terça-feira, 8 de maio de 2012

Sertão - com a seca na alma




Meninos, eu vi!

Era uma tarde e eu vinha de Caicó para Santa Luzia, tão sozinho e implacável como o sol que no céu ardia, e, logo depois de passar pela boa cidade de Várzea, do lado de cá da cerca, havia uma vaca muito gorda - ela destoava do magérrimo gado que vira antes, lá perto do Povoado Santo Antônio, mas não destoava da Seca que grassava no Seridó - pois estava morta, e já toda cheia dos gases da riqúissima putrefação prenhe em vida que é a morte individual. E quem eram os convidados para a Ceia do Senhor? Sim, também eles estavam lá, devidamente paramentados e pacientes, aguardavam solenemente a hora de participarem do sagrado ritual, os nobres urubus, vários, aguardavam sobre paus e arame farpado, como as notas musicais de uma pauta cuja sinfonia ia ser iniciada. Procurei eternizar aquela fortíssima e bela imagem em minha memória nesse primeiro soneto que posto hoje.

O segundo é ainda mais antigo, e também foi inspirado em fatos bem reais, visita a parentes, desses ultraconservadores que tenho, já idosos, em suas grandes e velhas casas, onde vivem heroicamente, aguardando o inexorável passar dos dias. Também num dos quartos daquela casa havia mesmo um funeral de uma barata, acompanhado e conduzido por dezenas de formigas, que também eram convidadas para a Ceia do Senhor.  O nome da senhora, Escolasta, eu agradeço ao Criador, pois ele  a um só tempo satiriza tanto o conservadorismo católico e inquisicional sertanejo, como o seu isolamento cultural, vez que o nome certo seria "Escolástica".

Interessante como a morte de um indivíduo, embora sentida e chorada natural, sentimental, justa e belameente por seus familiares e amigos, é sempre tão cheia de vida! Poderia incluir aí outro soneto que este blogue já tem, o Versos A Um Palhaço Morto, mas aí destoaria um pouco do tema seca e sertão, que os palhaços morrem democrática e universalmente. Por isso nunca achei muito justo, e deixo um pouco de admirar alguém quando sei que ele, egoísticamente, deixou escrito seu desejo de ser cremado. Respeito essa decisão tão pessoal e derradeira, mas não a admiro pois não posso deixar de julgá-la sinal de orgulho extremo, egoísmo radical e uma estranha teimosia contra o que chamamos de Deus, como se se tentasse negá-Lo á força, e mesmo recusá-Lo. Eu não recusariu Deus - Deus me livre! - caso descobrisse que Ele pode me ajudar - mesmo sabendo que não sou digno que entrasse  em minha morada. Pois é, e a cremação é um atentado contra a ordem natural da vida, contra os pequenos seres que precisam imediatamente do corpo, bactérias,  vermes - e os estudantes de Medicina e afins, que precisam saber anatomia (Ninguém queira ver aí nenhum trocadilho, hein?).

Finalmente - haja poesia pra aguentar tanto nhen-nhem-nhem, hein? - voltemos à Seca e ao Sertão. O sertão é interessante porque ele reduz tudo que é grande na vida à sua verdadeira pequenez. Ali os grandes coronéis não passam de velhotes conservadores e ultrapassados, os grandes heróis no futuro se mostram criminosos, e até mesmo os profetas e santos não passam de malucos ou fanáticos religiosos, além de políticos e/ou infiltados para manter a estranha fé medieval de um rebanho isolado e ignaro com fome de tudo. Ali se vive com a Seca na alma, e assim como a Terra devora tudo (Elomar - uma exceção á regra que diz que tudo que surge no sertão é pequeno, esse vai se tornando maior a cada dia - diz que foi o Sol que matou a terra ali. Se o foi, o fez de tanto fazer amor  com ela, que os dois transam através da quente luz), o rebanho humano também o faz com tudo que recebe.

Outro dia vi num programa no Discovery Channel que a China fez transposição de rios antes de Cristo. Por isso que não há deserto ali naquele grande país - um país que sempre foi grande desde a antiguidade, inclusive com um sistema de crença, o Confucionismo, sem a idéia concreta de um Deus, mas com fé no Bem, na Sabedoria e na Justiça que se iguala aos demais); enquanto isso, nós temos o maior rio em volume de água do mundo despejando a cada segundo sei lá quantos quilômetros cúbicos de água por segundo em algum ponto do mar... Se tal rio tivesse seu curso desviado ( - Nem que fosse só uma partezinha, digamos um quartinho do volume, viu Doutora?) ali bem antes de chegar no litoral do Pará, e corresse ainda um pouquinho sobre a Terra, eu juro que tal água ainda chegaria ao grande mar. E talvez uma parte da Terra ficasse mais molhadinha para continuar recebendo do Sol o seu grande amor, toda bonitinha e saudável como sabem ser as mulheres verdadeiramente sábias e belas.

Hoje vou deixar aqui um link musical para um grande poeta da música brasileira, o maranhense João do Vale, que sabia dos urubus pois cantou o Carcará no tempo devido, e cuja História é parecida com a minha, embora eu saiba ser bacterianamente  menor. 

http://www.youtube.com/watch?v=fOF-KoPiHzw

Ah, um soneto é latino, o outro inglês. Mas sem deixar de serem, ambos, bem sertanejos. Aprendi!

absaam



A SECA

Irritável, o homem com tudo perde a calma.
A mulher faz promessas, reza e vai para a procissão.
Mas lá do céu o sol queima cada alma,
como a dizer que o Bom Deus não ouviu a oração.

A tristeza contamina até as brincadeiras da infância,
pois correr num rio de pedras não tem lá muita graça...
Já o velho, fragilizado e saudoso, em sua ânsia
chora e não quer comer, enlouquece... Quanta desgraça!

Sem folhas, raquítica qual espantalho cheio de espinhos,
a Jurema não serve para os pássaros fazerem ninhos;
A vaca e o bezerro no fim da tarde estão mortos.

Junto da cerca feita com arame e alguns paus tortos
Uma algazarra medonha assusta qualquer cristão:
os urubus brindam à Morte nas terras do meu sertão.


Antônio Adriano de Medeiros.




AGOSTO

O sertão velho ardia mês de agosto.
Aquela casa simples, de mobília já gasta,
espelhava desde a sala o singular mau gosto
da solteirona que ali morava, Escolasta.
Às quatro da tarde Escolasta repousa
em sua espreguiçadeira cinquentona,
quando uma mosca rápida, brincalhona,
em seu nariz avantajado, zumbindo, pousa.
Escolasta acorda, dá-lhe um tapa, e pensa no café;
com certa dificuldade seu esqueleto fica em pé.
Daqui a pouco ela estará lá na cozinha
fervendo água no fogão, um presente da sobrinha.
Entretanto em seu quarto já caminham, em direção à porta,
algumas dezenas de formigas, carregando uma barata morta.


Antônio Adriano de Medeiros

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