quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Cantadas de Cangaceiro



"Há quatro coisas no mundo
que alegra o cabra macho;
dinheiro e moça bonita,
cavalo estradeiro baixo,
clavinote e cartucheira
pra quem anda no cangaço."

              Luís da Câmara Cascudo



Dois fatos recentes me levaram ao cangaço: adquiri alguns livros de Câmara Cascudo, e sua leitura sempre pode, em almas presdispotas, levar alguém ao Cangaço; e outra, quinze dias de vadiagem (não vá trocar as letras: sou cangaceiro, sou macho!) que ganhei, para conhecer melhor certo Mal, que já tem nome, tratamento e cura, superba revelação de um sábio da hematologia, o Dr. Luís Fábio Botelho, aqui de João Pessoa, e se não revelo ainda o nome do Mal, tendo revelado o do Bem, é que o diagnóstico definitivo depende do resultado de mielograma.

Fiquei sabendo que "cangaço" vem de canga, cangalha, vez que o cangaceiro era obrigado a carregar consigo,  ou nas costas  de um jegue ou cavalo ou ser afim (foi ato falho a invoação de anjos para proteger os bandoleiros), quando não nas próprias costas, todos os seus pertences. Que a admiração do sertenejo não era pelo fato de ser o cangaceiro um matador, mas sim um valente, um bravo, e que só eram admirados os cangaceiros justiceiros, aqueles passaram a viver debaixo do cangaço devido a um crime que sua família sofrera, e que não foi reparado pela justiça do sertão ancestral. Que os cangaceiros bandidos simples não eram admirados, ou, aí quem diz sou eu, se o eram um pouquinho, tal admiração era herdada por solução de continuidade com homens da estirpe de Antônio Silvino ou Jesuíno Brilhante, respeitadores de donzelas, protetores dos seus, que não roubavam à toa, só dos "ricos maus", etc.

Para se ter uma idéia de como o imaginário sertanejo do  início do século XX admirava, respeitava, louvava e mesmo desejava o cangaceiro, vejamos o verso seguinte (todos os versos são retirados de dois livros de Cascudo, Vaqueiros e Cantadores, e Dicionário do Folclore Brasileiro; apenas os cordéis finais são meus):

Criando Deus o Brasil,
desde o Rio de Janeiro,
fez logo presente dele
ao que fosse mais ligeiro:
O Sul é para o Exército!
O Norte é pra Cangaceiro!


CANTADAS DE ANTÔNIO SILVINO

O mais respeitado dos cangaceiros foi Antônio Silvino, o qual entrou para o cangaço para vingar a morte do pai. Aqui no blog há uma história interessante e verdadeira sobre Antônio Silvino, na página Causos e Causos; ressalvo que hoje já sei, revelado por historiadores e jornalistas do Seridó, que o lugar para onde Antõnio Silvino e o grosso do bando fugiu foi a Gruta da Caridade, ainda em Caicó, já pras bandar de Jucurutu.

Eu tinha catorze anos
quando mataram meu pai;
eu mandei dizer ao cabra:
Se apronte que você vai...
Se esconda até no Inferno,
de lá mesmo você sai...

Foi ai que resolvi
este viver infeliz.
Olhei para o rifle e disse
- Você será meu juiz!
Disse ao punhal - Com você
eu represento o país!

Com quinze anos eu fui
cercado a primeira vez,
vinham catorze paisandos,
desses inda matei seis...
De dez soldados que vinham
apenas correram três...

Cascudo nos fala da exaltação dos cantadores pelas façanhas do grande heró cangaceiro:

Cai uma banda do céu,
seca uma parte do mar,
o purgatório resfria,
vê-se o inferno abalar.
As almas deixam o degredo,
corre o Diabo com medo,
o Céu Deus manda trancar!

Admira todo mundo
quando eu passo em um lugar.
Os matos afastam os ramos,
deixa o vento de soprar,
se perfilam os passarinhos,
os montes dizem aos caminhos
- Deixai Silvino passar!

Assim mesmo inda há lugar
que eu passando tocam hino,
o preto pergunta ao branco,
pergunta o homem ao menino:
- Quem é aquele que passa?
E responde o povo em massa:
- Não é Antônio Silvino?

Pergunta o vale ao outeiro,
o ima á exalação,
o vento pergunta á terra,
e a brisa ao furacão,
respondem todos em couro:
- Este é o Rifle de Ouro,
Governador do sertão!


Antônio Silvino dizia ter encontrado uma fórmula mais lógica para a justiça lenta e incompleta, além de praticamente ausente nos ermos saartânicos d'antanho - Notar que elementos da Justiça Oficial estão presentes na sentença Infalível do Meritíssimo do Cangaço:

No bacamarte eu achei
leis que decidem questão,
que fazem melhor processo
do que qualquer escrivão.
As balas eram os soldados
com que eu fazia a prisão.

Minha justiça era reta
para qualquer criatura,
sempre prendi os meus réus
numa cadeia segura,
pois nunca se viu ninguém
fugir duma sepultura...

E se chegava ao ponto de implorar mesmo ao Grande Cangaceiro e seu bando proteção de "serviço social" - Seriam hoje, pois, bastante úteis, e ainda mais desejados e importantes, pois...

O forte bate no fraco,
o grande no pequenino,
uns se valem do Governo,
outros de Antônio Silvino.
O rifle ali não esfria
- Sacristão não larga sino!


Preso a 28 de novembro de 1914, nos diz Câmara Cascudo, que Antônio Silvino se alfabetizou na cadeia do Recife. Que educou os filhos, um dos quais foi oficial do exército. Cangaço por Cangaço...
Que o Rifle de Ouro tornou-se um homem de bem, e foi indultado pelo Governo Federal a 19 de fevereiro de 1937. "Velho, encanecido, risonho, mas impassível, deixou a prisão, Herda-lhe a fama o sinistro Lampião, cangaceiro sem as tradições da valentia pessoal, de respeito ás famílias que sempre foram apanágios do velho Silvino."


CANTADAS DE LAMPIÃO E OUTROS CANGACEIROS, MENORES

Assim como sucedeu
ao grande Antônio Silvino.
sucedeu da mesma forma
com Lampião Virgulino,
que abraçou o cangaço
forçado pelo destino.

Porque no ano de Vinte
seu pai fora assassinado
da Rua da Mata Grande
duas léguas arredado,
sendo a força de Polícia
autora deste atentado.

Lampião desde esse dia
jurou-se vingar-se também,
dizendo - foi inimigo
mato, não pergunto quem...
Só respeito nesse mundo
Padim Ciço e mais ninguém!

Tenho a honra novamente de abrir aspas para Luìs da Cãmara Cascudo narrar fatos sobre o ataque de Lampião e seu bando a Mossoró, a maior cidade que aqueles cavaleiros ousaram atacar, sonhando com as riquezas, sendo as principais as mulheres belas, cheirosas, macias.

"Quando Lampião atacou Mossoró, em 13 de junho de 1927, oa cangaceiros viajavam a cavalo. ... Galopavam cantando, berrando, uivando, disparando fuzis, guinchando, tocando os mais disparatados instrumentos, desafiando todos os elementos. Derredor os animais despertavam espavoridos. Galos cantavam, jumentos zurravam, o gado fugia. Neste ambiente de tempestade a coluna voava, derrubando mato, matando quem encontrava, alumiando com o fogos da depredação inútil sua caminhada fantástica. Mpssoró defendeu-se furiosamente. Deixaram que Lampião entrasse no âmbito da segunda cidade do Estado e tiroteasse diante das ruas iluminadas a luz elétrica e povoadas de residências modernas. Indicarma-me do Alto da Conceição onde os cangaceiros surgiram cantando Mulher Rendeira.

No Cemitério de Moossoró vi as pequenas covas de Jaraca e Colchete, tombados no ataque. Colchete morreu logo. Trazia várias orações e medalhas ao pescoço e uma efígie do Padre Cícero. No pés, meias de seda. Jararaca ainda durou vários dias, ferido de krte. acuado como uma fera entre caçadores, impassível ao sofrimento, imperturbável na humilhação como fora em sua existência aventurosa e abjeta. Morreu como vivera - sem medo. Herói bandido, toda a valentia física e a resistência nervosa da raça preadora de índios e dominadora dos sertões reviviam nele, epoçado de sangue, vencido e semimorto. Aquela força maravilhosa disperdara-se, orientada para o crime, improfícua e perniciosa." (LCC, Vaqueiros e Cantadores).

Do Negro Vicente:

Eu sou negro ignorante,
só aprendi a matar,
fazer a ponta d afaca,
limpar rifle e disparar,
só sei fazer pontaria
e ver o bruto embolar...

Uma notícia do tal João Guabiraba

Esse tal João Guabiraba
no dia em que foi cercado
pôde cravar suas presas
na graganta de um soldad.
Fez tanta força nos queixos,
morreu e ficou pegado!

E se encontra esse lamento do cantador José Patrício, evocando os saudosos tempos que os bandos de cangaceiros abundavam e aterrorizavam, enchendo de medo e de estranho orgulho as feiras paraibanas:

Então me diga: onde estão
os valentóes do Teixeira?
Onde estão os Guabirabas,
Brilhantes, de Cajazeiras?
Aonde estão estes homens
que não os vejo nas feiras?

Por fim, uma lição pedagógica de como deveria ser o proceder ideal do bom cangaceiro, do bandoleiro pós-graduado, phD em privações e resistência, e mestre na arte de matar com reprováveis maestria e economia:

Já ensinei a meus cabras
a comer de mês em mês.
Beber água por semente,
dormir no ano uma vez...
Atirar em um soldado
e derrubar dezesseis!

Passamos a mostrar agora dois cordéis sobre cangaceiros de nossa modestíssima autoria.

O primeiro cordel faz parte do Zoológico Fantástico, o qual travou na revisão ortográfica, mas certamente sairá em breve, terceiro capítulo, Sabá dos Cordéis, e se chama O Entrevero de Maria Bonita com Padim Ciço Romão; narra uma visita sorrateira e noturna que a mulher de Lampião faz a Padim Ciço, supostamente após o encontro entre os dois no qual Lampião se tornou Capitão do Exército Brasileiro por unção do Padre Cícero; o santo beato, certamente zangado ainda com o cangaceiro pelo fato de este, apenas seis quilômetros após sair do Juazeiro já ter decidido voltar ao cangaço, traindo pois as virtuosas intenções de ser matador de comunista, enfrentando o cangaço marxista de Luiz Carlos Prestes, a princípio se nega a perdoar Lampião e lhe conceder perdão e bênção novamente, porém, não por isso, mas após receber valiosos presentes que o cangaceiro mandara, muda de lado de novo, e mais uma vez se mostra bom pai para o bando de Lampião.

Na dedicatória há um trocadilho, vez que Maria Bonita é o nome da mulher do cangaceiro que atacou Mossoró, lembro que havia e há mulheres mais belas nas cidades atacadas pelo bando cangaceiro.

Voc~e chegou até aqui? Merece um prêmio! Pois então vamos tratar da parte mais nobre da postagem destas Cantadas de Cangaceiro. Tá pensando o quê? Até agora servimos só os aperotivos da entrada, se bem que com saborosos tomates secos... Mas no cordel derradeiro, Do Breve Encontro de Jesus com Lampião, há um diálogo entre os dois protagonistas que até mesmo ao autor surpreendeu, tão rara a beleza ali encontrada.

Partindo do princípio dos sábios da reparação do erro, do eterno reler a obra para aperfeiçoá-la, podemos imaginar que àqueles que foram vítimas de morte cruel no que toca à degradante violação do corpo (decapitados, estraçalhados, castrados ou mutilados de quaisquer espécies) fazem jus a uma reparação misericordiosa no Reino dos Bons e Justos, escrevi o poema referido. Sim, porque acredito que o Bom Jesus deve ter tomado uma providência nesse sentido, e aí surgiu o aludido Decreto da Alma Martirizada.

"Abecar" é um termo que significa "pegar pela beca", ou seja, segurar pelo colarinho. Beca é o mesmo que paletó. O cara abeca o outro como quem mostra superioridade, "tá pensando o quê, seu cabra!"

"Macaco" - sempre é bom lembrar que era assim que os cangaceiros tratavam soldados e militares em geral. Lampião portanto pode assim chamar a São Sebastião.

Cumpre informar ainda que foram onze cabeças as arrancadas quando da morte de Lampião em Angicos, e que todas ficaram expostas num museu em Salvador durante muito tempo.



No endereço a seguir há um vídeo verdadeiro com a presença de Lampião, a Bonita e seu bando

http://www.youtube.com/watch?v=A8RWSw25KKk


absaam!


O ENTREVERO DE MARIA BONITA COM PADIM CIÇO ROMÃO


                  Às marias mais bonitas ainda, de Mossoró


No tempo em que padim Ciço
reinava pelo sertão,
o povo fazia fila
em dia de Confissão
para contar-lhe os pecados
e receber seu perdão.

A mulher de Lampião
vivia com cangaceiro,
mas tinha em seu coração
amor pelo companheiro,
e muita fé em Jesus
- filho do Deus verdadeiro.

Uma noite ao Juazeiro
ela chegou escondida
e procurou Padre Cícero
querendo ser atendida,
pra confessar os pecados
que cometera na vida.

- "Você tá arrependida
dessa vida de pecado?"
- perguntou o santo homem
num tom de voz irritado -
e ela lhe respondeu:
- "Meu padim abençoado,

por um acaso é errado,
e contra as Leis do Senhor,
a mulher viver ao lado
do homem a quem tem amor?
Pois vivo com Virgulino
por amá-lo com fervor!"

- "Ora, me faça o favor...
Eu não quero dar risada!
Vive em meio aos bandidos,
leva vida desregrada,
e diz que é por amor?
Mas é muito descarada!

Uma bandida safada
é o que a senhora é!
E vem pedir meu perdão,
me dizendo que tem fé?
Vá atrás de seus irmãos
da turma de Lucifé!"

-"Mas padre, sendo mulher
e amando Virgulino,
estar sempre ao lado dele
não devo ter por destino?
Por amor, uma mulher
comete até desatino...

Pra vir ao mundo o Menino,
Maria deixou José
e se entregou a Um Outro
com muito amor e com fé:
por aí tens um exemplo
de como é a mulher!"

- "Blasfêmia é o que isso é,
descarada, vil bandida!
Por querer ser comparada
em amor à Escolhida,
tua alma no Inferno
vai vagar sempre, perdida!

Maria foi concebida
com amor e sem pecado,
enquanto você se entrega
a um bandido safado,
assassino, chantagista,
ladrão, cruel e tarado!"

- "O senhor tá enganado
sobre meu bom Lampião:
ele é pessoa de fé,
homem de bom coração;
só rouba de quem é rico.
Ladrão que rouba ladrão...

Vim aqui pedir perdão
e confessar meus pecados,
mas o senhor fica estranho
e vem falar dos tarados...
Por acaso condenou
algum dos padres viados?"

- "Se existem irmãos errados,
deve-se à fraqueza humana...
Nós todos somos falíveis
pois a carne é soberana,
e temos o Purgatório
pra passar uma semana...

A mim você não engana
com seu arrependimento:
é melhor voltar bem cedo
lá pro seu acampamento.
Vá se consolar nos braços
do cangaceiro nojento!"

- "Ô padre, espere um momento:
Virgulino é capitão!
Esqueceu que ele um dia
pôde ajudar à Nação?
Naquele dia era bom,
mas hoje não tem perdão...

Vim aqui com devoção,
mas o senhor, orgulhoso,
tá me botando pra fora
como um cachorro raivoso?
Parece que Padim Ciço
tem parte é com o Tinhoso...

Virgulino é generoso
e te mandou oferendas:
trouxe vestidos de chita,
muitos trabalhos de renda,
e mais moedas de ouro
qu’ele pegou nas fazendas...

Será que nem essas prendas
o senhor vai aceitar?"
- "Olhe, Maria Bonita,
eu posso até confessar,
mas não sei se meu perdão
o Senhor vai aceitar.

Prepara-te pra rezar
por bem quatro ou cinco dias,
jejuando ajoelhada
e padecendo agonias:
a Salvação é difícil,
já ensinava o Messias!"

- "Eu conheço as profecias
que nos ensinou Jesus,
li todos ensinamentos
do Grande Mestre da Luz
cuja humildade santa
O fez aceitar a cruz.

Porém, padre, qual supus,
Foi confissão demorada,
o tempo foi-se passando
- alcançamos madrugada -
daqui a mais um pouquinho
já vai romper alvorada.

Devo pegar a estrada
e voltar pra Lampião,
mas deixo essas oferendas
dadas de bom coração
ao meu santo querido,
meu Padim Ciço Romão!"

- "Eu vou te dar meu perdão,
diante dos ocorridos,
a tu e a teu amado,
pois os julgo arrependidos:
saibam que estão perdoados
dos pecados cometidos.

Deixem a vida de bandidos
e terão a Salvação:
dos pecados perpetrados
até hoje, têm perdão;
mas se voltarem ao erro,
só com outra confissão!"

- "Volto no mês de São João,
meu santo do Juazeiro.
Vivo em meio a muitos cabras
mas tenho amor verdadeiro,
e juro que só me entrego
ao meu rei cangaceiro!"

- “O meu sertão do cardeiro
só pare mulher de linha.
Quem te olha, logo vê:
não tens cara de galinha!
Por isso foste escolhida,
e serás por toda a vida,
dos cangaceiros, rainha!"

          
                     Antônio Adriano de Medeiros
                     Zoológico Fantástico,
                     Capítulo III, Sabá dos Cordéis
                   


             DO BREVE ENCONTRO DE JESUS COM LAMPIÃO



Só eu conheço os segredos
que a Poesia me deu.
Só eu conheço os mistérios
que o velho Tempo escondeu:
o futuro e o passado,
o nascido e o finado
no presente que sou eu.

Quando Lampião morreu
pôs fim a um desatino
– Pois ninguém pode ser justo
sendo um tenaz assassino:
Satanás foi pro portão
com seu tridente na mão
esperar por Virgulino.

Todavia, quis Destino
a coisa mais complicada,
porque o Rei do Cangaço
teve a cabeça arrancada
e, assim sendo, fez jus
ao Decreto de Jesus
da Alma Martirizada.

Aquela que foi queimada;
o que foi cortado ao meio;
a beleza ultrajada
sem os olhos, sem um seio
 – Mesmo que vá pro Inferno
passa no Jardim Eterno
pra se reparar o feio.

E assim ao Céu veio
após morrer Lampião
para ser avaliado
pelo São Sebastião.
O santo olhou o Processo
e disse assim: – “Sem sucesso.
Pode descer para o Cão!”

Mas o ex-Rei do Sertão
foi um homem devotado
ao Santo Padim Ciço
e Jesus Crucificado.
Abecou Sebastião,
botou o santo no chão
e gritou: – “Ô seu viado,

Eu não respeito soldado
nem de Jesus, nem do Cão!
Um macaco me degola,
outro dá condenação?
Daqui não me vou embora!
Vão chamar Nossa Senhora,
Jesus, ou mesmo o Chefão!”

– Leitora, leitor irmão:
o cangaço invade o Céu!
Eram onze os degolados
com Bonita, a mais fiel!
Pulam sobre Bastião,
querem arrombar um portão...
Sai correndo Gabriel.

Logo o Arcanjo Miguel
chega à toda disparada:
– “Selvagens! Bestas humanas!
Não conhecem a minha espada?
Virgulino, não esqueça:
se arranco a sua cabeça,
vai ficar sempre arrancada!”

Bonita fica assustada
e Miguel entra sem dó:
– “Eu já enfrentei a Besta,
mas a mulher é pior:
Quanto mais meto a espada
mais se diverte a danada
querendo mais e maior!”

– “Macaco Arcanjo, é melhor
você me tratar direito
porque se Seu Chefe sabe
que me tratou de tal jeito,
você tá frito, meu nêgo,
pois vai perder seu emprego
e de todos o respeito!”

A Virgem pulou do leito
porque Francisco a chamou
e foi, bela e radiante,
pr’onde a briga começou:
 – “Peço a todos paciência!
Somos contra a violência...
Bom Jesus nos ensinou!”

Lampião se ajoelhou
ao ver Virgem Maria
e a briga terminou
às sete e trinta do dia.
Maria se retirou
e Gabriel entregou
uma carta que trazia.

– “Da Mais Alta Hierarquia
das Hostes Celestiais
trago um Comunicado
aos que a manhã nos traz;
os tais onze degolados
e que foram condenados
às profundas infernais.

O Nosso Reino é de Paz,
Fraternidade e Perdão.
Por isso que Bom Jesus
– O Mais Puro Coração –
após pesar com prudência,
para evitar violência
vai receber Lampião.

Os demais, em procissão,
queiram aguardar lá fora
pois nossa Repartição
necessita, sem demora,
atender os mutilados
que vêm de todos os lados
para a sua ùltima hora.

Senhor Virgulino agora
aja com educação.
O Nosso Reino é de Paz,
não comporta confusão.
Se um revolucionário
tenta ser incendiário
Jesus lhe dá confissão.”

Em seguida Lampião
foi para outro aposento,
levado pelo Arcanjo
e seguido por São Bento.
Bom Jesus a esperar,
ele pôde descansar
em confortável assento.

Enfim chegou o momento,
brilhou uma forte Luz
– Sinal de que vinha Alguém
cuja Presença reluz! –
Lampião, que era caolho,
ganhou até mais um olho
para contemplar Jesus.

– “Ó Mestre que bem conduz
o rebanho à Salvação!
Sou ovelha desgarrada
que seguiu a Lobo Cão.
Mas foi pra fazer justiça
que deixei muita carniça
sobre a terra do sertão!”

– ”Agiste por emoção,
meu filho, não por amor.
Pois responde, Lampião,
a quem chamas de Senhor:
Pode-se fazer justiça
multiplicando a carniça
na estrada do rancor?”

– “Eu fui grande pecador,
mas toda noite rezava.
Se passava numa igreja
boa oferenda dava.
Fazia o Sinal da Cruz
e pensava em ti, Jesus,
toda vez que a um matava.”

– “Se de mim tu te lembravas
quando matavas alguém,
ou me tomavas por cúmplice
– Coisa que não me convém –
ou quem sabe te lembravas
que quando a um outro matavas
tu me matavas também.”

– “Ave Maria e Amem!
Tenho cara de romano?
Por acaso sou Pilatos,
o governador tirano?
Ou serei o Caifás
que juntou-se a Satanás
quando urdiu astuto plano?”

- “Quais eles tu és humano,
Virgulino Lampião.
Mas tu foste educado
decerto como cristão:
quando a outro maltratavas
era a mim que tu matavas
dentro de teu coração!”

– “Eu me chamo Lampião
pois minha arma reluz
como fogo quando aceso
ou como um facho de luz.
Fui pobre e fui perseguido;
fui herói e fui bandido:
fui igual a Ti, Jesus!”

– “Todos têm a sua cruz ,
mas não te faças de tonto
te dizendo igual a mim...
Acreditas nesse conto:
Tu fizeste o que eu fiz?
O teu próprio nome diz:
és Virgulino, eu sou Ponto.”

– “Eu também fiz contraponto
para a lei do carcará.
Fui cordeiro perseguido
por gato maracajá.
Briguei com onça pintada
em minha terra explorada,
e sendo um simples preá.”


– “A serpente o bote dá
por confiar na peçonha.
Se você se diz pequeno
na verdade me embronha:
logo cai a carapuça
e se mostra a sua fuça,
orgulhoso sem-vergonha...”

– “Bom Jesus tenho vergonha
de O ter deixado irritado...
Rezei tanto pro Senhor,
fui um cristão devotado...
Confiei no teu perdão,
mas vejo que foi em vão:
vivi a vida enganado...”

– “O meu perdão está dado,
mas meu juízo é reto.
Admitir-te no Céu
jamais seria correto.
Justiça com as próprias mãos
e matando a teus irmãos...
O Inferno é o teu teto!”

Jesus saiu tão discreto
que Lampião nem notou:
quando tentou responder
não mais a Ele encontrou.
Outra porta se abriu
e o cangaceiro ouviu:
– “O teu mestre já chegou!”

E no recinto adentrou
um sujeito muito pabo.
Lampião lhe perguntou:
– “É o senhor o Diabo?”
– “Sou teu irmão Satanás!”
 Lampião olhou pra trás
e viu que ganhara um rabo.

– “Lampião, não fique brabo,
nem de vergonha vermelho.
Agora não podes ver,
que aqui não tenho espelho.
Bonita foi infiel:
nem bem saía do Céu
já te fez do boi parelho...”

Lampião em destrambelho
mãos na cabeça botou
e um belo par de chifres
ele ali o encontrou.
Mas se vendo endiabrado
em vez de ficar zangado
o danado gargalhou.


              Antônio Adriano de Medeiros