Os Escritos de Nanin

Duas confissões preliminares: uma, que os Escritos de Nanin são todos de autoria minha; e a outra, que o título foi inspirado, como a querer ter importância e uma posteridade duradoura, simplesmente nos Escritos do Mar Morto. Os Escritos de Nanin surgiram de uma mal entendido, na lista de poesia e literatura luso-brasileira Escritas ( http://www.escritas.paginas.sapo.pt ) do amigo José Nascimento Felix, tendo pois muito da interação minha com a boa poesia dali, incluindo claro muitos poetas que já saíram para criar outras listas. O mal entendido que gerou Nanin foi o seguinte: eu tentei fazer uma homenagem (um poema sobre outro poema da autoria dela) à poeta Silvana Guimarães, e, não sei de por incompetência minha ou pelas limitações que o convívio através da escrita virtual cria, a referida homenagem foi entendida pela homenageada como uma crítica ferina, e eu, como a dizer que certamente não sabia escrever direito, respondi meio assim como quem não está entendendo nada, através do I Escrito de Nanin. Estimulado que fui por boas almas que gostaram daquele menino e de seu jeito de escrever, prossegui no estilo, e quando percebi tinha criado outra forma de escrever minha, e com certa perícia, pois alguns chegaram a crer que Nanin (meu apelido na infância, posto Anderson, Decim, meu irmão mais novo)  existia mesmo e era o autor dos escritos.

Mas da leitura de alguns escritos (como Os Sonhos, ou A caça) se percebe que uma criança não escreveria  aquilo.  Sim, poruqe Nanin é um menino que escreve para adultos, principalmente, ou para crianças de 12 anos para cima. São esses trinta e oito textos os Escritos de Nanin originais  (há mais alguns que depois virão para cá), que na falta de uma caverna mais digna ficam escondidos nesse blog, meio secreto, não muito frequentado, um lugar meio ermo.


Com um abraço, 
Antônio Adriano de Medeiros





                                                                         ESCRITOS DE NANIN

 I

UM POEMA ASSUSTADOR

Eu tava brincando em casa,
assim, soletrando:
Bê com A, Bá;
Bê com E, Bé;
Bê com I, Bi;
Bê com O, Bó;
Bê com U, BUUUUU!
Aí apareceu um fantasma
e eu quase morria de medo...
Vou pedir à professora
me desensinar a ler.

           Nanin,
             Ntl, 21.03.02



II


TIA MARIA E O CAPETA
Minha professora, Tia Maria,
disse que eu não posso mais desaprender
a escrever, e que aquilo que eu fiz foi poesia,
coisa onde, ela diz, vez em quando anda o Capeta.
O Capeta ela disse ser um anjo brincalhão
que Deus mandou embora do céu
por causa de que ele não levava Deus a sério,
e hoje o pobrezinho só sai do inferno vez em quando
e continua fazendo arte.
Eu gostei do Capeta porque ele é brincalhão
como eu, gosta de traquinagem.
Ela disse que eu escrevesse mais,
e aí ia perder o medo de fasntasmas,
pois eles não existem, mas que eu não dissesse
nada à Madre do colégio porque ela é como Deus,
não gosta do Capeta e pode me botar de castigo.

               Nanin


III

A RUA
A Casa é o lugar pra onde a gente vai
depois da Escola, mas aí entre uma e outra
tem a Rua. Na Rua tem muitos carros
e sujeira, e muita gente também,
e mamãe diz que ela é perigosa,
mas eu gosto de olhar a Rua,
pois me lembra o Circo, com palhaços,
trapezistas, moças de pouca roupa, e os bichos.
Os palhaços da Rua andam sempre de paletó.
Os trapezistas ora passam rápidos entre os carros,
ora pedem dinheiro no sinal, eles são corajosos.
Como as roupas são muito caras, as moças
só têm dinheiro pra comprar pouca roupa,
e sempre andam na Rua quase nuas, tadinhas!
Não entendo por que uns homens mal educados
assobiam quando elas passam, deve ser
zombando da pobreza das moças;
papai é bom, ele gosta de dar dinheiro às moças
pra elas comprarem mais roupas.
Os bichos da rua são mais magros e sujos
que os lá de casa, mas eu também gosto deles.

               Nanin,
               Natal, 21.03.02

IV


MAMÃE
Mamãe é muito boa, me perfuma
e me dá banho e troca minha roupa,
além de amarrar o cadarço de meus tênis.
Só quando eu me sujo ou me firo
ela se zanga e briga comigo, ou quando
demoro a me levantar pra ir pra aula.
Não entendo por que papai às vezes dá nela,
pois escuto seus gritos de "Ai, tá doendo!",
mas logo no dia seguinte o perdoa
abraçada a ele, e o beija quando vai trabalhar,
porque mamãe é assim, muito boa.
Até os vizinhos e os pais de meus amigos
dizem que mamãe é muito boa.

V

PAPAI

Papai também é bom, mas parece que gosta
mais do Trabalho que da Casa,
pois passa mais tempo lá, ô lugar mais sem graça!
Ele á amigo dos palhaços, mas é mágico
porque sempre consegue um tal de Dinheiro,
coisa que parece ter muita importância
para as pessoas, já vi gente grande
chorar pra papai dar dinheiro,
mas ele só dá de acordo com Os Papéis,
umas cartas só com números e sem figuras,
tudo sem qualquer graça. Também vai lá
um povo sorridente, e pra eles papai sempre dá
dinheiro, e ri muito também quando eles vão lá.
Papai parece que não sabe que quem manda
lá em casa sou eu, pois quando chega reclama
se eu não estudei e tal, mas mamãe arranja
sempre uma desculpa e me defende.
Ele também briga com minha irmãzinha,
mas é só ela chorar ou sentar no colo dele
que ele fica bem mansinho. Eu aprendi que
quando quero algo que ele não quer me dar,
é só mandar minha irmãzinha chorar,
ou mamãe pedir que ele acaba me dando.
Quando eu crescer vou gostar mais
da minha Casa do que do Trabalho.

Nanin.

VI

O PÉ-DE-ATRA

Lá em casa tem pé-de-manga e de coco,
um pé-de-caju e um pé-de-cajarana.
Gosto de brincar neles trepados
como macacos eu e minha irmãzinha,
pulando de um para outro, de manhã.
Mamãe às vezes me leva ao pé-de-atra,
que não tem graça nenhuma
porque o pé-de-atra é só um homem.
Eu não gosto dele porque ele sorri
muito de seu riso caro e falso,
segundo papai, e não sei por que
ele demora mais quando está a sós
com minha irmãzinha que comigo;
ela é muito saudável e nadamos juntos
toda semana, e eu tenho bronquite,
mas temo que seu caso seja grave,
porque gosto muito dela.
E ademais ele me diz umas piadas
sem graça embora queira ser sempre sério,
e, coitado!, pensa que sabe mais do que eu...

Nanin.

VII

A MADRE

A Madre Esther é rica da Graça de Deus,
e não pode existir, longe nem perto, nem decerto
lá no quinto dos infernos, uma mulher tão danada,
séria e respeitada quanto ela. E ainda dizem-na
quase santa de tão boa, mas também acho-a
meio feiticeira, pois paralisa a todos
com seu olhar de reprovação, e no colégio
os profesores, freiras, alunos e demais funcionários,
todos prendem a respiração quando ela passa.
Que mulherzinha danada! Os corredores do colégio
quase brilham de tão limpos, mas ela obriga
mesmo assim as pobres freiras a lavá-lo
várias vezes por dia, nunca contei quantas.
Não sei se ela é casada, mas deve ser,
pois quando fala de um tal de "Ele", a sua voz
de repente se torna doce e o olhar bondoso
trai a santa por trás da mulher má.
Uma vez ela veio reclamar de mim,
e se disse mãe de minha alma, mas como eu
recusei e disse que preferia minha mãe e Tia Maria,
ela me suspendeu do colégio e mandou chamar
papai e mamãe e brigou com eles.
Mamãe disse que a família era mais antiga
que a escola, a igreja e o hospital, e aí a Madre
ameaçou expulsar a mim e a minha irmãzinha
do colégio, mas só foi um amigo de Vovô
telefonar que ela ficou bem mansinha,
com seu olhar bondoso e voltou atrás;
acho que o tal Amigo de Vovô era o tal "Ele",
o homem que sempre deixa a feroz Madre dócil.

Nanin

 VIII

A MENTIRA

A mentira é uma coisa que a gente diz
pra o mundo ficar mais bonito,
quando precisa esconder algo feio que fez.
Ela acalma muito as pessoas zangadas,
principalmente pessoas grandes e velhas.
Todo mundo diz que a mentira é feia
e que as pessoas grandes que dizem
muitas mentiras não merecem confiança,
e mamãe me diz pra eu nunca mentir
pra ela nem pra papai, mas ela mesma
mente pra papai quando precisa esconder
algo que eu fiz e que o deixou raivoso,
por isso que eu descobri que a mentira
também é prova do mais verdadeiro amor.

Nanin

IX

OS AMIGOS

Eu queria ser amigo de todo mundo,
mas mamãe não deixa, porque diz
que os meninos que moram na rua e aqueles
muito mais velhos que eu não prestam
pra serem meus amigos. Tem uns que carregam
mesmo os brinquedos da gente, já aconteceu.
Mas eu posso ter amigo de todas as cores,
as cores são todas bonitas. Tem uns amigos
que não gostam de uma cruzinha arredondada
que um dia outro amigo meu, Charles,
fez e os deixou assustados e tristes,
e mamãe me disse que eu não fizesse nunca
aquela cruzinha porque ela é perigosa
e transforma amigos em inimigos.
Charles tinha namorado uma menina
e quando o namoro se acabou ele começou
a fazer a cruzinha em todo lugar, porque
disse que a família da menina não prestava;
mas eu acho que só porque o cara conhece
uma menina e quando ele a namora descobre
que ela é falsa e fica mais feia e até má,
isso não quer dizer que toda sua família seja ruim.
Os amigos ricos são mais alegres que os outros,
e tem casas maiores e melhores, e parece
que não preocupam muito com comida,
embora sejam mais fortes que os outros.

Nanin.

X

AS MENINAS

Elas são muito delicadas e choram
demais, mas a delicadeza delas é coisa
de pele, também. E são mais leves
e quando a gente tem vontade
de brigar com uma menina,
se abraçar ela sente uma coisa muita estranha
e passa a vontade de brigar;
isso aconteceu comigo
no dia em que briguei com Zeca,
e Silvinha irmã dele veio defendê-lo
e eu a agarrei: senti a coisa estranha.
Não é bom que elas saibam disso
porque aí se aproveitam, mas parece
que já sabem. Não sei quem contou,
eu nunca disse a ninguém.
Elas também gostam muito de dançar,
e quando é epoca de Quadrilha no colégio
eu também gosto e danço com todas,
embora tenha minhas preferidas,
e é melhor dançar com elas que com as outras.
Gente grande não pode dançar Quadrilha
porque é presa e sai na televisão.
Sim, as meninas têm um cheiro diferente
dos meninos, e os cabelos são maiores
e mais delicados e cheirosos também.
Acho as roupas delas mais bonitas,
mas nem precisavam se vestir tão bem
pra serem bonitas: nuas, também são.

Nanin.

 XI

A MISSA

A Missa é uma festa muito séria
que acontece todo Domingo
lá na casa de deus, que eu não acredito
que seja só aquele homem amarrado
numa cruz: se for, ele desceu dali,
porque deus, dizem, é todo-poderoso.
Uma vez eu quis desamarrar um
que tem numa casinha de madeira lá em casa
pra brincar com ele, mas brigaram muito
comigo e mamãe amarrou ele de novo.
Parece até que acham bom ele amarrado,
mas ele desce dali que eu sei.
As pessoas ficam com cara de boas
na Missa, olhando um homem beber
e comer e falar umas coisas
que sabe de cor, mas às vezes se esquece
e vai pra ler num livrão bem grosso.
Depois ele dá um pedacinho da comida
pra todo mundo e eles se ajoelham,
e ficam mais mansas e felizes.
Tem outras festas em que todo mundo
pode beber, e são mais animadas.

Nanin.

XII

AS TRÊS CASAS DO CÉU

A minha casa fica no chão, e lá em cima,
bem longe, tem uma cidade chamada céu
onde só tem três casas, mas são três casonas
bem grandes, a casa do dia, a casa da noite
e a casa colorida. A casa do dia é azul,
e quem mora nela é o sol, que apesar de não querer
ninguém na casa dele deve ser uma pessoa boa,
pois acho que é por causa dele que existe
a palavra "Sozinho".

A casa da noite é preta, e é lá que moram
a lua e as estrelas. Eu pensava que a lua era o sol
quando voltava do trabalho para casa,
mas descobri que não no dia em que vi os dois
na casa do dia: ele deixa ela entrar lá.
Também descobri que a lua era uma mulher
porque ela gosta de se vestir sempre diferente,
mas também é bonita nua.

A casa colorida tem tantas cores que umas eu não
conheço, e é a casa mais bonita, e fica entre as outras
duas: é lá que a família do céu se encontra,
o sol, a lua, e seus filhos que são as estrelas.
O sol e a lua já são velhinhos e andam sempre devagar,
mas as estrelas brincam de esconde-esconde
e de repente uma sai correndo e
desaparece.

Eu tinha pena das estrelas
porque pensava que elas nunca mais
se encontravam com seus pais, até aquele dia
em que descobri a casa colorida.

Eu nunca vou me esquecer daquele dia!

Nanin

XIII

AS NUVENS

Nuvens, poema
que eu acho difícil escrever
porque são muito diáfanas e nunca param,
mas penso que assim como aquele homem pode beber
na missa, os deuses também fumam,
e a fumaça dos deuses são as nuvens.

A chuva é quando uma festa dos deuses
acaba em brincadeira ou briga,
pois raios e trovões não são só armas,
palavras dos deuses causam efeito
benfazejo, e já farejei o bafo
da terra molhada do sertão depois da chuva.

Vovô-elefante morava lá no sertão, e quando eu ia
lá na casa dele era uma festa
muito grande na época que chovia.
Parece que os deuses gostam mais
de fazer festa perto do mar,
talvez o mar seja mesmo um deus.

Mas o povo do sertão reza muito,
e ouvi dizer que os deuses atendem a quem reza
e não atende quem é ruim e não reza.
Haverá gente ruim entre os homens do sertão?
Muita gente quer sair de lá, às vezes até a pé,
não sei se por causa da chuva ou da gente ruim.
Eu gostava muito de lá.

E qualquer dia conto a história de vovô-elefante.

Nanin


XIV

O CÃO

Não sei se posso dizer que ele é meu
maior amigo, pois gente não é,
e os outros amigos podem não gostar,
não dele, bonzinho, brincalhão, inocente,
que nunca fez mal a ninguém,
mas de serem comparados com o cão
a quem me refiro, o meu querido cãozinho.

Bafu é o nome do cão que considero
na verdade um parente meu,
assim como um irmãozinho menor
com quem sempre gosto de brincar.
Ele chora de alegria quando chegamos
porque sente saudades extremas do tempo
em que estávamos todos juntos,
e talvez o cão se julgue abandonado
quando fica sozinho lá no quintal de casa.
No inverno ele tem medo dos trovões,
e do São João teme os fogos,
porque não sabe lidar com eles
e tudo que brilha, queima ou explode
lhe parece uma ameaça poderosa.

Ele tem um rabo muito bonito, o cão,
e quando brinca balança-o sempre,
e seu rosto deixa transparecer o que é:
nessas horas ele parece uma criança feliz.
Ele já é muito bonito, mas penso
que se lhe pusesse uns chifrezinhos
de bode, cabrito ou bezerro, ficava mais bonito.
Mas claro que não precisa, gosto dele
do jeitinho que ele é, meu adorável cãozinho.

Tem gente que diz que a gente veio do macaco,
mas eu acho que é um engano pensar isso.
Pelo menos eu, com certeza, vim de outro
bicho: acho que vim do cão,
pois gosto muito de brincar, sair correndo
com gente, mas depois volto pra casa.
Uma vez apareceu um macaco lá em casa,
macaquinho daqueles pequenos,
mas não quis ser amigo e quase me mordeu;
era zangado e não sabia brincar,
pois quando saiu correndo não voltou mais.
Por isso o cão é mais humano que o macaco.

Nanin.

XV

O GATO

Bicho estranho é o gato, às vezes
parece perigoso caçador, outras,
tão mansinho e delicado, parece até minha irmãzinha.

Tem gente que não gosta de dar comida ao gato
porque diz que ele fica preguiçoso
e não quer mais caçar ratos e outros bichos sujos,
mas eu gosto de Félix e ele sabe disso,
e sempre depois do almoço mia agradecendo
antecipadamente seu prato que sabe que lhe darei;
Zefinha também gosta dele e o alimenta
quando esqueço ou
saio apressado.

Mas quem gosta mais dele é Rosa, minha irmãzinha.

Diz que o bicho veio de longe, o gato, lá do oriente,
da corte do Egito, e por isso tem origem real,
como bem mostra sua postura.
Eu descobri que ele é um tigre sabido
que não quis brigar com o homem,
e, escondido, diminuiu e
apareceu bem mansinho.

Eu já notei que ele não ficou preguiçoso
mesmo que a gente lhe dê comida
porque, quando é de noite, é grande
a zoadeira, o miadeiro, a briga dele com outros gatos
no telhado lá de casa, comendo ratos;
e desconfio de quem tem gatas na briga para comer,
pois conheço a voz do gato e a voz da gata:
a gata é mais mansinha, mas também mais braba;
ela é mais estranha ainda.

E a maior prova de que Félix é sabido é que ele mesmo
vendo que outras pessoas o alimentam,
sempre é para mim que ele mia, agradecendo
antecipadamente depois do almoço:
sabe que quem manda na casa sou eu!

Nanin

XVI

O PAPAGAIO

Eu não gosto de gente burra por causa da inveja
que elas têm demais: uns colegas meus do colégio
tinham inveja de mim e eram burros, e só porque
eu disse que eles eram burros eles ficaram
com raiva de mim. Mas bicho pode
ser burro que não tem problema,
são sempre engraçados: assim é o papagaio.

O papagaio é um bicho muito bonito, cheio de cor,
mas é burro porque demora muito a aprender
a falar, e aprende pouco, e não diz a frase toda
que a gente ensina: um pagagaio nunca aprende
a cantar uma música bonita.
Quanto maior e mais bonito o papagaio
mais burro ele é: tem uns pequenos que falam,
mas os grandões mesmo mudam ate de cor
e ficam azuis, mas não aprendem a falar.

Um vizinho de vovô-elefante tinha um papagaio meu
amigo e muito engraçado, mas ele um dia desapareceu.
Não sei porque ele desapareceu, acho que foi
pra uma casa melhor, porque era até sabido,
além de muito engraçado. Um dia eu vi duas amigas
deixarem de ser amigas, e quando duas amigas deixam
de ser amigas numa cidade pequena
como a de vovô-elefante que eu me lembro,
é uma confusão muito grande na rua: elas gritam
e se mordem e puxam os cabelos e até rasgam
a roupa uma da outra: acho que tinha sido um presente
que tinham dado e se arrependem quando deixam
se ser amigas, por isso rasgam o presente.
Nessa briga, uma das moças era mais velha
que a outra, e disse uma frase que o papagaio gostou
muito, e aprendeu, e todo mundo ria quando
ele repetia aquela frase. Quer saber que frase era?
Era assim: "Cadê o retrato se seu Macho?"

Eu nunca conheci "seu Macho", mas acho que ele era
um homem muito engraçado, pois todo mundo caía
na risada quando o papagaio dizia aquilo.

Mas com a história de "seu Manuel" foi diferente.
Todo mundo chamava vovô-elefante de "seu Manuel",
mas eu não, ele era meu
avô, e eu só o chamava de Vovô. Ele era muito bom
e por isso o povo da cidade uma vez disse que ele era
o perfeito de lá. O vizinho de vovô não queria que ele fosse
o perfeito da cidade, mas o papagaio queria.
Aí só aprendeu uma parte da música de vovô,
e não do outro que também queria ser o perfeito.
Foi por isso, acho, que ele foi-se embora daquela casa,
e vovô-elefante ria muito quando se lembrava
daquela música que terminava com a frase
animada que nem o papagaio esqueceu:
- "Seu Manuel é o maior!"

Nanin

XVII

OS PADINS

As únicas pessoas não obrigatoriamente fora
da família que a gente deve pedir a Bença
são padim e madinha que são
como pra lembrar a gente a família pode ser maior,
ou como uns pais de reserva que a gente precisa
caso uns dias os outros pais demorem
em alguma viagem, a gente fica com eles.

São Padim Cavalcanti
e a tão bela Madinha Soledade
os meus padins, e presentes
já me deram e sempre sorriem
quando lhes peço a Bença.

A Bença então deve ser um sorriso.

Não me lembro (se serei assim
muito esquecido, me perdoem) quem foi,
mas me contaram que eles trouxeram
presentes pra mim quando era bem pequenininho,
e foram buscar lá no fundo do mar
umas pedrinhas brancas dentro de um peixe
e as deram a mamãe e a papai
que as guardam, anchos, até hoje,
só que nunca me deixam desamarrar o cordão
pra brincar com as pedrinhas como se fossem
pequenas bolinhas de gude.

Pensam que eu não saberia de novo colar?

Qualquer dia eu digo a meus padins
que nem precisava daqueles presentes,
bastava o sorriso deles.

Aqueles dentes são
infinitamente
mais preciosos.

De amantes que são da verdadeira
música, talvez um dia
me ensinem a tocar um instrumento.

Na língua luz há.

Houve um tempo que eu não queria
mais pedir a Bença a ninguém.
Foi depois daquela Noite, uma noite muito triste
que me acordaram bem tarde
pra ir tomar a Bença a vovô-elefante que tava deitado
e ele chorou e todo mundo chorou também.
Eu quase não dormia naquela Noite
de tanto chororô que houve lá
na casa de vovô-elefante que era tão alegre
e depois daquele dia ficou uma casa triste.

Eu pensava que tinha sido por causa
que eu tinha pedido a Bença a ele
e não mais queria deixar
nenhuma casa triste.

Mas mamãe me ensinou que eu não podia
deixar de pedir a Bença a ela nem a papai
nem a alguns tios nem a meus padins,
nem a vovô-elefante quando ele acordar.

Por isso eu peço a Bença.

Nanin.
XVI
 
O PALHAÇO

Será que ele mora em casa de palha
e é por isso que o chamam de palhaço?
Mas aí ele seria sem graça e quase triste
porque são palhaços sérios
os que moram em casa de palha,
e aí eu ia era ter pena dele,
em vez de achá-lo engraçado.

Ah, já sei: é porque ele parece um
daqueles bonecos feitos de palha
que colocam nas plantações
pra espantar os pássaros,
só que são espantalhos da tristeza
da gente, ao contrário dos falsos
palhaços que moram na casa de palha,
espantalhos de pássaros e da alegria e
que parecem se nutrir na doença tristeza.

O palhaço é um homem acachorrado
que faz umas macaquices todo pintado,
mas ele não tem rabo como o cão
ou o macaco, tem uma gravata.
Quando a gravata do palhaço é vermelha
e com umas bolinhas brancas,
ele é palhaço da alegria.
Quando a gravata do palhaço é branca
ou de outra cor e parece séria,
ele é um palhaço espantalho da alegria;
não passa de um triste palhaço sério.

A fala do palhaço engraçado
é acachorrada também, mas de um
cachorro brincalhão e amacacado
quando um palhaço da alegria;
quando a fala do palhaço é de uma
cahorrada amacacada mas séria
e mesmo ameaçadora,
trata-se de um palhaço da tristeza.

Por isso não gosto dos macacos,
nunca sei quando eles são cachorros
brincalhões, ou cachorros zangados.

O palhaço bom geralmente é um velhinho,
como um Papai Noel que distribui sorrisos,
mas também pode ser um rapaz alegre.
Acredito que o palhaço sério também
possa ser as duas coisas.

Uma vez eu num ônibus que passou
num lugar cheio de umas casinhas simples,
e com ruas estreitas e um povo magro
e muitos rapazes sem camisa na rua;
no ônibus ia também um palhaço triste,
desses de gravata branca;
esse palhaço desceu do ônibus
e entrou numa casa de palha.
Foi aí que eu descobri que os palhaços
tristes moram em casa de palha.

Nanin

XIX

OS BRINQUEDOS

O melhor presente do mundo é um brinquedo.

Minha irmãzinha também gosta
de uns presentes que ela chama de outros nomes,
roupas e jóias, uns enfeites que ela sabe usar
de uma maneira que fica mais bonita.
Mas pra mim tudo é brinquedo.

Será que as meninas sabem
de alguma brincadeira especial que existe
e na qual elas são os melhores brinquedos,
e também os brinquedos mais bonitos?
Ela é mais velha do que eu, minha irmãzinha,
e parece que é brinquedo de outra
brincadeira que não me deixa brincar.

Também quem inventou de brincar de médico
foram as meninas, por isso só presta com elas.

Um brinquedo pode ser qualquer coisa,
até um pedaço de pau pode ser um brinquedo,
dependendo do menino que brinca.
Os meninos arteiros sabem brincar
melhor que os que quietinhos demais.

Tem brinquedo que fala e anda sozinho,
mas eu prefiro os bonecos de super-heróis.
Tem gente que prefere chamar de soldadinhos,
mas por que negar que são simples bonecos?
Os super-heróis tanto podem ser
índios como soldados, brancos como pretos,
bandidos ou pacatos fazendeiros.
Os adultos chamam seus super-heróis de santos.

Os carros também são bons brinquedos
que andam rápido ou devagar
e nadam, andam em baixo d'água e até voam.
A gente também pode amassar os carros
do jeito que quiser, mas cuidado: gente grande
que gosta de amassar carros é perigosa.

As cores e os traços são os brinquedos
com os quais a gente faz os desenhos.
Eu desenho muito mal,
acho que porque acho
o desenho uma brincadeira muito demorada e quieta.
Mas, depois da brincadeira demorada,
o brinquedo pode ficar muito bonito.

Outros brinquedos interessantes são as palavras.
Quer aprender a brincar com elas?
Primeiro, você precisa conhecer as letras,
por isso vá aprender a ler.
Depois é fácil, é só misturar as letras
que elas querem se misturar formando palavras
e até dizem como querem se misturar,
todo mundo pode ouvir as palavras.

Porque existe a música, e como
eu não sei pintar, invento imagens musicais
com as letras e palavras, porque Tia Maria
e Charles me falaram da floresta de símbolos.

Quando eu era ainda menor notei
que não desenhava bem, nem brincava direito
naquela brincadeira chamada música,
porque não precisava: já conhecia as palavras
e, não sei, mas pode ser que elas tenham dito
que tinha amigos que desenhavam
e cantavam melhor do que eu.

As palavras às vezes dizem coisas
que a gente não pediu pra ouvir.

A música é a brincadeira mais bonita que existe.

Nanin

XX

AS BARATAS

Existem três tipos de baratas
que eu descobri, e dois deles são maus,
só um tipo de barata é mais ou menos bom.
Todos os tipos de baratas são difíceis de achar.

O primeiro tipo de barata se cria em toda casa,
principalmente na cozinha, e elas sabem
que não são queridas em lugar nenhum,
por isso se escondem durante o dia
e só aparecem de noite. É difícil
descobrir onde elas moram, porque esse tipo
de barata se esconde muito bem,
em casas bem pequenininhas dentro
da casa da gente, e vez em quando é preciso
desarrumar a casa todinha pra espantá-las
ou meter o chinelo nelas, que elas dão o leite
e ficam paradas, aí é só jogar no lixo,
pegando nelas com um papelão ou uma pá.
Aquele leite das baratas a gente não deve
beber nunca, elas são sujas, e a pessoa
que tomar do leite adoece gravemente.
Apesar de elas existirem em todas as casas,
notei que meninas e mulheres sempre têm
medo delas, e dão gritinhos e saem correndo
toda vez que uma aparece. Eu não:
já sei que a gente deve meter o chinelo.

O segundo tipo de barata tem que sair
procurando nas lojas pra levar pra casa da gente,
e são as mulheres que mais gostam delas,
pelo menos notei que mamãe e as amigas dela
sempre insistem em comprar a barata
quando têm que comprar alguma coisa.
São baratas desejadas pelas mulheres,
e também sempre é difícil achá-las,
tem que procurar a barata em várias lojas;
a maioria das lojas que vendem baratas
são lojas pequenas e sujas, mas também
lojas grandes costumam anunciar que vão
vender as coisas baratas, e quando
anunciam isso, ficam muito cheias de gente.

O terceiro tipo de barata é o marido das outras,
um tal barato, e já ouvi papai dizer que não deu
dinheiro pra uma pessoa lá no trabalho dele
porque aquela pessoa fazia tudo por um barato.
Sempre é difícil achar também esse tipo aí
de barata, o barato, marido das outras,
e que é o pior de todos, certamente porque
ele faz nascer as outras baratas. Já vi umas
pessoas que gostam muito do barato, e elas
são pessoas magras e estranhas, e costumam
carregar as coisas da casa dos amigos
pra vender e comprar o tal barato,
pois quem gosta do barato não pode viver sem
ele, e vai naqueles lugares sujos onde
as baratas costumam se encontrar.

As pessoas que me são mais caras, aquelas
que mais gostam de mim, me dizem pra eu
nunca gostar de nem um dos tipos de baratas,
pois elas acabam saindo caras pra quem
gosta delas, geralmente se quebrando logo
ou fazendo a pessoa adoecer.

Quando um dia eu for grande, porque é natural
que pessoas como eu fiquem bem grandes,
nunca vou gostar de nem um tipo de baratas.
Mas dizem pra gente respeitar as pessoas
que gostam de baratas, elas são doentes,
e de nada adianta meter o chinelo nelas.

Nanin.

XXI

A LANCHEIRA

Eu me lembro ainda
do meu primeiro dia de aula...
Também não faz muito tempo!
Minha mãe preparou duas lancheiras:
uma pra mim que era azul,
outra pra irmãzinha que era rosa,
como ela que também é Rosa.

Me lembrei agora do anjo-da-guarda
que minha mãe diz que existe
e fica sempre do lado da gente,
protegendo a gente do Mal.
Me lembrei dele por causa do nome
da minha irmãzinha, Rosângela,
porque ela é um anjo que tem
mais idade que eu e me protege,
e é rosa por causa do perfume.

Também me chamavam de Cravo Branco
porque eu era bem alvinho,
mas os colegas invejosos me chamavam
de Vela Branca, e eu tinha raiva,
mas hoje não porque descobri
que na vela há sempre uma luz.

Sim, também descobri a Troca:
quando a gente começa a ir pra escola,
existe uma Troca: na lancheira
a gente leva as coisa de casa pra escola,
e na bolsa traz as coisas da escola pra casa

Quer saber o que ia na lancheira?
Água, leite com toddy, ou suco,
e bolachas, e um pão assado
que ficava bem amarelinho de um lado,
não sei se por causa da manteiga
ou das mãos de ouro que o preparava.
Comidas na lancheira, eu fui pra aula.

A Troca, pra ser justa, precisa
que a gente traga da escola
um saber dourado, da mesma cor
do pão assado que a gente leva de casa.

Mas avise à sua mãe pra cuidar bem
da lancheira, porque se não pode ser
que entre uma barata ou um barato
de noite, quando ninguém vê,
porque o anjo da guarda às vezes tá dormindo.

Nanin

XXII

A MÁGICA DA MONTANHA

Um dia eu subi numa montanha mágica.
Ela me fez descobrir muitas coisas,
os vários caminhos para lá chegar,
lá no topo: uns mais simples, tranqüilos;
outros, mais difíceis. Espinhos e flores
e escarpas e sempre pedras, muitas pedras.

Fomos pelo caminho mais difícil.

Há que se levar água e comida pra lanchar,
porque cansa e dá muita fome na subida da montanha,
mas a comida, me disseram, só poderia
ser servida lá em cima, pois ficava mais gostosa.

Ah, o tempero do ar lá das alturas...

A mágica da montanha não é só pássaros cantando
ou lagartos nos olhando curiosos mas fugindo,
rápidos, se nos aproximamos deles.
Meu pai disse que eles fugiam porque são velhos
e sábios, e os sábios são sempre desconfiados.

Que bicho bonito era aquele Camaleão!,
o leão dos lagartos é verde.
Mas ele não quis conversa comigo e correu.

A principal mágica da montanha é quando
ela mostra que os homens são muito pequenos
e, dependendo de quem olha,
podem até ser menores que uma criança.

Prefiro chamá-los de anões, pois crianças crescem.

E foi lá que Xique-xique me contou
que os espinhos servem pra defender as flores.

Nanin

XXIII

OS HUMANOS

Macacos nunca, vi dizer, muito diferentes
são os humanos, suas vestes
nada escondem, exibem com mais graça
as curvas acidentais, em seus dentes
nunca sangue cru, carne e verduras
sempre, batom nos lábios belicosos
das guerreiras do amor.

São mais sábios todavia dançam,
ainda bem, e até cantam alguns
arremedando pássaros,
mas também suas garras lembram águia,
ou mesmo a linhagem que pariu Pantera
que na negra noite atacou Nastasya.

De nada valeu o colete de diamantes,
os outros tinham sabres. Não eram macacos,
do contrário manejariam paus ou pedras,
as revoluções são sempre animalescas.

E o homem? Dentre eles, sem dúvida,
os seres mais interessantes são tantas
aquelas de abraço acolchoado,
e do coração olho-d'água do perdão,
e que ora mostram, escondem, não o sol,
mas talvez algo parecido
metamorfoseado em flor
e que passa como elas,
peripécias de vento e de luz.

Nanin

XXIV

VOVÔ-ELEFANTE

Não precisei ter quatro avós, bastou um,
os outros eram só retratos.

Porque ele sabia de Memória
coisas de que ninguém mais lembrava,
e derrubava árvores que se opunham
a seus poderosos movimentos, e também
usava às vezes um facão como tromba
cortando o capim, abrindo caminho
pelo meio do mato, até de noite.

Ele era forte e não tinha medo de nada.

Sabia já que ele era um elefante pelas marcas
no seu rosto, marcas profundas que o sol
abrira em seu rosto como os rios
de sua terra que eram também secos.

A voz dele era rouca e forte e lembrava
a voz de um grande elefante. Eu me escanchava
nele e ia pra qualquer lugar, naquele balanço
que os grande bichos têm,
para um lado e para o outro,
a lembrar o camelo que Rosa um dia andou
e me mostrou como era o movimento.

Um dia ele ficou muito tempo só deitado
e a voz foi ficando mais fraquinha, mas sempre
uma voz de elefante. Foi quando deixou de falar,
naquela Noite de muito chororô.
Aí eu me lembrei de um filme que vi uma vez
sobre elefantes: o mais velho um dia se deitou
e ficou calado e imóvel, e os outros o cercaram
chorando, e depois deixaram ele lá.

Vovô nunca me enganou: ele era um elefante.

Nanin

XXV

OS SONHOS

Sonho, logo existe alguma coisa
em mim que o pensamento descarta
se racional demais, não da raça símia
aos símios que descobriram a má temática
e agem impulsivamente, ainda
que possam parir pesados elos
que acaso me unam, bem depois do ocaso,
aos nanicos de pensar errante.

Solto o pesado elo das contra adições,
me uno a qualquer erva ou cheiro e venho
pois multiplicando imagens d'alma fria
com cores e sons e perfumes e longos espaços
de outros gostos tatuados na língua,
mas naturais: nunca usa rei um piercing,
pois que leve lava vulcânica intrínseca guardo.

Frescura! Que estória é essa lenda
que são frutos de meros desejos não realizados?
Os sonhos, sei-o desde a infância que quase ainda
tenho, servem apenas para dizer que bicho vai dar.

Vovô-elefante me contou, quando eu era ainda
bem menino, que antes de vovó virar só um retrato
na parede, todo dia de manhã eles iam interpretar
os sonhos da noite anterior, e fiquei sabendo
interpretar também. Sonhar com crianças
que a gente gosta, dá coelho; dá burro se for
com as que a gente não gosta. Se você sonhar
com moça bonita, jogue borboleta; mas se for
com rapaz bonito e muito enfeitado, eu não entendo
a razão, dá veado em vez de pavão: deve ser
por causa dos chifres do alce que enfeitam.
Gente braba dá galo ou leão, gente mansa,
carneiro. Não sei o que é gente chifreira, mas soube
que sonhar com eles pode dar touro ou vaca.
Macaco ou cachorro é o bicho que dá se você
sonhar com soldado, dependendo se eles forem
maus ou bons. Urso é o bicho dos falsos amigos.
Já eu sou tigre no jogo do bicho, me disse
uma menina chinesa que eu gosto muito dela.

O dono da banca de Jogo do Bicho nem sempre
acerta, coitado, no bicho que a gente sonhou,
mas vovô-elefante me contou que ele acaba
aprendendo, e alguns dias depois acerta.

Nanin

XXVI

A CAÇA

A caça é sempre algo que acontece entre bichos,
entre pelo menos dois bichos, um querendo
comer o outro; misto de namoro e briga e de brincadeira.
Já fui com amigos matar passarinho com a baleeira,
mas desisti quando vi como era.

Não vejo graça nenhuma na caça artificial,
aquela feita com armas, dando-se um tiro
num passarinho, ou outra ave, ou um bicho qualquer.
Há algo ali de muito antinatural. Mas isso não
quer dizer que eu nunca tenha engolido uma rolinha
ou uma ribaçã ou codorna, ou comido uma galinha,
ou que não goste da carne da vaca: adoro-as!
Mas como se pode atirar num bicho
que a gente não vai comer?

Agora a caça natural é uma coisa muito bonita,
parece um namoro entre bichos, sendo
que é um namoro entre bichos diferentes.
Pode ser de leão com veado, ou leopardo com zebra,
ou leoa com antílope, mas a caça mais bonita
é entre o tigre e a gazela, porque ele é bem maior
e mais forte que ela, e acho mais bonito assim,
pois ela se entrega de uma forma perfeita
quando cai e se dá a ele no êxtase final.
Tudo começa com o tigre insinuando-se
sorrateiramente no meio do mato.
A gazela está ali, paradinha, comendo folhas,
olhando vez em quando pra todo lado, ansiosa,
parece até que está procurando por ele,
mas não o vê, ou finge que não o vê
porque deixa ele chegar bem pertinho,
ele que tanto a deseja tão carnalmente.
Aí então eles se olham, e a gazela, emocionada,
dá um pulo e sai correndo, como se dissesse:
"Você não vai me pegar, mas, se conseguir,
sabe que vai ser recompensado com minha
carne mais saborosa." Aí o tigre também
sai correndo atrás dela, e então a brincadeira
demora um pouco. A gazela é levezinha e rápida,
mas o tigre é mais forte que ela e a alcança
e dá um tapa em sua bundinha, ou a morde
lá ou no pescoço. A gazela então cai, erguendo
a cabeça meio voltada para o seu dono,
e dá um grito misto de dor com prazer
de se entregar àquele bicho tão grande e forte,
e o tigre a morde de novo e ela se contorce
toda por uns instantes, mas depois fica parada.
Depois aparecem os filhinhos que se nutrem
da carne saborosa, e assim crescem
como se fossem filhos dos dois.

A caça à galinha é muito mais fácil,
é só ir ali no quintal e escolher uma
e ir atrás dela e depois deixá-la
de cabeça pra baixo e comer daqui a pouco.

Agora descobri por que não existe gazela
nem peixe no Jogo do Bicho:
é que o tigre comeu a gazela, e sabe
quem comeu o peixe? Foi o jacaré!

Nanin

XXVII

O MACACO-PAPAGAIO E DOIDIN PIQUENO

Eu tenho muitos brinquedos, e eles brincam entre si
pois têm seu mundo à parte, apenas decifro
como eles são e brincam, por que eu entendo
muito dessas brincadeiras de menino.

Dois de meus brinquedos são rivais,
Macaco-papagaio e Doidin Piqueno.
Macaco-pagaio fala por si mesmo, é um macaco
que tem a cabeça e a fala apapagaiadas,
e é burro sem nem precisar ser quadrúpede:
a burrice tá na cabeça, não nas patas.
Doidin Piqueno é um elefante vestido de palhaço
que não vai crescer nunca e vive sorrindo,
ele sempre me contagia com sua alegria
e a trombinha branca e pequena como ele,
e aquele seu bonito chapéu azul.

Macaco-papagaio só diz coisas sérias,
porque ele sendo burro não inventa nada,
só faz copiar o que os outros dizem,
e mesmo suas piadas são sem graça.
Ele é esperto e outros bichos, mais fortes,
o tratam muito bem, pois sabem
que ele vai sair repetindo suas verdades
com a eloqüência e a seriedade
que só um macaco-pagaio saber dar.

Doidin Piqueno é meio esmolambado
porque é um brinquedo mais antigo,
e sacaneia com Macaco-papagaio e tudo
que ele diz e faz, ridicularizando seus amigos.
Será por isso que Doidin Piqueno não pode
ficar grande? Os amigos do Macaco-papagaio
são muito poderosos, e as coisas sérias
sempre são falsas porque convencem
todo mundo que são melhores que as outras.

Mas eu nem ligo, por que sei que quem manda
mesmo é Tubarãozin: ele é um peixe
bem grande que quando os outros brinquedos
querem brigar, ele chega e tudo se acalma.

Nanin.

XXVII

UM ESTRANHO, NANINHO!

Estranho, muito estranho aquele rapaz
amigo de Rosinha que um dia conheci.
Morara um tempo lá na terra de vovô-elefante
e muita gente gostava dele e o achava bom,
mas um dia ele não quis mais ficar lá
porque nossos bravos protetores da força policial,
sempre honestos, pacíficos e educados,
e que nunca reagem como macacos violentos
quando alguém diz uma piadinha com eles,
disseram que ele fumava a tal da maconha.

Virgem Nossa Senhora, Credo em cruz, Ave Maria!
Isso só pode ser uma coisa perigosíssima,
porque deram muito nele os nossos bravos
protetores da força policial que nunca bebem,
nem roubam ninguém, nem vendem nada de ruim,
e farejam como cachorros o cheiro de coisas nefastas,
sempre eivados da vontade de fazer o bem,
e nunca pedem uns trocados por fora
nem gostam de aparecer nos jornais
pra impressionar as empregadinhas ou as filhas delas.

Sei que ele não quis nem quer mais morar lá,
o rapaz que era mesmo muito estranho
e só podia ser meio doido como disseram,
porque inventou, lá da cabeça dele,
aquela cabeça que as mulheres gostam muito,
essa história de que os homens quando se sentem
ameaçados em grupo sempre reagem como animais;
pois é claro que nossos homens da força policial
nunca agem assim como feras violentas,
porque decerto descendem dos deuses
que forjaram o raio e o trovão.

E eu confirmei que ele era mesmo meio doido
naquela festa que fui aqui na minha cidade,
uma festa alegre que tinha muita gente
lá da terra sertaneja de vovô-elefante,
quando descobri que ele sequer sabia
pronunciar as palavras direito e até inventava
palavras novas, essas coisas de maluco.

Umas moças, e mulheres casadas também,
inventaram uma brincadeira que era
pra dizer qual tinha sido o melhor canto,
o melhor lugar que tinham ido
e se guardava ainda com saudade
lá da cidadezinha sertaneja de vovô-elefante.
Quanto chegou a vez do rapaz estranho falar,
ele olhou assim pra cima como um louco,
e só depois de pensar assim um pouco,
disse que sendo ele um terrível maconheiro,
o melhor canto que ele tinha estado lá
fora: "A Boca... A Boca de Sumo!"

Pra entender doido tem que ser
doutor ou mulher, porque eu não
entendi nada, e não sei a razão pela qual
as mulheres caíram na gargalhada.
Quando perguntei a Rosinha, ela disse
que isso era só uma besteira, uma brincadeira,
porque ele era estranho, "Um estranho, Naninho!"

Nanin.

XXIX

OS POETAS

Estranhos, também lembram os loucos,
às vezes, só uns poucos talvez
assim se chamem, eles cantam
como pássaros, canários do reino,
e suas brigas são raras como as de galos
de briga, mas existem, sim, brigas verdadeiras
entre poetas, eu mesmo já vi
um cantador de viola botar outro pra correr.

Uma vez por mês, quando a lua redonda
e inteira doura e prateia o céu da noite,
lá em casa se reúnem alguns para brincar
e cantar e beber e gargalhar, e também brigar,
uns se irritam se seus cantos ou discursos
não forem bem apreciados.

Eu rio muito dos poetas, dos dois tipos,
do que canta com a viola
e daquele que também canta com livro
mas sabe mais representar um drama
ou então fazer um discurso.
Eles são diferentes. Os que cantam
com a viola são mais simples e bebem
e comem qualquer coisa, um dia ouvi
um deles elogiando a buchada uma moça
e manifestando interesse por sua rabada,
e já notei que suas bebidas são de todas as cores.
Os que só trazem livros se vestem melhor
e são mais exigentes com comida e bebida,
as cores de suas bebidas têm que ser
vermelha ou amarela com gelo dentro.
Eles se exaltam mais nos discursos,
mas não sabem cantar, o que significa
que os que cantam também não precisam
saber ler o que está escrito nos livros.

Uns dizem coisas de loucos,
também com palavras novas
ou das velhas decerto com outro sentido
até mesmo que me é ainda desconhecido,
um dia um me disse que cantava
pra poder comer mulheres melhores,
e caiu na risada dessa loucura
porque notou que eu sabia que ele não
era um índio daqueles que comem gente.

Aqueles que trazem seus livrinhos
são os que se julgam mais importantes,
já notei, e eles se zangam se a gente disser
que não gostou daquela porcariazinha.

Mas eu nem ligo,
porque sei que se me metesse a ser poeta,
seria o melhor de todos.

Nanin

XXX

OS LIVROS

Quando eu descobri os livros, pensava
que os mais interessantes eram aqueles
com muitas imagens e poucas letras,
porém, à medida que crescia um pouco,
fui percebendo que as imagens mais bonitas
estão escondidas nas palavras.
É preciso descobri-las aos poucos,
senão perdem a graça, é como tirar a roupa:
aquelas moças que já chegam quase nuas
têm menos valor que aquelas que só
se mostram pouco a pouco.

Há fantasmas deliciosos nas letras,
e nos corpos a serem decifrados.

Se um dia eu escrevesse um livro,
ele teria pouquíssimas imagens, quase nenhuma,
mas seria bem cheio de muitas palavras.
Um livro então é um tesouro de palavras.

Notei que as meninas enfeitam muito
o que escrevem, como também seus corpos,
mas há uma diferença na esfinge a ser decifrada:
os enfeites, aquelas floresinhas, os bichinhos
que pulam ou passam ou voam ou se mexem
sem saírem do lugar, quase sempre servem
apenas de ilusáo boba, pra mascarar
a quase ausência de tesouros nas palavras.

A floresta de símbolos, me contou Charles
e, já disse, Tia Maria também,
é cheia de sons e odores e imagens
que nos transportam por sensações novas,
como guiados por um fantasma que o tempo
escondeu ali, e, quando o encontramos
nos encara com olhares familiares.
Já tínhamos estado ali antes?

Os bons livros também não podem
só repetir o que já foi dito nos outros,
é preciso criar sempre novas imagens,
ou resgatar as proibidas, libertando-as
dos grilhões da mesmice, do preconceito,
de todas as imposições da ignorância.

E embora haja livrinhos pequenos bons,
eles sempre caberiam num maior,
num livrão bem grande, mar cheio de vida,
jardim de flores incensadas, Éden proibido,
festa de bruxas e dragões, duendes e fadas,
divina comédia ou brincadeira trágica
que nos erga bem alto, uma montanha mágica.

Nanin

XXXI

A PAIXÃO

A primeira vez que eu ouvi essa palavra,
Paixão, foi da boca de Cristina,
aquela boca tão bonita que ela tem,
conversando lá com Rosa e outras amigas.
Falavam baixinho, cochichando, mas ouvi
escondido fingindo não ouvir nada.
Diziam que a paixão era uma coisa
que cegava as pessoas, ou as obrigava
a fazer coisas impensadas, como uma doença.

Aí fui pensar e descobri que eu já tinha
sido acometido também por aquela doença
algumas vezes, mas em mim era diferente:
ao invés de cegar, me fazia ver mais,
pois tinha a impressão de ver a minha preferida,
aquela que causara a doença,
aparecendo em todos os lugares
para logo desaparecer, digo, se trasnformar
em outra, quando eu olhava direito.

A paixão não cega, na verdade engana
porque deixa o mundo mais bonito,
e a gente até acorda mais cedo e disposto,
com mais vontade de viver.
Ao mesmo tempo em que é uma doença,
ela é também um remédio,
mas dizem que remédio mata e cura...

Há pessoas que morrem ou matam de paixão.
Morrer é deixar de existir aos nossos olhos,
ir pra outro lugar bem longe onde ninguém vê,
mas deixando aqui os retratos e a saudade.
Matar é fazer morrer alguém, coisa
que não bonita mas todo mundo tem vontade
de fazer de vez em quando, mas depois passa
e a gente pode até vir a gostar de quem teve raiva,
e assim a gente vai crescendo.

As danadas sabem fazer
a gente se apaixonar por elas.
Primeiro é o rosto, o rostinho bonito,
que finge ficar triste se contrariadas,
que abre no sorriso um mundo multicor,
que nos deixa muito preocupados
se a gente fizer ou disser o que não gostam
porque o rosto deve ser sempre sorridente,
que tem nariz, cabelos, lábios e promessas,
e que nos molham com boca e olhos,
lubrificantes que são do motor da vida.

Notei que é sinal de burrice matar ou morrer
pela paixão, porque ela só finge ser uma doença
mas é a favor da vida, ela que a nutre
com á agua que escorre da boca e dos olhos.
A vida é como uma planta.
Daí que as pessoas que morrem de paixão
podem até ser respeitáveis, mas nunca aquelas
que matam: eis a diferença entre gente e bicho.

Agora só falta dizer que se a paixão vem
pelos olhos, e no toque da pele que reside
toda a magia, pois a amada fica sendo nossa.
Mas ela tem que deixar, viu?

(Não diga a ninguém, mas descobri
que elas sempre deixam, é só saber chegar.)

Nanin


XXXII

A POESIA

"Ai que saudades que eu tenho
da aurora da minha vida..." (*)

Quando eu tinha oito anos, conheci
a Poesia, quase meio de abril, não
me lembro bem o dia, o açude estava
cheio, lá no céu luar luzia um ouro igual
às comidas que a minha mãe fazia lá
na casa de vovô, quando tudo era alegria.

Sim, foi depois do jantar que a outra
Tia Maria então resolveu cantar uma história
que sabia, e pensei estar a contar
a vida que eu vivia.

Se eu pudesse voltar àquele tempo
feliz, quando vivia a nadar e brincar
no chafariz, muita história ia inventar,
mas sem crescer o nariz, sanfona
iria tocar, e Beija-flor ou Concriz iriam
irradiar um jogo de futebol que, só para
ser melhor, tinha um doido por juiz.

Pois a Poesia é criar imagens
só com a escrita, Rosinha vive
a tentar com sua letra bonita, seu
caderno a enfeitar, mas já notei,
se irrita se eu apenas falar
que a sua seda é chita.

Alguém precisa dizer, sinceramente,
às meninas, que seus cadernos bonitos
podem ser tudo, mas mina do tesouro
da Poesia é palavra, ritmo e rima.

A Poesia é como Deus: para quem
sabe da prece, pode até se mascarar,
mas ela um dia aparece, esse dito,
esse não dito, essa mal dita bendita.

Nanin


(*) Pus a epígrafe de Casimiro de Abreu,
em Meus Oito Anos, por achar bem cabível.
Confesso que gostei do escrito. Absaam

XXXIII

OS DOIDOS

Os doidos são pessoas que, dizem, perderam o juízo.
O juízo é uma bola que a gente tem dentro da cabeça
e que ora cresce, ora diminui, assim como a lua,
e os doidos fingem ter sua lua mingaunte na cabeça,
mas na verdade eles vivem na lua cheia,
prisioneiros que são da procela de seus sentimentos.

O juízo existe pra que a gente aja com honestidade,
que é apenas a capacidade de ser verdadeiro e bom.

O juízo e a honestidade nem sempre andam juntos,
mas deveriam andar. Os doidos, me parece, são muito
honestos, e quando em contato com pessoas desonestas
fingem perder o juízo pra não perderem a delicadeza.
Andam maltrapilhos, exagerados, quase nus às vezes,
e falam coisas sem sentido só pra convencer os outros
que estes são mais importantes que eles, mas não são,
não, os loucos são a reserva de humanidade que nos resta.

A palavra Doido vem de Doído, é um sofrer que finge
apatia por delicadeza, qualquer pessoa hoje sabe disso,
mas isso só pode ter sido dito por outro doido,
porque só os os doidos criam, os que não são
doidos só fazem repetir ou querer explicar as coisas
que os doidos inventam, eles não têm coragem
ou talvez sua imaginação seja bem pequenininha,
porque o pensamento deles não é casa de passarim.

Muliquim era um doido que todo mundo tinha medo,
mas me tratava bem só porque eu chamava ele
de senhor; Xixica Doida, coitada, era uma doida
burra e tirava a roupa quando os outros meninos
a insultavam na rua, mas eu só fiz olhar pra ela
uma vez e ela se vestiu, envergonhada com meu olhar;
João Doido vivia calado e parecia raivoso, mas
um dia eu fui conversar com ele e descobri que
ele era um filósofo muito inteligente; Macho Cano
era um doido verdadeiramente lunático, tinha fases
que ficava alegre demais, outras raivoso, decerto
algumas triste, mas tem tempo que deixava de fingir
que era doido e passava a fingir que era normal.

Normal é ser anão de sentimentos, é fazer tudo
igualzinho ao que os outros fazem. O doido mais doido
que eu já vi foi um velho num teatro, um doido da gema,
ou seja um doido até no nome: seu nome por certo
era pra ser Arthur, mas ele se chamava de Artô,
Toím Artô, o doido mais arteiro que já vi. Ele disse
uma vez algo que as pessoas não têm coragem
de dizer, falando de certas profissões respeitáveis:
que era quase impossível ser profissional respeitável
e e uma pessoa honesta ao mesmo tempo.
Já notei que ele tinha razão.

Ah, vou parando por aqui, esse escrito tá muito longo,
e meio solto, parece até meio doido, mas deve
ser assim mesmo, pra poder ser verdadeiro.

Nanin

XXXIV

FAZER ARTE

Descobri que fazer arte é brincar ainda, mas
já com certo conhecimento de como são
as brincadeiras, inventando os próprios brinquedos.

Você pode traçar um risco, inventar
uma história, ou dançar, cantar, gritar,
sair correndo, pode até grunhir impropérios,
mas deve fazê-lo minimamente
com algum método para as pessoas
entendidas. Não obrigatoriamente os que sabem,
mas os que desejam saber, precisamente.

Admiras porventura um farrapo humano?

- Sim, mas não minto ao ponto de dizer
que toda arte é admirável, é preciso talvez
uma certa classe, mesmo na miséria mais
absoluta, aprendi com a amiguinha Antoinette,
personagem principal de um quadro pintado
ao som de cabeças que caem, riscando o chão
numa dança de todas as cores, latidos, uivos,
é correr com gato e cachorro, olhando pra trás
pra ver o astro que esse céu doura,
do próprio corpo uma sombra sutil.
Imagem muda, pra poder melhor falar aos sentimentos.

Por tudo isso é que, mesmo penso e sufocado
como soem ser os seres pequenos e doentes
entre os gigantes tribais, ainda respira, rei,
o ar das alturas, pois lá do alto, sei-o,
não sem muita certeza porque sou menino,
que talvez toda arte se estruture qual poesia.

És cultura verdadeira, se estrutura de palavras.

Nanin

XXXV

A FALTA DE AR

Fiquei acamado muito tempo
por causa dela,
ela é a culpada, a terrível falta
de ar.

O pé-de-atra até me dava uma coisinha
pra cheirar. No começo era até bom,
respirava melhor, mas depois não servia de nada,
parece até que piorava a terrível falta
de ar.

Esse negócio de cuidar de menino
parece ser coisa mais apropriada pra mulheres.

Foi aí que apareceu doutora Márcia, Tia Maria
já sabia que ela existia e disse a papai,
e eu fui até ela porque o dinheiro dele
já quase se acabava com o sacana
que me tratava de asma, eu menor.

Doutora Márcia também me lembra
um pé-de-planta, um pé-de-manga,
até com frutos que imagino saborosos,
mas não posso chupá-los, ou quem sabe
extraio mesmo deles algo para meu deleite?

Parece que o ar ficava preso nos pulmões,
sei lá, e dava aquele batuque de escola de samba
de bateria atrapalhada, aquele suor frio nas mãos
de gelo, molhadas, um mal-estar horrível, desespero.

Ao mesmo tempo havia momentos
de felicidade, em que até me perguntava
como podiam ir embora tão rapídos.

A doença, descobri, acontece quando a gente
enfrenta uma situação desconhecida, um inimigo
às vezes oculto, inclusive um bicho invisível,
bem pequeninho mas muito perigoso,
e quer nos destruir mais cedo.

Mas ela também tem seu lado de nos fazer
descobrir coisas fantásticas que jamais
saberíamos se não tivéssemos
aquela doença.

Nanin

XXXVI

OS DOUTORES

Nem todos são grandes homens,
há também uns pequeninos como eu
ou como Rosa, baixinha e sabidinha.

Os doutores são pessoas em quem a gente deve
acreditar que sabe mesmo alguma coisa,
tanto de saúde como de doença,
como também de edifícios e pontes,
ou mesmo sobre bichos ou plantas,
ou como ganhar dinheiro e nos livrar de embaraços,
ou ainda de inventar histórias que pareçam
tanto com a verdade que convençam os outros,
como também os doutores que sabem ensinar,
os doutores dos números e das palavras.

Mas um menino pode saber mais
que um doutor, descobri. Eu enganei um doutor.
Porque não gostei dele, ele pensava que sabia
mais do que eu, muito, e vinha ouvir com o fone
o que estava dentro do meu peito, mas não sabia
ouvir a música e errou dizendo que eu tinha asma,
mas era apenas uma falta de ar de origem
estranha, coisa de menino genioso,
como disse a doutora mágica.

A doutora mágica veio com o fone dela,
com aquele telefone redondo que escuta o peito
e ouviu a música, e parece que gostou do que ouvia
e sorriu, e perguntou se tinha mais coisa e eu falei
e mostrei a ela aquela pintinha
que tinha nascido ali na minha pele,
lá naquele canto escondido, e ela riu de novo.

Na cabeça, ela disse sorrindo que era o problema,
e eu fui falando e rindo também e ficando bom,
e melhorei, tô curado! Só preciso ir lá contar
histórias que às vezes até invento. Eu não
digo o nome dela pra não ir muito menino tentar
tomar meu lugar, ou me fazer esperar muito.

Nanin

XXXVII

O AMOR

Primeiro notei Rosa diferente, sozinha pelos cantos
pensativa, como a imaginar sonhando acordada;
logo ela gargalhava, outras vezes ficava triste
de repente e, quando a vi chorar, notei ser algo sério,
e fiquei sabendo que era o tal do amor
quando perguntei a ela, cochichando
que estava com mais algumas amigas,
prestes a sair pra um passeio, coisa também
muito freqüente agora, pra encontrar alguém.

Corri aos livros, pois as explicações
que as meninas me deram do négócio
me pareceram só aquilo que elas mais dizem,
simples baboseiras de menina: precisava saber
mais, quem sabe um dia isso acontece comigo?

Só depois de ler muita baboseira de menina
também nos livros, coisas do tipo:
sentido da vida; artíficio da natureza
pra propagar a espécie; encontrar a alma-gêmea;
mais sublime dos sentimentos; a herança do Cristo;
aquilo que permite a paz; o que nos diferencia
afinal dos outros bichos; procriar; renunciar, e outras
coisas semelhantes, simples e muito vagas,
descobri finalmente a verdade.

O amor é uma doença. Doença estranha e demorada,
que nos é transmitida de hábito por uma menina,
mas pode ser por qualquer outro tipo de pessoa;
que nos traz pensamentos estranhos e até imagens
falsas; que nos faz acordar cedo e dormir tarde;
que tira nosso apetite; que nos quer carregar o tempo
todo pra perto de quem causou a doença;
que nos faz ter raiva de quem toca naquela pessoa,
muita raiva; que pode nos fazer matar ou morrer.

Fiquei com muita pena de Rosa quando soube disso,
mas ela não quis cosolo nem conversa comigo,
já ia sair de novo, iludida!, com suas amigas,
à procura de quem receio saber, e isso mais me aflige.

Corri pro meu quarto e rezei. Pedindo pra nunca
acontecer comigo adoecer daquela doença.

Nanin

XXXVIII

O MEU LIVRO

As doenças ensinam muito à gente,
não são só os médicos que ganham com elas,
a diferença é que eles podem cobrar...
Também, coitados, têm que viver disso!

Pois aquela doença me pegou,
sim, caí de amor por uma menina que conhecera
há uns dias, filha de amigos de mamãe.
Fizeram muita propaganda dela,
que ela era bonita e legal e eu iria gostar dela,
mas eu não queria deixar de gostar de mamãe
e de papai e de Rosa, por isso primeiro tive raiva.
Mas quando a vi senti a coisa estranha,
não conseguiria ter raiva daquela menina.
Ela é bonita e muito alegre e boa,
a pele muito macia boa de abraçar
e passar a mão aqui, ali e acolá.
Um bom brinquedo, um brinquedo muito sabido.

Mostrei a ela meus escritos e ela riu muito,
sua boca mostrando uns dentes muito brancos,
mas era eu que comia com eles,
pois ela ria pra mim, me nutrindo de alegria.
Ela disse que eu tinha escrito um livro
de menino, e aí me deu um abraço.

A gente agora se encontra todo dia
e brinca muito e corre e ouve música e lê
sem precisar de estudar, ela é mais adiantada
do que eu, e a gente também faz outras coisas,
coisas de namoro molhado que eu não vou ensinar a você.

De forma que eu agora não vou mais escrever,
descobri coisa mais interessante pra fazer,
não vivo mais trancado inventando outras doenças,
coisa que não tem graça nenhuma.
Ela me falou que há livros de poesia e de contos
e de romance, e que o corpo da gente é também
um livro, e a gente pode construir nosso romance.

É um pequeno livro de menino, eu sei,
mas como aprendi com ela umas coisas de gente grande
que ela me ensinou com sua boca molhada,
vou pôr agora, aqui no final, a dedicatória.
Na minha opinião nome dela devia ser a Alegria
porque ela está sempre alegre e deixa tudo feliz
quando chega rindo e querendo brincar,
mas vou dizer o nome verdadeiro
embora com ciúmes porque um aventureiro
pode se arriscar, mas como sei que não adianta
que ninguém vai tomá-la de mim,
eu digo: o nome dela é Laetitia.

Nanin

 Sempre pelo dedicado servo do Menino, Antônio Adriano de Medeiros