segunda-feira, 14 de maio de 2012

Antônio Cão celebra um casamento no Inferno



Um de meus poucos heterônimos, ou pseudônimos,  é Antônio Cão, "psiquiatra heterodoxo", que eu não sei bem dizer o quê significa, apenas que o Doutor Antônio Cão tem coragem de dizer e fazer certas coisas que os psiquiatras reais, digo, da realidade, são impedidos pela Ética e pela Tradição, como por exemplo revelar segredos da vida de seus pacientes e descer aos Infernos para celebrar o casamento de duas almas pecadoras, atendendo a um convite do próprio Diabo, transmitido por um emissário infernal. Não que eu já não tenha celebrado um casamento matuto num hospital psiquiátrico, de batina e com linguagem litúrgica, e que a mãe da primeira noiva retirou a filha do hospital sob termo de responsabilidade ao saber que a mesma "ia se casar com um louco" (sic), como também aconteceu com a referida Zabé do rimance a seguir.

O cangaceiro Pilão Deitado na verdade era "um cabra de Lampião" porque era um cangaceiro, mas sim do bando de Antônio Silvino, e morreu mesmo num casamento, celebrado na Fazenda Pedreira, no município de Caicó - RN, em 1901, no episódio que ficou conhecido como O Fogo da Pedreira, e que se encontra narrado numa da páginas deste blogue, a saber na página Causos e Causos, á qual se vai clicando aí em cima no nome da referida página. Já Zabé, a noiva suicida, é fictícia, e sua história pertence ao Reino da Poesia, e é contada no poema.

Há, modestamenete, impressionante riqueza de imagens poéticas no inferno poético descrito no poema a seguir, como a celebração do amor mesmo em hostes malditas, que o amor é universal, a emoção de Lúcifer ao ver um médico descer à seu palácio da amargura e do castigo esternos para atender a um convite seu (se bem que determinado por uma súplica da noiva, e ratificada por feiticieiros respeitados, como se verá no bojo do poema), até a própria liturgia do matrimônio em si, mui bela, pelo menos a nosso modo de ver.

Notar que talvez haja um trocadilho em substituir "emissário" por "´missário", se bem que o fiz - a meu ver, pelo menos - por razões da Métrica, se bem que posso mesmo ter sido usado por Forças Obscuras... É que o Doutor Anônio Cão descende de Diogo Cão, primeiro navegador a por os pés em hostes americanas ao sul do Equador, tendo ele inclusive deixado um Marco na Praia de Touros, no litoral do Rio Grande do Norte, ali pertinho de Natal, e quando encarno Antônio Cão também posso estar sendo levado por estranhos ventos para a Terra do Pecado, e temo ser o Brasil o representante na Terra de um certo lugar... Bom, recomenda-se, mais do que nunca, cautela ao leitor, mormente deve ele levar em consideração a aviso da última estrofe do presente rimance de cordel.


absaam




UM CASAMENTO NO INFERNO


Eu já desci ao Inferno
a convite do Capeta
que me mandou um 'missário
conhecido por Zambeta
que de chifres tinha dez,
às vezes tinha dois pés,
noutras vez era perneta.

Que me contou que Capeta
- o falso, o mal, o astuto -
andou sabendo que existo,
e das coisas com que luto;
e que eu fora intimado
pois ia ser celebrado
um casamento matuto.

- Meu bom leitor, eu labuto
com preciosas jazidas:
são as almas dos lunáticos
- naus que se acham perdidas;
prisioneiras do Lamento
que, às vezes, um tormento
as transforma em suicidas.

Me fora das mais queridas
a pessoa de Zabé:
da raça das deprimidas
que perderam toda a fé;
seres de estranha calma
que às vezes prometem a alma
a um tal de Lucifé...

Aconteceu de Zabé
matar-se num Carnaval,
fantasiada de noiva
com requinte especial:
escondido no corpete
ela trazia um bilhete:
- "Fui prometida ao Mal!"

Saía do hospital
e vi 'missário do Cão,
e quando fui inteirado
de toda a situação,
eu perguntei, assustado:
- "Mas me diga, Cão danado:
e quem é o noivo, então?"

- "Um cabra de Lampião
por nome Pilão Deitado
que foi morto no sertão
numa festa de noivado,
fez que n'é da conta minha...
Só sei que a tal doidinha
está feliz um bocado..."

- Meu bom leitor, fui tomado
por uma forte emoção:
agora conto ao prezado
de uma certa ocasião...
- Uma coisa muito triste,
pois isto também existe -
numa Festa de São João...

Dispara meu coração
ao fazer tal relato;
eu sinto forte emoção
quando me lembro do fato:
coisas que nunca se esquecem...
Certas coisas que acontecem
com os seres a quem trato.

Às vezes algum ingrato
põe um trabalho a perder
e destrói a alegria
quand'estava a florescer...
Pois existe gente ruim
que se entra num jardim
não deixa uma flor crescer.

Ela pensava em morrer,
por isso fora internada.
Mas ao saber que a Quadrilha
seria realizada
com casamento matuto,
Zabé despiu-se do luto:
queria ser a casada!

Mas a mãe fora informada
daquele tal casamento
- uma simples brincadeira
lá na Casa do Tormento -
e, se dizendo ser nobre,
ao ver um noivo tão pobre
não deu seu consentimento.

E causou constrangimento
tremendo no manicômio,
humilhando alguns doentes,
me chamando "Doid'Antônio";
que, diante da Quadrilha,
preferia ver a filha
ser entregue ao Demônio...

O noivo, o triste Perônio,
ficou muito chateado;
porém, no correr dos dias
de novo o vi animado,
pois a noiva Bastiana
mostrou-se muito bacana,
e foi bonito o noivado!

E quando fui informado
da ordem de Lucifé
eu entendi o que houve
com a infeliz Zabé:
o seu triste coração
nos braços do tal Pilão
recuperou sua fé.

- "Vá dizer a Lucifé
que eu faço o casamento!"
- "Então vamo logo agora,
Seu Dotô, neste momento..."
- "É bom o Diabo esperar,
pois eu preciso ir buscar
os devidos paramentos".

- "Seu Dotô, muitos nojentos
que foram padres na terra
vão direto pro Inferno
quando a vida se encerra:
comeram tanta menina
que no Inferno batina
dá mais que chuchu na serra!"

- "Às vezes a gente erra
ao fazer um prognóstico
por desconhecer nuances
do vero diagnóstico...
Mas escute bem, Zambeta:
serei padre do Capeta,
mas saiba: sou agnóstico!"

- Leitor, não posso ser lógico
onde há feitiçaria:
Zambeta deu-me uma hóstia
e, quando eu engoli-a,
vi labaredas de fogo;
uns bebendo, outros no jogo,
gritos e pancadaria.

Por volta do meio-dia,
era hora do almoço.
Vi vampiresa mirando
o meu distinto pescoço,
e um diabo-general
que comia um Cardeal
me oferecendo um osso.

Zambeta disse: - "Tal moço
veio a convite do Rei".
O general, animado,
logo respondeu: - "Já sei!
É para o tal casamento
que causa contentamento
à nossa mais nobre grei?"

De Lucifé perguntei
se alguém dava nutiça;
o general vomitou
um pedaço de carniça
da língua do Cardeal,
e este disse, afinal:
- "Ele foi pra santa missa..."

- "Se tem quem celebre missa,
o que foi que vim fazer?"
- "O problema é que a noiva,
dotô, escolheu você...
E também devo contar
- ó, não vá se chatear -
Alguém o quer conhecer..."

Nessa hora eu quis tremer
como visse o Lobisome,
e perguntei a Zambeta:
- "Quem está por trás do Nome?" -
Zambeta me respondeu:
- Dotô, você entendeu;
Ele tem seu sobrenome..."

Logo o cão-general come
do Cardeal a rabada;
Zambeta olha pra mim
e me dá uma piscada:
- "O que general comeu
é carne de Prometeu:
toda noite é restaurada".

Seguimos por uma estrada
d'estranha decoração:
só plantas que comem gente
vomitam vestes no chão;
e Zambeta diz, com calma:
- "Isto purifica a alma
que sai na defecação".

Zambeta apanhou no chão
a batina de um vigário,
e sorrindo disse a mim:
- "Vista-se de salafrário
e capriche no altar,
pois se o Diabo gostar
tem aumento de salário..."

Eu me senti um otário
com a batina amarela,
porém logo vi surgir
lá na frente uma capela
a qual era dedicada
à Virgem Descabaçada,
à Santa Falsa Donzela.

Uma menina banguela
veio em minha direção,
logo se ajoelhou
e beijou à minha mão;
disse chamar-se Luzia,
e que me daria a guia
para a celebração.

Eu senti pena do Cão
ao vê-lo emocionado:
- "Ó dileto e bom irmão,
sou um anjo abandonado...
Uma pobre criatura
que vive na Amargura
e por ninguém é amado.

Mas saiba: fui educado
nas hostes celestiais,
e quando soube da história
de Zabé... Dos tristes ais...
Da desesperada cena...
Tem coisas que causam pena
até mesmo a Satanás!

Eu falei com Caifás,
com Mefisto e Belzebu;
consultei as feiticeiras,
Gato e Sapo Cururu,
e foi este o veredicto:
para celebrar tal rito,
doutor, tinha que ser tu!"

Parecia um urubu
o Diabo empaletozado.
Eu aguardei o momento
preciso, pois sou danado:
me deu a mão Lucifé!
Depois abracei Zabé
- O rosto todo molhado...

O grande Pilão Deitado,
apesar de ciumento,
também me cumprimentou
mostrando contentamento,
e logo a grande matilha
ali parou a Quadrilha,
aguardando o casamento.

O Cão dá consentimento
e a turba silencia;
eu faço o Sinal da Cruz,
alguém grita - "Porcaria!"
Franze o cenho Lucifé,
Pilão chega com Zabé
e começo a poesia:

- "Em nome da pata, jia,
e do espírito manco,
eu celebro um casamento
nesta Capela do Pranto,
rogando ao Bom Jesus
que lance um pouco de luz
sobre as trevas deste canto.

Nenhum destes dois foi santo:
desperdiçaram a vida;
por isso que cada um
tornou-se alma perdida;
mas rogo ao Bom Cordeiro
que perdoe ao cangaceiro
e à infeliz suicida!

Assim como a margarida
pode florescer na lama,
e como o pior bandido
dorme tão frágil na cama,
de onde menos se espera
- da Casa da Besta Fera -
pode surgir um que ama.

Este que ao Pai clama
também é um pecador,
mas desceu ao Inferno
pra dizer a Ti, Senhor,
que a que hoje é cadela
já foi distinta donzela,
coração cheio de amor.

Ai, que imensa é a dor
e frágil é a carne humana:
um tornou-se cangaceiro
combatendo à ratazana;
outra tanto amargurou-se
até que um dia matou-se,
porque a vida é tirana.

Ó Pai: a quem se engana
é concedido o perdão
se a Ti busca de novo
do seio da podridão;
por isto o servo te roga
- de bata, batina ou toga -
Abençoa esta união!

Eu me chamo Antônio Cão,
hoje  desci ao Inferno
vestindo uma batina
e com o coração terno,
pra fazer o casamento
de quem quer o sacramento
que emana do Pai Eterno.

Ó Pai, criaste o Inferno
com a força da Tua mão
porque sabes da maldade
do humano coração;
mas Zabé perdeu a vida
num impulso suicida
e merece o teu perdão.

Abençoa esta união
pra toda a eternidade:
de hospício para hospício
veio Zabé na verdade;
se sua alma era louca,
a desgraça não foi pouca
e merece a piedade.

Ó Infinita Bondade,
fonte de todo perdão,
inspiração da justiça,
dois pontos da retidão:
abençoa ao matrimônio
que na casa do Demônio
celebrou Antônio Cão!"

Dos noivos peguei na mão,
pedi pra sair ligeiro;
Zambeta foi-me deixar
- era um diabo cavalheiro. -
Zabé saiu com o Cão,
porque ali o patrão
desfruta a noiva primeiro.

- Leitor, quem é fuxiqueiro
merece pena fatal:
Se saíres por aí
do autor falando mal,
eu rogo ao Pai Eterno
que mande para o Inferno
o teu espectro final!

         
Antônio Cão
 'missário: Antônio Adriano de Medeiros

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