quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Doidos de Mim - os safados, com Baudelaire

Safo de Lesbos

Nos dois Doidos de Mim que seguem, encarno - na primeira pessoa do singular! - os primeiros Safados; a saber, os desviados originais, os humanos do amor entre iguais.


A poeta Safo de Lesbos (Sapho da ilha de Lesbos) se não foi a primeira que cantou o amor entre as muheres foi a que o fez melhor, pois que o nome da ilha onde viveu deu origem à palavra "lésbicas". Creio que também a palavras "safadeza" e "safada" se originaram de seu próprio nome, se bem que diziam-na tão encantadora que poderia mesmo ser citada como a Décima Musa; há que se dizer ainda que Safo se matou atirando-se de um penhasco de sua ilha no grande mar, e que o fez por amor a um homem! - o Poeta Charles Baudelaire fala do episódio em um dos poemas mais belos que conheço, Lesbos, que não posso deixar de incluir aqui, como terceiro poema da presente postagem, na tradução de Ivan Junqueira. O poema de Baudelaire foi proibido quando da publicação das Flores do Mal, junto com mais cinco, e ele pagou alta multa pro ter, segundo a justiça francesa da época, "atentado contra a moral e os bons costumes". Somente sessenta anos depois os poemas foram "reabilitados" em França - o que não quer dizer que não fossem publicados em ediçôes clandestinas. No poema Sáphira há pois uma pequena homenagem a Safo de Lesbos.

Nijinsky foi um grande bailarino russo que teve um caso conturbado com Dhiaghilev, seu empresário; o mais tocante da história de Nijinsky foi que ele, o maior bailarino de sua época, após ter passado alguns anos inativo, coisa de briga com Dhiaghilev e certamente outros problemas mais graves, marcou o seu retorno triunfal ao palco e, diante da nata européia da época o bailarino, após ficar cerca de uma hora sentado numa cadeira no palco, calado e de olhar fixo, dá uns pinotes desajeitados sobre uma cruz que fizera no palco diante do público, e simplesmente não conseguiu dançar, adoecendo de uma psicose esquizofrênica que nem Freud, Bleuler e Jung conseguiram fazer sequer melhorar dos sintomas graves. Li outro dia que quando Nijinsky saía de casa na fatídica noite dissera á sua mulher que "hoje você vai assistir ao meu casamento com Deus!" Um fenomenologista que estudou a grande psicose diz que nos primórdios do delírio primário se sente a Trema, nome dado à grande ansiedade que os atores sentem antes de entrar no palco - a trema de Nijinsky, então, foi definitiva. Outro homossexual que dizem-no tão belo que poderia ser "o modelo masculino da beleza plastica" foi Antínoo, protegido do imperador romano Adriano. O poema Antínoo Nijinsky funde trechos da história dos dois.

E por fim segue o poema de Charles Baudelaire, Lesbos, na tradução de Ivan Junqueira.

"Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre
Pour chanter le secret de ses vierges en fleurs,
Et je fus dès l'enfance admis au noir mystère
Des rires effrénés mêlés aux sombres pleurs ;
Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre."

Baudelaire, Lesbos
(http://clicnet.swarthmore.edu/litterature/classique/baudelaire/lesbos.html)

absaam



SÁPHIRA

É no oceano azul e quente de teus olhos,
amiga, que quero me afogar.
É com essa espuma salgada de teu corpo,
amada, que quero me embriagar.

Ao escalar tuas montanhas maleáveis, amor,
me perco fundo no teu pântano, e aí viro fera - e mordo!
Nessa selva de cabelos perfumados, em desatino
quero me perder, para reencontrar-me guerreira
amazona que te monta e espora.

As tuas duas grandes maçãs
são as frutas prediletas de meus dentes.

E quando perderes tu também a cabeça
na minha árvore do bem e do mal,
entraremos juntas no Paraíso,
enroscadas quais duas serpentes.


Antônio Adriano de Medeiros



ANTÍNOO NIJINSKY

Pois saiba que eu também gosto muito, amigo,
quando me tomas nos braços e diriges meus movimentos
como se fora um ator no palco,
ou um bailarino,
e me beijando dizes que sou teu
modelo de beleza plástica,
além do depositário não só de teus afetos.

No início, confesso,
me preocupava
com o que os outros iam pensar
quando saíamos para jantar,
você bem mais velho e tão alvo,
e eu tão jovem e com minha pele por demais morena;
hoje não, confesso que já me sinto à vontade.

Pois nada se iguala aos momentos
que vivemos a sós,
no nosso palco de amor,
quando danço rubro e com a voz embargada,
molhado de saliva e suor,
te amando e servindo e venerando - meu Imperador! -
o coração palpitando sob tua espada.


Antônio Adriano de Medeiros




LESBOS

Charles Baudelaire

Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias,
Lesbos, ilha onde os beijos, meigos e ditosos,
Ardentes como os sóis, frescos quais melancias,
Emolduram as noites e os dias gloriosos;
Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias;

Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas,
Que desabam sem medo em pélagos profundos,
E correm, soluçando, em maio às colunatas,
Secretos e febris, copiosos e infecundos,
Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas!

Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,
Onde jamais ficou sem eco um só queixume,
Tal como Pafos as estrelas te veneram,
E Safo a Vênus , com razão, inspira ciúme!
Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,

Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,
Onde, diante do espelho, ó volúpia maldita!
Donzelas de ermo olhar, dos corpos amorosas,
Roçam de leve o tenro pomo que as excita;
Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,

Deixa o velho Platão franzir seu olho sério;
Consegues teu perdão dos beijos incontáveis,
Soberana sensual de um doce e nobre império,
Cujos requintes serão sempre inesgotáveis.
Deixa o velho Platão franzir seu olho sério.

Arrancas teu perdão ao martírio infinito,
Imposto sem descanso aos corações sedentos,
Que atrai, longe de nós, o sorriso bendito
Vagamente entrevisto em outros firmamentos!
Arrancas teu perdão ao martírio infinito!

Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?
Ou condenar-te a fronte exausta de extravios,
Se nenhum deles o dilúvio pôde ver
Das lágrimas que ao mar lançaram os teus rios?
Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?

De que valem as leis do que é justo ou injusto?
Virgens de alma sutil, do Egeu orgulho eterno,
O vosso credo, assim como os demais, é augusto,
E o amor rirá tanto do Céu quanto do Inferno!
De que valem as leis do que é justo ou injusto?

Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo
Para cantar de tais donzelas os encantos,
E cedo eu me iniciei no mistério profundo
Dos risos dissolutos e dos turvos prantos;
Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo.

E desde então do alto da Lêucade eu vigio,
Qual sentinela de olho atento e indagador,
Que espreita sem cessar barco, escuna ou navio,
Cujas formas ao longe o azul faz supor;
E desde então do alto da Lêucade eu vigio

Para saber se a onda do mar é meiga e boa,
E entre os soluços, retinindo no rochedo,
Enfim trará de volta a Lesbos, que perdoa,
O cadáver de Safo, a que partiu tão cedo,
Para saber se a onda do mar é meiga e boa!

Desta Safo viril, que foi amante e poeta,
Mais bela do que Vênus pelas tristes cores!
- O olho do azul sucumbe ao olho que marcheta
O círculo de treva estriado pelas dores
Desta Safo viril, que foi amante e poeta!

- Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida,
A derramar os dons da paz de que partilha
E a flama de uma idade em áurea luz tecida
No velho Oceano pasmo aos pés de sua filha;
Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida!

- De Safo que morreu ao blasfemar um dia,
Quando, trocando o rito e o culto por luxúria,
Seu belo corpo ofereceu como iguaria
A um bruto cujo orgulho atormentou a injúria
Daquela que morreu ao blasfemar um dia.

E desde então Lesbos em pranto lamenta,
E, embora o mundo lhe consagre honras e ofertas,
Se embriaga toda noite aos uivos da tormenta
Que lançam para os céus suas praias desertas!
E desde então Lesbos em pranto lamenta


Charles Baudelaire
Flores do Mal
trad. Ivan Junqueira