segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

o julgamento de uma alma em seis sonetos




Irmãos caríssimos,

creio ser uma das preocupações fundamentais da criatura humana o singular julgamento que - dizem, e eu creio nisso cegamente - todos nós passaremos após a separação de corpo e alma, quando "o melhor momento", ou seja, a Morte chegar. Aqueles que, como esta pobre alma pecadora, trataram com o Diabo, ainda que em escritos apenas - o que talvez possa ser considerado um atenuante - temem sobremaneira o Juízo Preliminar (sim, porque haverá ainda o Juízo Final, quando as decisões poderão ser revistas).

De tanto temer o Julgamento de minh'alma, cheguei mesmo a imaginá-lo como segue. Pus, como epígrafe incriminadora (espero que o Grande Juiz veja também essa confissão musical como atenuante) o título de uma música que gosto muito, e que poderia ser traduzida livremente no sentido mais ou menos assim: "Cara, você não é nenhum anjinho...", eternizada na voz de Edit Piaf (!).

Que o Bom Pai também aceite o fato de serem os sonetos em numero de seis, um reconhecimento de minha imperfeição émaior ainda (coisa a ser entendida no final do Soneto V).

absaam




O JULGAMENTO DE UMA ALMA EM SEIS SONETOS


"Johnny, tu n'est pas un ange..."



I

Em funerária amiga - estava no sertão -
depois de uma grande bebedeira,
deitei por brincadeira dentro de um caixão...
Mas como adormeci, fiquei a noite inteira.

Logo o Diabo chegou para a acusação;
e a Compadecida veio pra defesa.
O sério Pai, que a tudo prestava atenção,
um martelo dourado tinha sobre a mesa.

A boa Madalena, Francisco e Antônio
- que são os santos por quem tenho devoção -
davam bom testemunho sobre meu coração.

Mas eis que adentraram servos do Demônio
com um pacto que diziam que fizera em vida,
o qual trazia até firma reconhecida...



II

Nessa hora, assustado, eis que despertei
julgando que decerto havia sonhado.
Mas logo percebi: ali bem do meu lado,
permanecia toda a imponente grei.

Deus olhou para mim com cara de zangado,
e o Tinhoso deu gargalhada sonora.
Tentando contornar, disse Nossa Senhora:
- "O bom menino estava só embriagado..."

- "No prontuário desta alma enfermiça
registre-se que zombou da eterna Justiça!"
- Um bom advogado é sempre o falso Cão!

Maria e os meus bons santos, os de devoção,
não escondiam ali seu descontentamento.
E eu caí pra trás, pois dera um passamento.


III

Deus perguntou então: - "Estará morto enfim?"
O Diabo respondeu: - "E a vossa onisciência?"
E foi o próprio Cão quem veio junto a mim
verificar-me o pulso: tinha experiência...

E disse o Falso: - "Ele acaba de morrer.
Vou conduzi-lo já às hostes do Inferno!"
Mas Madalena veio em meu corpo mexer,
e eis que respondi com um impulso terno.

- "Ele está vivo, Pai, e vamo-nos embora."
Em seguida ouvi dizer Nossa Senhora:
- "Por que é, Diabo, que tu o queres tanto?"

Mas antes que o Cão pudesse responder,
toda a turba divina ouviu-me ali dizer:
- "Ai, por favor, me levem a qualquer canto"


IV

Deus bateu o martelo e gritou irritado:
- "A mim, mortal, só coube te dar esta vida!
E a viver de novo agora és condenado!
Te resta uma opção: é a do suicida."

Ninguém mais disse nada. O Diabo, sorridente,
ajeitava um colar que tinha no pescoço...
Também me apontava um vermelho tridente,
tão quente que derreteria o mais duro osso.

Mas antes de saírem, Deus ainda falou:
- "Aqui, mortal, conheço pessoas felizes:
os padres, deputados, e os nobres juízes.

E até ouvi dizer que tu és um doutor...
Por que tu queres ser diverso de tal malta?
Me diz, pobre mortal: o que é que te falta?"


V

- "Ó Deus, sou o primeiro a não julgar-me dino
de que o Pai do Rei dos Reis sequer imaginar
comigo uma conversa possa entabular,
e só faço porque assim quis o Destino.

Precisam vos dizer que entre os nordestinos
que vivem tão somente para alimentar
essa grei de rapina, ao Nobre Carcará,
decerto há algum homem que também tem tino.

Entre a grei de cordeiros que pasta noite e dia
nos currais que alimentam os vossos pastores,
pra ser-se homem se padece imensas dores,

pois a nobreza aqui cheira a carniçaria.
E custa-me a crer - não tomeis como troça -
que tal patifaria é toda obra vossa..."


VI

Por um instante Deus ali baixou a crista,
e todo o grupo então se fez silencioso.
Discreta piscadela enviou-me o Tinhoso,
mas não retribuí, e desviei a vista.

Logo o Grande Juiz recobra a autoridade
e diz que de tais queixas nunca ouviu falar.
- "Vou, junto com Jesus, mandar averiguar.
E bom pra ti será que tal seja a verdade."

Uns iam silenciosos, o Diabo ria à toa.
Inda ouvi Deus dizer que só notícia boa
os seus nobres ouvidos dali receberiam.

Ali fiquei sozinho, entre vários caixões.
Pensava nas beatas: e suas orações?
Alguém sabe dizer para onde é que iriam?


Antônio Adriano de Medeiros