quinta-feira, 24 de junho de 2010

AS QUEIXAS DE LÚCIFER








"O Satan, prends pitié de ma longue misère!"


Quando os meus sócios, sorridentes,
saem da missa no domingo
e vão felizes para casa, bem contentes,
fico tão triste que, confesso, choramingo...

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Pois que de todos os que vagam eternamente
no cárcere do Inferno derradeiro,
Satanás perseguido é o primeiro,
vítima da fúria de Deus Pai Onipotente.

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Mas não fora minha pena por demais exagerada?
Não que da justiça divina pretenda tirar o mérito,
mas a justiça hoje em dia anda tão mudada...
Seria mesmo impossível reabrir o meu inquérito?

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Se me permite uma réplica o Maior Legislador,
digo que o Seu Veredicto hoje é insatisfatório:
pois as penas radicais já perderam o seu valor
e a imprensa pode pensar que fui um bode expiatório...

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Os gestos autoritários andam tão fora de moda...
E diante da oferta que há de tantos salvadores,
um deus assim radical tem até seus seguidores,
mas no Mercado da Fé essa má fama incomoda...

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

A Tua Igreja está perdendo fiéis
para seitas mais modernas e menores,
algumas até cujos profetas, uns dez,
vêm sempre em busca de meus favores.

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Não que goste de ajudar a esses lunáticos,
mas tu bem sabes que aprecio a diversão
e adoro ver o tolo bando de fanáticos:
já condenados prometendo a Salvação!

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

E considerando que aqueles pobres rebanhos
que a falsos profetas seguem, inocentes do Mal,
virão todos receber meus quentes banhos,
já temo, preocupado, a lotação infernal!

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

Pois como se não bastasse a minha sina
de o príncipe do eterno exílio para sempre ser,
tal sobrecarga de trabalho as minhas forças mina...
Ai, com tanto sofrimento eu posso até morrer!

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

E minha morte para ti seria o caos,
pois, desaparecendo da doutrina a ameaça,
não seria mais possível amedrontar os maus,
e o Teu Império todo cairia em desgraça!

- Deixa-me voltar, ó bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

É claro, Bom Criador, que não tenho a pretensão
de para sempre ir viver no Reino do Paraíso:
o que te peço são férias, breve interrupção
do trabalho incessante que há tempos realizo.

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!

E assim quero, para melhor cuidar dos ateus,
e para que possamos superar tamanhos sustos,
que me permitas de novo ser recebido entre os Teus...
Quanto a despesas de viagem, cobrirei todos os custos.

- Deixa-me voltar, ó Bom Deus,
ao seio do lar dos justos!


Antônio Adriano de Medeiros
1988

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