sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Das perseguidas e mais Memórias do Sertão




 um pé de amendoim, raridade da Barra dos Louros

Está tudo bem. Seguem dois escritos, um poema de hoje, e mais lembranças de velhos amigos e dos bons tempos de menino e adoolescente no sertão.
absaam 
MULTIDISCIPLINADA


Desde os tempos dos velhos deuses
caldeus, egípcios e gregos
que se conhece seu desejo sexual atávico
pelas mulheres dos mortais - Cisne, Touro, Bode,
tantas vezes com sua aparência verdadeira,
copularam, emprenharam, violaram, amaram
Lêda, Côronis, Pasífae, Ariadne, Sêmele
e tantas outras, amadas, queimadas, desgraçadas.

Depois ficaram só Satã e Deus.
Viram Eva, um a seduziu.
Depois, o Outro a Maria.
E ficaram ciosos de suas posses.

Mas a Danada é tão cheia de vida
e de amor para dar,
que mesmo tendo o rabo preso com o Diabo,
e a flor da vida sendo leito e morada de Deus,
ainda faz maravilhas com aquela boca.


                             Antônio Adriano de Medeiors
                JP  02.11.2012






                                              MEMÓRIAS DO SERTÃO DO SERIDÓ



DE CHICO MARRECA E MANÉ FURUCUTEU


Acredito - Por que não? - que aquele sotaque tivesse sua origem não num castigo, que fiéis cristãos eram e ainda são os que restam da linhagem, mas numa advertência do Criador, baseado numa suposta transgressão a uma advertência do Gênesis, a saber, o episódio do Bezerro de Ouro. Sim, porque juntar Bezerra com Santos poderia suscitar, nos ouvidos onipresentes e oniscientes do cioso Deus Pai, uma lembrança do episódio ancestral perpetrado na ausência de Moisés. Ora, a matriarca era da família Bezerra, e o patriarca, alcunhado Chico Marreca por causa do formato da cabeça que lembrava a ave aquática, era da nobre estirpe Dos Santos.

Pois o que mais chamava a atenção nos filhos que surgiram dessa união era um sotaque anasaladoe gutural como eu nunca ouvi em lugar nenhum, sequer em filmes de Fellini ou dublagens de documentário ou desenho animado americanos, sotaque esse que eu menino sintetizei numa palavra, Gafum. Não há como tentar descrever aquilo, só quem ouviu, mas, não sei bem o porquê, a palavra Gafum virou sinônimo dele entre amigos e familiares. A última sílaba era sempre bastante grave, e a melodia da voz era algo entre triste e extremamente cômico.

Meu bom pai, por razões comerciais, tinha ligações com homens do campo, e a família Bezerra teve um gerente da loja nos anos 60 que se deu bem na vida depois de vir da zona rural, e terminou indo morar em Brasília. Os pais e irmãos do dito gerente ficaram morando numa das casas de meu pai por mais de dez anos ainda, e foi também nessa casa, que ficava na minha rua, que conheci Mané  Furucuteu.

Os meninos da rua sertaneja, digo da rua principal, da Praça como chamam, são bem mais terríveis que os da cidade grande. O chamado Bullying, esse assédio moral, esse amedrontamento que os americanos perceberam nas escolas, é muito mais selvagem ali. Assim sendo, o filho caçula dos Bezerra dos Santos, que mais tarde passou  a ser chamado de Marrequinha, quando manifestou-se como um ser vivente nas ruas da Santa Luzia dos anos 70 há pouco passados ganhou, também por conta do sotaque, acredito, o vergonhoso apelido de Mané Furucuteu.

Eu tinha meus dez anos de idade, talvez até nove, e na minha ingenuidade, nem notei que era um apelido de mau gosto, e o tratava normal e amigavelmente de Mané Furucuteu. Pra mim era um nome como qualquer outro. Só aos poucos fui notando que sempre que pronunciava aquele nome, Mané Furucuteu colocava o punho da mão direita sobre o umbigo com o indicador voltado para mim, e perguntava:

- Fura o cu de quem?

Era como se, magicamente, com aquela postura defensiva,  a minha expressão reverberasse em seu ser e saísse através de seu dedo indicador para mim apontado e... Bom, não precisa explicar.

O fato é que alguns anos depois, precisamente no ano de 1976, após um entendimento entre meu pai e Chico Marreca, Mané Furucuteu, que então já se tornara o adolescente Marrequinha, foi morar em minha distinta casa, para ajudar a meu pai na loja e na Banca de Bicho. Más línguas afirmaram posteriormente que tal empreitatada fora na verdade um ardil de meu irmão bem mais velho, o primeiro filho homem, com o intuito de afastar a mim e a meu outro irmão caçula dos negócios, mas isso não vem ao caso agora, embora não possa deixar de ser citado para que se saiba que coisas semelhantes não ocorreram só em ilustres famílias de Roma e de Londres.

A chegada de Marrequinha teve de proveitoso muita coisa, e é só dessas que pretendo falar. Primeiro, fiquei com tempo livre integral pra brincar, estudar e ler, só sendo obrigado a trabalhar nos sábados, quando era resposável pelo caixa da loja no dia da feira. Segundo, despertei pra coisas como caçar com espigarda, ouvir jogo de futebol pela Rádio Globo, e colecionar a Revista Placar - Marrequinha era e é ainda torcedor fanático do Vasco, e eu até o acompanhei por um tempo, mas logo mudei pro Fluminense. Mas o melhor foi que pude conhecer a Fazenda Barra dos Louros, de Chico Marreca, e outras de vizinhos como a grande Fazenda de Seu Severino Anísio - que Deus o tenha! -, podendo ter ali vivido manhãs inequecíveis acordando com o barulho do gado de manhã bem cedinho na hora de tirar o leite, o sol nascendo e aquele cheiro de estrume no ar, tomando banho de rio, e, o que para mim foi algo fantástico, conhecendo o pé-de-amendoim e podendo comer amendoim verdinho colhido na hora; não se compara o sabor de amendoim verde nem mesmo com ele cru já maduro, imagine então com o torrado.

Devido à boa acolhida que o Caçula da estirpe Bezerra dos Santos teve em minha modesta casa, também nós éramos recebidos com festa na Barra dos Louros - nome que, me disse o patriarca, se devia ao fato de por lá aparecerem amiúde marocas e louros. Hoje me arrependo de não ter ido mais vezes ali. Ao chegarmos, todos se reuniam na sala, e o sotaque carregado lembrava uma tempestade de roncos e trovões gentis. E tome causos e mais causos. Geralmente se debochava de primos que não sabiam falar direito, e sempre me contavam a história do primo que confundia "Garanto"  com "Caranto"

- Eu caranto que... - e todos caíam na risada.

Tinha um que exagerava e jurava que o tal primo teria dito

- Eu cagaranto que... - e tome gargalhadas.

Uma das irmãs, a mais velha, gentilíssima, sempre me saudava com beijinhos, pra mostar que era uma pessoa civilizada, professora que era.

O almoço era ótimo, feijão verde, arroz de leite, farofa, galinha, carne de sol, jerimum... Na época de chuva tinha a curimatã ovada. A trilha sonora ficava a cargo da Rádio Rural de Caicó ou, mais raramete, da Espinharas de Patos.

Lembro do episódio do jipe. Chico Marreca comprara um jipe recentemente e fomos pra uma missa que teve lá, num alto das redondezas. Aconteceu porém que o bom Seu Chico, ainda sem muito hábito com a nova aquisição, esqueceu o seu veículo automotor em ponto morto lá em cima do alto... A coisa aconteceu quando entrávamos na capela: de repente vi Seu Chico e a filharada correndo em desespero atrás da preciosa aquisição, aos gritos de - "Pare, seu fii duma égua!"  e mais outros impropérios que certamente se dirige contra jumento doido ou rês em disparada, mas o danado do jipe já ia longe e não tava nem aí pro desespero de quem lhe dava gasolina, óleo e água, que as máquinas são muito insensíveis, e seguiu em disparada. Acredito que foi o fato de termos ido à uma missa que fez a mão do Criador guiar o jipe pra uma lateral da estrada onde havia um barranco, e lá caiu o teimoso e mau comportado jegue mecânico. Todavia, precisou de que outro jipe viesse tirá-lo do buraco, o que demorou várias horas.

Mas bom mesmo era quando outro irmão meu ia, o segundo filho, o Doutor. Era bioquímico e tinha um laboratório na cidade, e portanto era um Doutor. Não sei se sabe o leitor da metrópole, o povo bom  e simples da zona rural, pelo menos no sertão, não sei se por temor ou afeição, adora presentear doutores com raridades, ou vender bem barato a preço de banana objetos antigos, coisas que vinham na família há muito tempo. E quando o Doutor ia a recepção não ficava só com os donos e os filhs da casa de Chico Marreca, vinha também os primos da vizinhança, inclusive Dona Amélia, Bezerra braba, mãe daquele ex-gerente da loja de meu pai que foi pra Brasília, e que era mui grata também principalmente a meus irmãos mais velhos, contemporâneos de seu filho como eu fui de Marrequiinha.

E o Doutor sempre voltava pra casa com uma imagem de santo de madeira, um par de arreio de vaqueiro, um chapéu de couro, ou coisa semelhante. Mas naquele dia ele pediu alto, sem saber que iria mexer com algo que fora objeto de forte discussão de herança quando da morte do pai de Dona Amélia, Bezerra braba, cunhada de Chico Marreca. Demonstrou interesse pela mesa da sala de jantar da Barra dos Louros, mesona pra dez pessoas, de madeira nobre, gavetas, o escambau.

- Que mesa bonita, Seu Chico: quem lhe deu?

- Quem me deu essa mesa foi meu sogro...

Leitor, eu ouvi. Vou colocar umas barras na frase como a separar versos de um poema ou canção, porque a frase que Dona Amélia bradou em resposta, ameaçadora, foi terrívelmente poética ou musical, e pôs fim à visita na mesma hora:

- Essa mesa na foi dada,/ essa mesa foi roubada!/ Mas tem gente/ que tá planejando/ se armar de machado e vir quebrar ela todinha!

Água mole em pedra dura tanto bate até que fura: sei que a mesa hoje tá aqui em Tambaú, na casa da viúva daquele meu irmão, o Doutor. Inteirinha.



                                             Antônio Adriano de Medeiros
                                             João Pessoa, 06.11.2010