terça-feira, 15 de junho de 2010

DOIS SONETOS A THOT




I



Grunhindo sons incompreensíveis e nua,
disputando pedaços de carne e ossos,
vivia a horda simiesca. A Lua
- a que tem piedade dos seres mais grossos
por sabê-los infelizes e mergulhados
nas trevas - quis mudar-lhes o triste destino,
e certa noite lhes mandou um babuíno
com as palavras e os gestos delicados.
Por muito tempo serviu como secretário
dos deuses o macaco branco, e as leis
foram criadas, e mesmo o calendário
em que se anotava a duração do reis.
Porém a paz não nos trouxe a criatura,
pois foi gerada num momento de amargura.



II



Ave ou macaco, o deus sofria
e desencantava a sua solidão
sempre que cantava - fingindo que ria -
a sede demente no seu coração.
Ele demarcava o tempo que ia
porque toda noite mudava a feição.
Todas as palavras só ele sabia,
dos deuses ditava a determinação.
Era o sol da noite, sozinho no céu
com seus raios tênues ensinou carícia.
À grei inumana, muda e incréu,
ele a cada gesto ministrou perícia.
E quando partiu, não nos deixou sós:
legou uma estirpe - grandes faraós.


Antônio Adriano de Medeiros


A mitologia egípcia é coisa rara de se encontrar: Thot é um deus interessantíssimo, o deus dos escribas. Associado à lua, "sol da noite", era representado tanto por um babuíno que ensinou as palavras, os gestos, e a mímica aos homens, como por uma pessoa com cabeça de íbis (cegonha). Sempre suas representações trazem coisas associadas à escrita. Para agluns é um macaco, pra outros uma Ìbis, cegonha. O primeiro soneto ficou meio dessarrumado, tentei fazer em doze sílabas (sou mal na contagem, me perco nas sílabas tônicas), e só fala do Babuíno. O segundo usa as imagens de macaco e pássaro pra se referir aos deus, e me parece tanto mais bem feito, como mais bem retratador inclusive do homem e dos poetas, através da união das duas representações do deus. Eu, como Thomas Mann em José e Seus Irmãos (onde descobri o deus) prefiro o babuíno.

Mito riquíssimo, deu origem a uma linhagem de faraós (tutmés é "filho de thot"), como também à palavra "totem"(aqui eu arrisco, não foi visto nas páginas da Net. Mas não pode ser outra coisa, se bem que Freud parece se ater à mitologia de tribos de outros lugares quando escreveu Totem e Tabu, associando o totem à lembrança do pai morto no "banquete primordial").

Cabe ainda dizer que se julgava, naquela época, o coração como a sede da mente, permitindo assim um belíssimo trocadilho sobre a necessidade de falar: "a sede demente no seu coração". Na verdade, sem a linguagem nunca seríamos o que somos.

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