tal qual o corpo de uma magricela fina.
Idéia apenas sugerida, uma nuança;
entrando aos poucos: primeiro pôr vaselina.

Corpo perfeito, fina taça, um sedutor
aparato de beleza magnética;
altar sublime de uma divindade estética.

Mas no soneto vou rimar amor com dor!
E é com um tapa violento que o acabo:
rasgo a moral quando adentro por seu rabo.


                Antônio Adriano de Medeiros







                                         DIÁLOGOS COM LEUCÓ
                                                              de Cesare Pavese, tradução Nilson Moulin:

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ESPUMA DE ONDA

De Britomártis, ninfa cretense e minóica, nos fala Calímaco. Que Safo fosse lésbica em Lesbos é um fato desagradável, mas consideramos ainda mais triste a sua insatisfação com a vida, razão que a induziu a jogar-se no mar, no mar da Grécia. Este mar está cheio de ilhas, e na mais oriental de todas, Chipre, desceu Afrodite, nascida das ondas. Mar que viu muitos amores e grandes aventuras. É necessário pronunciar os nomes de Ariadne, Fedra, Andrômaca, Hele, Cila, Io, Cassandra, Medéia? Todas o atravessaram e mais de uma ali ficou. É de se esperar que esteja todo impregnado de esperma e lágrimas.

(Falam Safo - S -, e Britomártis - B -)

S
Isto aqui é monótono, Britomártis. O mar é monótono. Você que está aqui há mais tempo, não se aborrece?

B
Você preferia ser imortal, sei disso. Não lhe basta tornar-se um pouco de onda que faz espuma, não lhe basta. Contudo, busca a morte, esta morte. Por que você a procurou?
       
S
Não imaginava que fosse assim. Acreditava que tudo terminasse com o último salto. Que o desejo, a inquietude, o tumulto seriam apagados. O mar engole, o mar aniquila, dizia a mim mesma.

B
Tudo morre no mar e revive, agora você sabe.

S
E você, por que procurou o mar, Britomártis - você que era ninfa?

B
O mar, não o procurei. Eu vivia nas montanhas. E corria sob a lua, perseguida por não sei qual mortal. Você, Safo, não conhece nossos bosques, altíssimos, nos despenhadeiros à beira-mar. Saltei para salvar-me.

S
E por que, afinal, salvar-se?

B
Para escapar dele, para ser eu mesma, Safo.

S
Devia? Aquele mortal lhe desagradava tanto assim?

B
Não sei, não o tinha visto. Só sabia que devia fugir.

S
Isto é possível? Deixar os dias, as montanhas, os prados - deixar a terra e tornar-se espuma de onda -, tudo porque devia? "Devia" o quê? Não tinha desejos, não era feita também disso?

B
Não a entendo, bela Safo. Os desejos e a inquietude fizeram de você quem é; e depois você se lamenta de que eu tenha fugido.

S
Você não era mortal e sabia que de nada se foge.

B
Somos feitas disso. Nossa vida é folha e tronco, bolha d'agua, espuma de onda. Brincamos de aflorar as coisas, não fugimos. Mudamos. Este é o nosso desejo e destino. Nosso único terror é que um homem nos possua, nos detenha. Aí sim é que seria o fim. Você conhece Calipso?

S
Ouvi falar dela.

B
Calipso deixou-se prender por um homem. E nada mais lhe adiantou. Durante anos e anos não mais saiu de sua gruta. Vieram todas: Leucótea, Calianira, Cimodoce, Oritia, veio Anfitrite e falaram com ela, levaram-na para fora, salvaram-na. Mas foram necessários anos, e que aquele homem fosse embora.

S
Entendo Calipso. Mas não entendo que tenha escutado vocês. O que é um desejo que cede?

B
Ó Safo, onda mortal, não vai saber nunca o que é sorrir?

S
Ainda viva, sabia. E busquei a morte.

B
Ó, Safo, sorrir não é isso. Sorrir é viver feito uma onda ou uma folha, aceitando a sorte. É morrer sob uma forma e renascer em outra. É aceitar, aceitar a si própria e ao destino.

S
Então você o aceitou?

B
Fugi, Safo. Para nós é mais fácil.

S
Também eu, Britomártis, antigamente sabia fugir. E minha fuga era observar as coisas e o tumulto e fazer disso um canto, uma palavra. Mas o destino é bem outro.

B
Por quê, Safo? O destino é alegria, e quando você cantava o canto, era feliz.

S
Jamais fui feliz, Britomártis. O desejo não é canto. O desejo esmaga e queima, como a serpente, como o vento.

B
Você jamais conheceu mulheres mortais que vivessem em paz no desejo e no tumulto?

S
Nenhuma... Talvez sim... Não as mortais como Safo. Você ainda era a ninfa dos montes, eu ainda não tinha nascido. Uma mulher varou estes mares, uma mortal, que viveu sempre no tumulto - talvez em paz. Uma mulher que matou, destruiu, cegou como uma deusa - sempre igual a si mesma. Talvez nem tenha chegado a sorrir. Era bonita, não era tonta e ao redor dela todos morriam e combatiam. Britomártis, combatiam e morriam pedindo só que o seu nome fosse por um instante ligado ao deles, desse o nome à vida e à morte de todos. E sorriam para ela... Você a conhece - Helena de Tíndaro, a filha de Leda.

B
E essa foi feliz?

S
Não fugiu, isto é certo. Bastava a si mesma. Não se perguntou qual era seu destino. Quem quis e foi suficientemente forte tomou-a consigo. Aos dez anos, seguiu um herói, tiraram-na dele, casaram-na com outro, também esse a perdeu, foi disputada por muitos além-mar, retomou-a o segundo, viveu em paz com ele, foi sepultada, e no Hades conheceu outros mais. Não mentiu pra nenhum deles, não sorriu pra
ninguém. Quem sabe foi feliz.

B
E você a inveja?

S
Não invejo ninguém. Eu quis morrer. Ser uma outra não me basta. Se não posso ser Safo, prefiro ser nada.

B
Portanto aceita o destino?

S
Não o aceito. Eu sou o destino. Ninguém o aceita.

B
Exceto nós que sabemos sorrir.

S
Grande força. Está em nosso destino. Mas o que significa?

B
Significa aceitar-se e aceitar.

S
E o que quer dizer? Pode-se aceitar que uma força roube você, que você se torne desejo, desejo trêmulo debatendo-se ao redor de um corpo de companheiro ou de companheira, como a espuma entre os abrolhos? E esse corpo rechaça e quebranta você, e você torna a recair e gostaria de abraçar o rochedo, aceitá-lo. Outras vezes você própria é o rochedo, e a espuma - o tumulto - se debate a seus pés. Ninguém mais consegue ter paz. É possível aceitar isso?

B
É preciso aceitá-lo. Você quis fugir e é espuma você também.

S
Mas você sente esse tédio, essa inquietude marinha? Aqui tudo esmaga e ferve sem parar. Inclusive o que está morto se debate inquieto.

B
Você devia conhecer o mar. Você também vem de uma ilha...

S
Ó, Britomártis, desde criança me aterrorizava. Esta vida incessante é monótona e triste. Não há palavra que traduza o tédio que nela existe.

B
Houve tempo, na minha ilha, em que via chegarem e partirem os imortais. Havia mulheres como você, mulheres para o amor, Safo. Nunca me pareceram tristes nem cansadas.

S
Eu sei, Britomártis. Mas você as seguiu pelo caminho delas? Houve aquela que em terra estrangeira se enforcou sozinha numa trave da casa.E outra que acordou de manhã sobre um rochedo, abandonada. E depois outras, tantas outras, de todas as ilhas, de todas as terras, que desceram ao mar e houve que fosse escravizada,dilacerada, quem matasse os próprios filhos, quem penasse dia e noite, e também quem nunca mais tocou terra firme e se tornou uma coisa, uma fera do mar.

B
Mas a filha de Tíndaro, você disse, saiu ilesa.

S
Semeando incêndios e massacres. Não sorriu para ninguém. Não mentiu para ninguém. Ah, foi digna do mar. Britomártis, lembre-se de quem nasceu aqui em cima...

B
Que quer dizer?

S
Existe ainda uma ilha que você não viu. Quando surge a manhã, é a primeira do sol...

B
Ó, Safo.

S
Retirou-se da espuma aquela que não tem nome, a inquieta angustiada, que sorri ainda.

B
Mas ela não sofre. É uma grande deusa.

S
E tudo aquilo que se esmaga e se debate no mar é sua substância e respiração. Você e a viu, Britomártis?

B
Ó, Safo, não diga isso. Sou apenas uma ninfa menor.

S
Veja você, de qualquer modo...

B
Diante dela todas fugimos. Não fale nela, menina.







Cesare Pavese,
Diálogos com Leucó.
Tradução de Nilson Moulin.

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