sábado, 6 de outubro de 2012

Urubus e Albatrozes, carniça e liberdade








Seriam compensações indenizatórias aos pequenos urubus?

Claro que isso acontece a qualquer um, todos temos aparentados gulosos, gente que trabalha conosco insatisfeita, e conhecidos raivosos mui ciosos do que julgam ser sua deveras idiossincrática interpretação da "justiça divina". Quem não quer herdar algo? Quem não quer livrar-se de um desafeto? Quem não deseja ver aquele que vive com certo conforto e liberdade privado de suas irritantes coisinhas tão supérfluas, e enfim caído em desgraça, justiçado, se possível com certo sofrimento antes de deitar-se definitivamente entre quatro castiçais?

Apois foi só Nanim assumir que estava doente e logo carapuças caíram, deixando transparecer por baixo do casco duro de cágados e tartarugas unhas afiadas e longas, e a velha mordedura que "só solta quando o sino bater", como rezava um adágio de minha Santa Luzia da juvenília. A maior parte das pessoas são amigas, são saudáveis, são pessoas felizes e civilizadas, mas há sempre aqueles insatisfeitos, os mal resolvidos, os "psicados", invejosos, ganaciosos, e aqueles prenhes em agradar patrões e poderosos, revelando segredos e fraquezas de seus desafetos, aqueles abomináveis aos olhos dos mandões descerebrados.

Um sobrinho meu, até rico, mas mui ganacioso, ao saber-me doente, mandou-me uma mensagem cheia de coisas de auto-ajuda, mas lá pela metade se traía, pois o que estava escrito lá? Simplesmente a letra completa do conhecido samba de Nelson Cavauinho que começa assim - "Sei que amanhã quando eu morrer os meus amigos vão dizer que eu tinha bom coração..." Acabou vindo me vivitar, coitado, e soltou mais uma - "eu pensava que você tava triste, abatido, acamado, fraco...."

Venha mais, não, rapaz, venha mais não... 

Não de dois anos para cá, mas antes disso enfrentei terríveis agruras no trabalho, devido á presença na direção do hospital público onde trabalho em Natal de algumas criaturas nefastas, incompetentes e mui ciosas de um saber que não têm. E se meteram a mudar logo a quem? - Nanim! Após algumas escaramuças verbais com dois psiquiatras marxistas dinossaurianos, um "casal", digamos assim, que um era tido por macho e outro por fêmea, mas isso última uma sapata patológiquíssima, um médico epidemiologista e clínico com toda a pinta do intelectual marxista afrescalhado que queria me ensinar psiquiatria, e uma assistente social cuja autoridade vinha de ligações familiares de filhos com deputados, e do fato de se impor sempre aos gritos, acabaram atuando no sentido de me afastarem do trabalho por três anos, tendo surgido ainda um processo administrativo por demissão parece que por justa causa. Sei que no auge da confusão, eu afastado do trabalho, uma fêmea chegou excitadíssima ao hospital e revelou aos mandões e subalternos que tinha-me visto mortinho da silva no necrotério do grande hospital público de urgência da capital potiguar... Telefonemas aqui para casa desfizeram a desagradável mentira. E creio que já no próximo ano poderei contar tudo com detalhes maiores, sem no entanto revelar nomes, mas incluindo o cordel Sá Patona e a Gripe dos Frangos, que narra o início das escaramuças.

Bom, os coitados do dia a dia, porteiros de prédio, faxineiros, jardineiros, motoristas,  filhos de moradores, etc, não merecem sequer detalhes maiores.

Fato é que linfomas existem, mas também existe a evolução do conhecimento médico, os fatores pessoais, tempo da doença e mesmo a idade do enfermo, e a qualidade dos médicos que se procura. De forma que Nanim tem demosntrado boa recuepração, e mais uma vez digo, o prognóstico do mal (físico, notem bem! Do mal físico!) que me acomete é bom, há tratamento e possibilidade de remissão completa.

Mas sempre é necessário agradar aos urubus. Eles também são necessários, como tapurus e moscas, os necrófilos pébas, as hienas, os chacais, as pequeninas bactérias, e os vermes. Que dizer daqueles sapos que vez ou outra vemos saindo de buracos em túmulos antigos, descuidados, cujos responsáveis não dão os merecidos trocados do bom coveiro? Sapos gorduchos, grandes sapos bonachões, feiosos sapos, mas todos filhos de Deus, todos sempre necessários.

Há dois poemas sobre os urubus no Zoológico Fantástico, O Urubu de Gravata, e Na Corte de Urubu-Rei, sendo este último um dos mais belos e bem escritos poemas daquele livro de cordéis. O Urubu de Gravata surgiu primeiro, da necessidade de ordenar a grei zoológica sob as normas da lei, sendo pois o urubu de gravata aquele bicho que se gradua no Direito Animal, advogados, promotores,defensores públicos, juízes, etc. A explicação do guia Bem-te-vi sobre as razões do trabalho, de sustento, e da alimentação dos urubus d egravata, é perfeita - "É a alma que apodrece no corpo do delinquente".

A recepção, então:

Uma hiena contente
gargalha à nossa chegada,
alguns abutres voavam
sobre uma mata fechada,
uma mosca varejeira
vomitava embriagada.

Trata-se de um cordel razoável, mas que não chega nem aos pés de Na Corte de Urubu-Rei. Aqui, já um cordel em septilhas, perfeito!, logo no início se fica sabendo que não se trata de um cordel comum, que se vai subir uma montanha, e que haverá sempre bichos peçonhentos no caminho prestes a fazer do aventureiro neófito um saboroso prato para o paladar do patrão, sempre uma autroidade; trata o poema de três urubus da estirpe real, podendo-se dizer que um deles é o médico, o segundo representa os padres da grei zoológica, e o terceiro é niguém menos que a masterialização do urbu rei, a autoridade política, um rei cantor, como os sábios reis dos primórdios da humanidade, conforme nos conta a Teogonia de Hesíodo, que todos as queixas e desavenças resolviam com suas belas palavras. Quando o poeta já se prepara para voltar ao mundo humano, pacificados os urubus reais, lá de longe lhe acena um quarto urubu,, o velho urubu do mar.

O Guia é ninguém menos que o Corvo Nunca Mais, o Nevermore de Edgar Allan Poe, que Fernado pessoa com maestria nos deu em nossa Língua, esta "ùltima Flor do Lácio".

Muito me orgulho de ter escrito Na Corte de Urubu-rei

Assim, distintos urubus menores, emas, galinhas, patos e patas, todos são necesssa´rios, não só vocês, mas ainda o pavão, o grou-coroado, e - sempre é bom lembrar, o Alabtroz.

Falar em Albatroz, temos um bônus com tal nome, de autoria de Charles Baudelaire. O Albatroz é uma grande ave do mar, de voo perfeito; suas asas são tão grandes que ele não consegue andar quando no solo, se movendo na terra com pequenos saltos. Baudelaire viu certa ves, numa viagem de navio no litoral africano, em uma viagem em volta ao mundo que a família o obrigou a fazer para esquecer um amor indesejável, a preta e puta e lésbica, encanatdora e sifilítica Jeanne Duval, os marinheiros pegarem um albatroz e amarrarem suas pernas, só pra se divertir com o prícipe da altura. Uma poeta me vez ver que aquele Ablabatroz era também o própro Baudelaire aprisonado naquele navio.

Ouça O Albatroz na voz de Léo Ferré, em bela composição musical no endereço:

http://www.youtube.com/watch?v=jB8fNp-V5uk

absaam



                               ZOOLÓGICO FANTÁSTICO




O URUBU DE GRAVATA

Saibam que há regras e normas
também no reino animal:
lá existe esfera cível
e esfera criminal:
se um bicho comete crime
vai enfrentar tribunal.

Num castelo especial
escondido em meio à mata
trabalha pela justiça
- com a secretária Barata -
o bicho doutor das leis:
o Urubu de Gravata.

Ele é craque na mamata,
bem chegado à mordomia,
alguns do tal nepotismo
orquestram uma sinfonia,
e tem urubu que cisma
que seu discurso é poesia.

Sou humilde que nem guia
de cego em meio de feira,
mas se na briga do verso
eu puxar minha peixeira
de rimas, fico perverso
e nunca falo besteira.

Pois juro ser verdadeira
essa viagem que fiz
guiado por Bem-te-vi,
a convite de Concriz,
para conhecer a terra
onde urubu é juiz.

Na ida Bem-te-vi diz
que eu não use de ironia,
pois o bicho autoridade
no orgulho se vicia,
e alguns são dominados
pela megalomania.

E diz que a carniçaria
desse reino é diferente:
a podridão é simbólica,
o caráter é que é doente
- A alma é que apodrece
no corpo do delinqüuente.

Uma hiena contente
gargalha à nossa chegada,
alguns abutres voavam
sobre uma mata fechada,
uma mosca varejeira
vomitava embriagada.

Elegante advogada
da estirpe urubu-rainha
nos recebeu sorridente,
parecendo boazinha,
porém não tirava os olhos
duma ferida qu’eu tinha.

Contudo fiquei na minha
e respeitei a delegada:
era uma mulher-macho
mas fingi não notar nada:
quem já brigou com macaco
não comete mais mancada!

Se eu dissesse uma piada
apanhava e era preso:
quem briga com urubu
é simples corpo indefeso;
a promotoria fere
e depois manda o defeso.

Cumprimentei um obeso
e bem raivoso urubu,
acenei discretamente
a um velho gabiru,
e só tive medo do grande
e necrófilo tapuru.

Havia até um tatu
que cuidava da limpeza,
e urubu bacharel
me fez com delicadeza
um discurso em louvação,
e às forças da natureza.

Disse que havia beleza
na batalha inflamação,
abençoou tempestades,
a seca, a inundação,
e a vida que renasce
em meio à putrefação.

Falou que aquela nação
era a mais nobre da raça,
louvou o Juiz Abutre
e a operária traça,
e agradeceu a Deus
por nos dar tanta desgraça.

E depois, achando graça,
então dirigiu-se a mim,
fazendo-me elogios,
eu não era gente ruim;
e saiu acompanhado
pelo soldado Sagüuim.

E em seguida um cupim
apresentou o juiz:
um abutre bem vestido
usando gravata gris,
que com a nossa presença
disse estar muito feliz.

Combater impulsos vis,
deixar o mundo perfeito,
era o maior desejo
que carregava no peito,
e por isso ele dizia
ser um bicho satisfeito.

E defendeu o direito
da Elite Predadora
de saciar todo dia
a sanha devoradora,
educando assim seus filhos
para a vida caçadora.

Por isso é dominadora
a estirpe do Rei Leão,
representada nos céus
pelo airoso Falcão,
e em todos sete mares
pelo Branco Tubarão.

Fez essa observação
e voltou a seu labor,
e logo o grasnar raivoso
de Urubu-rei Promotor
irritou-me os pobres tímpanos,
e a meu ouvido chegou:

- "E quem é esse invasor
da nefasta raça humana?
Que é que pretende vindo
nesta Corte soberana?
Será um revolucionário
da causa republicana?"

- "O nobre doutor se engana:
eu sou Bem-te-vi, o guia,
e juro que este senhor
só quer é fazer poesia,
e não é uma ameaça
para nossa monarquia!"

- "É então filho da anarquia,
música e sensualidade?
- Isso é o que chama poesia
essa tal de humanidade
- Desconfio que o senhor
anda tramando maldade!

Sou um urubu de idade
e conheço a raça humana:
pretensiosa e mística,
traiçoeira e tirana:
vou já abrir um Processo
nesta Corte soberana!"

E logo sai o bacana
com gorilas sorridentes,
prontos para defendê-lo
frente a quaisquer incidentes,
pois ele tem o direito
de acusar inocentes.

Os outros, indiferentes
à crise de histeria,
logo então me convidaram
a ir à Defensoria
conhecer outro urubu
pra aproveitar o dia.

Limpava a secretaria
um dedicado tatu;
era a hora do lanche
na sala do urubu:
uma jovem estagiária
engolia o seu peru.

Um pequeno gabiru,
filhote de deputado,
agradecia contente
ao nobre advogado
por livrá-lo do Processo
de um queijo desviado.

Urubu engravatado
- um sujeito bonachão -
logo que se despediu
do jovem rato ladrão,
olhou para mim e disse:

- "Pode sentar, meu irmão!
Sempre existe o perdão
se roubas para comer:
saiba que aqui estarei
sempre pronto a defender
a qualquer bicho inocente
que roube pra não morrer!"

E pôs-se a me oferecer
serviços profissionais
caso estivesse envolvido
nos escândalos semanais,
pensando que eu fosse algum
dos políticos nacionais.

Depois disse: "Vá em paz!",
desejou boa viagem.
Saí com meus companheiros
no rumo da estalagem,
mas ouvi vindo do bar
rude grunhido selvagem.

Era grande a beberagem
de Urubu-rei Promotor
tomando uísque escocês
com um porco senador,
e eis que urubu me chama:
- "Venha cá, caro senhor!"

E logo urubu doutor
vira outro copo ligeiro,
e passa a dizer ofensas
com sotaque carniceiro
contra o pior dos crimes:
aquele do maconheiro.

Esmera-se o encrenqueiro
maior do reino animal
adjetivando o crime
e a degradação moral
de que padecem os que sofrem
de tal vício irracional.

Um gorila maioral
aplaude o que urubu diz:
entre goles de bebida,
todo mundo está feliz;
e eu vejo que tá na hora:
aproveito e caio fora,
com Bem-te-vi e Concriz.


              Antônio Adriano de Medeiros
              Zoológico Fantástico




NA CORTE DE URUBU-REI


            Para o mais augusto dos anjos


É preciso ir devagar
na subida da montanha:
pra atravessar o rio
leve carne pra piranha,
e depois tenha a prudência
de tratar com reverência
Cobra, Vampiro e Aranha.

Se um dos bichos se assanha,
acaba a camaradagem:
o invasor será pasto
de um banquete selvagem;
será comido aos poucos
depois que cachorros loucos
interromperem a viagem.

Pra ir naquela paragem
é preciso ter bom guia:
o Corvo acompanhou-me
desde o início do dia
à terra daquela grei
onde Mestre Urubu-rei
declama sua poesia.

Vi fazer feitiçaria
urubu-fêmea gorducha,
uma mosca varejeira
fantasiada de bruxa,
e uma hiena sensual
lendo gulosa um jornal,
mirando as pernas da Xuxa.

Meu ombro quase que luxa
pois o abraço doeu:
foi serpente venenosa
que ali apareceu,
mas eu suportei o tranco
e logo de Urubu-branco
ela notícias me deu:

- "Ontem quando anoiteceu
ele saiu pro plantão,
mas acredito que logo
com ele se encontrarão,
pois prometeu voltar cedo...
e podem esperar sem medo:
já o ouço no portão!"

Logo me aperta a mão
um urubu elegante,
jovial e bonachão,
altivo, alvo, falante,
que disse: - "Sou da saúde,
abro todo ataúde,
meu bico é de diamante.

Quando o pus é abundante
confesso que me deleito;
trabalho mas me divirto,
levo a vida satisfeito.
Tenho remédio pra morte:
ela é que faz bater forte
o coração no meu peito!"

Pareceu-me um bom sujeito
aquele culto urubu
que logo saiu ligeiro
a chamado de Tatu,
pois a horta de ferida
estava sendo comida
por peste de tapuru.

Enorme Surucucu
então disse nessa hora
qu’eu seguisse pela estrada
e que fosse sem demora,
até achar o Vampiro
que me levasse ao retiro
do Urubu Caipora.

O Corvo disse: "É agora
que você vai conhecer
um urubu curioso,
filósofo do morrer,
ele que de tudo entende,
sabe que a vida transcende
ao mero apodrecer."

E quando estava a descer
por uma caverna escura,
vi o vulto do Morcego,
uma estranha criatura
que sempre guarda a morada
do ser que odeia alvorada,
o mago da sepultura.

Disse a estranha figura
com sua voz cavernosa:
- "Da última vez que aqui veio
da tal gente curiosa,
endoidou, perdeu juízo,
e portanto foi preciso
comê-la - tão saborosa!"

A criatura horrorosa
que encontrei em seguida
foi aquela mais estranha
que eu pude ver na vida:
era um urubu corcunda
em cuja batina imunda
a cruz era uma ferida.

Jamais será esquecida
a oração que ouvi,
foi tão grande a emoção
que dela nunca esqueci,
tomando sangue na missa
e tendo por pão carniça,
vi urubu repetir:

- "Ó ser que como um zumbi
surge da destruição,
ó energia que nasce
em meio à putrefação,
ó perpétuo refluir,
matéria no ir e vir,
flor da decomposição!

Dai-nos a nossa porção
do podre de cada dia!
Aceitai nossa oração
ofertada em poesia:
louvamos nesta caverna
a mistério e vida eterna
que estão na carniçaria!

Ó sagrada bicharia
que por desígnios eternos
escorre qual rio de vida
pelos tempos sempiternos,
- Ó ser de pus, carne e gás,
a obra de Satanás,
nosso senhor dos infernos!"

Desmaiei, sujei meu terno,
dois urubus já babavam,
acenderam castiçais,
muitas velas ostentavam,
porém o Corvo afinal
me deu pedrinhas de sal,
e vi qu’eles não gostavam:

- "Antes os corvos prestavam:
os corvos de antigamente
até que se divertiam
e vinham comer c’a gente,
mas depois do Nunca Mais
andam orgulhosos demais,
pensam ter virado gente!"

Velho urubu, sorridente,
logo então se desculpou:
- "Perdoe-me, civilizado,
se da reza não gostou:
tão franzino e delicado,
não o comeria assado...",
o olho pra mim piscou.

Então O Corvo falou:
"Urge, amigo humano, hey!
Só falta o último urubu,
o ponto alto da grei,
um velhíssimo rei cantor,
um poeta de valor,
grande Mestre Urubu-rei!"

Mas eu respondi: - "Não sei
se devo me arriscar:
se esse abaixo do rei
já queria me jantar,
da extrema soberbia
que mora na monarquia
o que é que posso esperar?"

- "Tranqüuilo pode ficar,
ali não se faz besteira." -
Porém eu logo notei,
quando subia a ladeira,
abaixo o rio das piranhas,
e mais acima as aranhas
da raça caranguejeira.

Eu quis sair na carreira
tão assustado fiquei,
mas o Corvo disse assim:
- "Confie no que lhe falei!" -
Grande Aranha nos sorria
falando em diplomacia,
e do palácio escutei:

- "Eu sou Mestre Urubu-rei,
o que faz sua poesia
sobre o que a turba dos homens
chama de carniçaria:
por ela tenho paixão,
minha doce podridão,
visão que me extasia!

Pois nada se perderia
no seio da natureza,
tudo aquilo que se cria
tem serventia e beleza;
assim Deus determinara
quando a urubu criara
- um serviçal da limpeza.

E toda minha nobreza
só deriva do servir,
o que mais me engrandece
nessa vida é permitir
a tal civilização
sem peste de infecção,
agora nem no porvir.

O rei que está aqui
impera com humildade,
sou um simples animal
que vive na iniqüuidade:
me alimento do resto;
se dizem que eu não presto,
difamam com falsidade.

Dou provas de amizade,
digo que sinto afeição
pelos homens sonhadores,
apogeu da Criação:
quando os como, me envergonho;
e agora, distinto Tonho,
queira apertar minha mão!"

Uma estranha emoção
em meu peito de mortal
bateu forte, imperativa,
mas não me sentia mal:
antes achei-me tomado
como tendo efetivado
estranho pacto ancestral.

Que altura magistral
eu conseguira galgar
com o distinto amigo Corvo:
vi horizonte polar!
Descendo a serra eu voltava
e vi que me acenava
um velho Urubu do Mar.


                    Antônio Adriano de Medeiros
                    Zoológico Fantástico



                                                                            BÔNUS



O ALBATROZ


Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.


                  Charles Baudelaire
                  trad. Ivan Junqueira



L'Albatros


Souvent, pour s'amuser, les hommes d'équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.


À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l'azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d'eux.


Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu'il est comique et laid!
L'un agace son bec avec un brûle-gueule,
L'autre mime, en boitant, l'infirme qui volait!


Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.


Charles Baudelaire



The Albatross


                                   Charles Baudelaire


Often, to amuse themselves, the men of a crew
Catch albatrosses, those vast sea birds
That indolently follow a ship
As it glides over the deep, briny sea.


Scarcely have they placed them on the deck
Than these kings of the sky, clumsy, ashamed,
Pathetically let their great white wings
Drag beside them like oars.


That winged voyager, how weak and gauche he is,
So beautiful before, now comic and ugly!
One man worries his beak with a stubby clay pipe;
Another limps, mimics the cripple who once flew!


The poet resembles this prince of cloud and sky
Who frequents the tempest and laughs at the bowman;
When exiled on the earth, the butt of hoots and jeers,
His giant wings prevent him from walking.


— William Aggeler, The Flowers of Evil (Fresno, CA: Academy Library Guild, 1954)