quinta-feira, 21 de outubro de 2010

 


O BARÃO DE MOMOICÓ
 
"Data de Momoicó" foi o primiero nome da região sertaneja onde nasci, após o Planalto da Borborema, entre os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Depois, em virtude de um rio da região, passou a chamar-se Data do Quipauá, e hoje há quem a chame de Sabugy (na PB) ou de Seridó no (RN). Para criar o Barão de Momoicó me inspirei em Ariano Suassuna, e em pessoas que conheço, inclusive alguns parentes e amigos, além de um personagem clássico da literatura universal que a leitura permite identificar.



O BARÃO DE MOMOICÓ


Meu nome é Klaus Kredul, sou o Barão de Momoicó.


Quando éramos o saudoso Império do Brasil, meu tataravô recebeu
o nobre título de Barão de Momoicó,
em virtude de ter herdado de seu avô
a Data de Momoicó,
pedaço de terra hoje em avançado processo de desertificação
incluindo ainda serras do Planalto da Borborema
e dando início ao sertão nas províncias
da Parahyba do Norte e do Rio Grande do Norte,
que lhes fora dado pelo Rei de Portugal.


Há tempos que alertamos sobre o hoje avançado
e irreversível processo de desertificação
da área que corresponde ao que os tabajaras chamam de Sabugy,
e os potiguaras, de Seridó.


Gosto das coisas antigas e não vejo por que usar gentílicos modernos
para referir-se às pessoas das duas tribos majoritárias
no litoral brasileiro na área das províncias;
eles nunca me deram razão pra pensar que deixaram de ser índios,
e ainda hoje vivem brigando,
como se vê nas diferentes denominações que dão ao meu reino,
quebrando ao meio uma mesma área geográfica
com finalidades que nem geopolíticas são,
mas meramente políticas,
dessa mesquinhariazinha de almas mixurucas;
ao bom leitor, devo dizer que fosse assim o gentílico correto ali seria Caeté,
tribo guerreira de quem não gostamos de lembrar,
inimiga de meus antepassados
e que precisou ser exterminada porque queriam as nossas terras,
não aceitavam a orientação civilizada que queríamos dar à região.


Durante anos nossa nobre estirpe conduziu de maneira ética,
responsável e filantrópica, os destinos daquele povo,
e havia ali ainda uma vegetação que ainda permitia chuvas,
e a quantidade de açudes, poços e cacimbas, era proporcional à população.


Quando, devido a eventos políticos suspeitos
ocorridos às vésperas do Golpe Militar de 1964
tiraram-nos do poder, outros homens – alguns
que até que têm tênues laços sanguíneos conosco
mas dado através de fêmeas - animais mentalmente mais frágeis -,
e que, de tão tênues, os afasta da verdadeira capacidade
de serem civilizados, pois não foram criados adequadamente,
não foram acostumados, desde meninos, ao convívio com reis e aristocratas
– pois bem, outros homens foram injustamente
alçados ao mando. Ai tudo começou a dar pra trás!


Ainda menino descobri, e confirmei isso com meus pais
e irmãos mais velhos, a inveja
que minha presença despertava nos outros;
uma inveja desesperada, não essa invejazinha normal,
domável, que os nobres também têm, mas a mortal inveja dos fracos:
não suportavam a comprovação de que eu, além de ter sangue nobre,
ainda era um gênio,
acostumados a essa coisa depravada de índios de se misturar loucamente,
e que até muitos parentes meus,
inclusive irmãos, adotaram por contágio com eles.


Claro que a mistura é útil ao ser humano,
mas não assim, não essa safadeza,
essa depravação pseudovanguardista
que na realidade só serve a poderosos e selvagens;
uns por precisarem de miseráveis pra escravizar,
outros - quando não os mesmos –
por absoluta atração inata pela depravação e selvageria.


Não vou descrever aqui todas as comprovações
inequívocas e inquestionáveis da inveja que de mim nutrem
os seres diminutos que me cercam onde for,
do contrário seria preciso escrever um romance,
e a pessoas como eu o tempo é melhor usufruído
de maneira que permita a escrever apenas coisinhas curtas,
próximas da poesia e do conto,
porque também eu não iria escrever
um romancezinho qualquer, de trezentas páginas...


Bom, o fato é que, contrariando a baronesa,
eu ainda insisto em manter ligações
com o velho reino de meus antepassados
- realmente é terrível perder a majestade! -,
de forma que ainda tenho lá um pedacinho de terra,
uma loja e umas casas na rua.


Como disse, gosto das coisas antigas,
e há tempos éramos os donos do comércio local
- claro que ainda somos, que a capacidade de ganhar dinheiro é difícil de tomar-
mas não a elite da estirpe,
hoje espalhada pelo país ocupa-se de outras coisas,
sempre enriquecendo o ser humano em todas as suas possibilidades.


De forma é que mantenho lá um pequeno antiquário sertanejo,
onde se pode encontrar ainda coisas dos velhos tempos,
móveis, roupas, armas, instrumentos musicais,
apetrechos de vaqueiro e de fazenda, coisas de beatos e cangaceiros,
santos, oratórios e coisas da magia,
e naturalmente, mudas de plantas sertanejas como o cardeiro, o xique-xique,
a faveleira, a jurema, a macambira e a cajarana, entre outras.


Pois bem, o que mais vendemos ali são as coisas religiosas,
inclusive o Pão Ázimo é por nós fornecido há séculos à paróquia,
para que seja transformado pelo sagrado ritual da missa católica,
no Corpo de Cristo;
vez ou outra levamos ao bom padre relíquias vermelhas.


Mas além da Bíblia Sagrada, da Cabala e do Corão,
o Livro Capa Preta de São Cipriano, coisinhas de Exu,
raridades da Santa Inquisição e da Bruxaria,
Tratados e objetos da Mitologia,
santos da macumba e do candomblé,
orações e coisas do catimbó, incensos,
gravações de música indiana e coisas de todas as religiões orientais
e do espiritismo, tudo pode ser lá encontrado
ou encomendado e entregue em 6 dias, no máximo;
a tradição dos seis dias remonta a minha avó,
esposa do criador da loja, e tem sido mantida. Como dizia ela:
"Além de Deus ter descansado no sétimo dia,
o freguês não pode esperar uma semana!
Devemos nos apegar ao número 6;
nosso negócio é comércio, não vamos ligar pra tolices
da numerologia e da magia..."


Mas as coisas andam difíceis no comércio,
até as coisas sagradas pagam muitos impostos,
só quem ganha dinheiro no país são os políticos, magistrados e bandidos,
tanto que às vezes a gente se confunde e pensa ser tudo a mesma coisa,
de forma que, baseado no que fizera outro Barão copiando países vizinhos,
eu inventei uma loteria na loja, o Jogo dos Deuses,
que, assim como o Jogo do Bicho,
tinha 25 deuses de Afrodite a Zeus,
passando por Apolo, Baco, Buda, Exu, Jeová,
Jesus, Maomé, Iemanjá, Mefistófeles, e tantos outros.


Além de um jogo que permitia ao apostador ganhar dinheiro
e instruir-se sobre as religiões,
o Jogo dos Deuses tinha também algo astrológico,
pois que apostas eram feitas no dia anterior
e logo às 8 horas da manhã se sabia qual o deus que reinaria àquele dia.


No começo foi como não poderia deixar de ser, um sucesso.
Mas logo os invejosos começaram a aparecer e reclamar;
um queria Deus no jogo: não podia,
Deus é qualquer deus, já está dizendo, seria pleonasmo.


Outros reclamavam de Jesus não ser o primeiro,
e até me chamaram de herege
e acusaram, de novo!, que tinha parte com o Cão;
ora, o maior sinal de respeito aos deuses
é respeitar a igualdade, e eu tive que seguir portanto a ordem alfabética.


E ainda dei ao Bom Jesus o número 10, o elemento modificador,
que mais poderia fazer? Fizera de Jesus o Pelé do Jogo dos Deuses!


Uma madre veio pedir pra incluir apenas santos do catolicismo.
Queria me levar à falência...


Porém, depois que deu Mefistófeles a 23 de Dezembro,
endoideceram:
Nem adiantou o fato de eu respeitar
até mesmo a véspera de dias santos importantes
e não fazer o jogo pra evitar problemas.


Mataram 3, um a 23 de dezembro, outra a 24,
e mais um nodia 25,
e não é que quiseram me responsabilizar pelos atos dos selvagens?


O fato é que precisei extinguir,
se definitivamente ou não eu não sei,
o Jogo dos Deuses.


Mas acaso pensa o leitor que me surpreendi
com a repercussão de minha obra?
Que nada, já estou acostumado!
Desde menino sei da inveja que nutrem com relação
à minha pessoa noventa e nove por cento de quem me conhece,
homem, mulher ou seres de outros gêneros.


Até com meu nome implicavam;
queriam que eu o aportuguesasse
pra "Carlos Crédulo" - Horrível, meu Deus! –
como se fosse possível mudar o nome da nobre estirpe
da qual sou herdeiro e que chegou a Portugal
há muito tempo, vinda da Transilvânia.


Antônio Adriano de Medeiros
DOIDOS DE MIM

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