sábado, 3 de novembro de 2012

aquela sopada - poemas com ossos




                                                                               
                                                                               



Em virtude de um notável alívio das terríveis dores que me acometiam o  sofrido corpo (mormente ossos e o baço) em que a luz opaca de meu espírito fez morada - vez em quando emitindo porém luzes de um brilho singular - alívio bastante salutar e restaurador - pelo que com humildade agradeço ao Misericordioso - ó, meus distintos comensais deste banquete de palavras sugestivas de imagens patéticas que se chama Poesia, apresso-me e logo lavo as mãos, ponho meu avental, busco os ingredientes, e sirvo o lauto banquete a seguir, que quisera fosse uma grande sopada, dada a presença de muitos ossos tutanosos, restauradores,

Desde já agradeço á colaboração,  descaradamente involuntária, do jovem poeta de Ribeirão Preto Daniel Francoy, que decerto voa em plagas amenas, de quem tomei a liberdade de servir um Poema como sobremesa, naturalmente o derradeiro poema, sabedor que sou que uma sobremesa saborosa sempre cai bem e é suportada mesmo após um banquete pesado - que não é o caaso, há uma passagem de lirismo singular na sopada, como no final do poema Na contemplação da Dança macabra, e ainda a rara beleza do Soneto a um poeta desconhecido.

Eu rogo, de joelhos se necessário for, á leitora amiga que já se apressa em fugir, deixando os pobres esqueletos de palavras que são os poemas escritos, sem receberem a liuz de seu olhar... Não faça isso, o À la Carte é só um cardápio, e, fugindo, você jamais conhcerá a minha amada, Macabrita.

Plasma é um micropoema, mas mui bem escrito; ele poderia traduzir o provérbio "água mole em pedra dura tanto bate até que fura".

Espero que tenha ficado ao gosto dos paladares mais exigentes.


absaam



À LA CARTE


Quando fores jantar, ó verme tenebroso,
o corpo que à minha alma serviu de abrigo,
saiba, ao nele cravar teus dentes em gozo,
que saboreias o corpo de um velho amigo.
E é em razão de nosso amor tão antigo
que hoje dou-te dicas para o dia glorioso
em que me devorarás os olhos e o umbigo,
a chafurdar sobre um cadáver pastoso:
Meu fígado não é carne de primeira,
e os pulmões são matéria-envenenada;
o cérebro é gordura amarga, e da caveira
a medula dos ossos sabe a sopa requentada.
- Já o coração, malgrado possa parecer-te azedo,
é de poeta, verme: podes comê-lo sem medo!


                      Antônio Adriano de Medeiros




VERSOS A UM POETA DESCONHECIDO


Aquele jovem que morreu na guerra
era poeta. Seu corpo alimentou diversos
urubus e cães, e a alma na certa erra
ainda, a clamar justiça para os perversos

inimigos que lhe ceifaram a vida
à bala, o coração espetado na baioneta
qual picanha sangrante servida
no banquete macabro do Capeta.

A terra seca não se sensibilizou
com as lágrimas da mãe, e ainda ousou
deixar alguns de seus ossos submersos.

Mas o crânio é descoberto, e quando o vento
sopra em noite de lua, tem-se o pressentimento
de se ouvir alguns fantasmas de versos.


            Antônio Adriano de Medeiros





PLASMA

Ossos sois,
ossos sós,
e ouço sóis
dilacerantes.


             Antônio Adriano de Medeiros





Na contemplação da Dança Macabra


Seria mais triste pensar
que essa montanha de tantos ossos,
alegóricos destroços
de antigos carnavais,
para sempre ficaria ali desordenada,
esquecida do magnetismo dos músculos.

Me apraz ver esqueletos ali
dançando entre flor e pedra,
saber que entre eles ainda medra
algum residuo do velho amor.


              Antônio Adriano de Medeiros



MACABRITA


Ó singular caveira da amada,
guardei-te há alguns anos já
em minha estante,
a obra mais bruta,
a jóia mais rara do meu lar.

Sei que estás me esperando.

Quando chego em casa
percebo teu sorriso reavivar-se
por um vão momento,
enquanto minha silhueta
adentra à sala
com um bafejo de ar
e de fumaça.

Me lembra o cão que adoro tanto.

Contigo aprendi,
com teu orgulho ainda de mortal
- justo, porque tu és sempre tão bela! -
que algo maior talvez paire
além dos corpos molhados e gasosos,
elásticos mas que encerram
um quê de concreta perenidade
na armação dos ossos.

Ou iria o amor apodrecer nos músculos?

- E ela, Macabrita meu amor,
parece rir-se agora de mim
que então me desespero,
pois sei o que seu riso quer dizer
que os tristes, frágeis ossos
que me sustêm, são pedra e nada mais.

Da mesma pedra onde brota o musgo.


           Antônio Adriano de Medeiros




                                        UM POEMA DE DANIEL FRANCOY



POEMA

Mais de uma vez tenho-me insurgido
contra os olhos que ávidos indagam
então não almejas esses carros, essa mulher
coberta de jóias, e mais roupas de grife
e uma casa no campo e outra na praia?
Olhar a fortuna alheia sem cobiçá-la
é algo que não se pode conceber.
Ensina-se o oposto nas escolas, nas igrejas.

Ana de olhos verdes e sorrisos maliciosos,
alunos que aspiram reinos ocos,
docentes estéreis e senis,
falsos artistas que por um segundo de fama
são pedidores de esmolas,
famílias que se apertam em mesas fartas
e discutem política e defendem
esterilidade para os pobres,
guilhotinas para os marginais,
e aulas de balé e inglês para os bem nascidos.
Olho todo essa gente e me indago
onde estão cantigas de mal-dizer e de escárnio,
onde está Dante, que há de condená-los
ao inferno onde alvejam os ossos
que foram de papas, reis, nobres adúlteras
e outros que foram prósperos em sua época.

Daniel Francoy