sexta-feira, 4 de março de 2011

mais um poema imaginário

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POEMA IMAGINÁRIO DA LATA DE LIXO

"Noutras palavras, sou muito romântico"
Caetano Velloso


O lixeiro era poeta: enquanto
catava restos,
cantava versos
imaginários.

Imaginava haver poesia
na lata de lixo
que recolhia.

Além da poesia dos livros já gastos
e daquela dos livros pueris ou simplesmente ruins,
- porque a Poesia também tem direito
de ter livros ruins! -
o lixeiro imaginava sobretudo
os poemas jamais lidos por outrem
que não o próprio autor,
e os poemas nunca publicados
- aqueles poemas desempregados,
vagabundos, perdidos;
boêmios tristes porque sentiam a falta
do amor,
de uma leitora, de um leitor.

Aquele lixeiro talvez fosse romântico
- porque um lixeiro pode ser muito romântico! -
mas com certeza era meio doido,
ou não seria poeta
- digo bom poeta, porque os bons poetas
são sempre, no mínimo, meio doidos,
e os grandes doidos são sempre meio poetas -
e por isso imaginava
que sofria
por não poder resgatar
aqueles versos infelizes
que jamais seriam lidos;
se sentia
um coveiro de versos indefesos,
e por isso rezava
para que um obsequioso plagiador
tivesse santamente copiado
- nem que fosse pelo duplo plágio da psicografia -
pelo menos os vagabundos que fossem bons,
para que eles tivessem a felicidade
que têm esses meus maus versos,
de receberem a luz dos olhos teus, leitora.

E imaginava ainda,
o lixeiro que era um sonhador,
que o plagiador, que
- seja ele mortal ou uma entidade espiritual -
é sempre um ladrão puro e simples,
mas nesse caso poderia ser perdoado,
até porque os ladrões decerto também são necessários,
ou no mínimo inevitáveis.
E que o plagiador ideal seria aquele
que dissesse os mesmo versos
mas em outra Língua,
porque em outras palavras tudo poderia ser
muito romântico.

E chegava mesmo ao ponto
de imaginar
que os tristes e raquíticos e solitários versos
escritos no português falado no Brasil,
ficariam duplamente felizes
caso fossem plagiados e publicados
- ou seja, salvos! -
na globalizada Língua Inglesa.
(Nesse caso, imaginava,
os versos seriam salvos sem ressalvas.)

Será que aquele simples lixeiro,
que era evidentemente um bom cristão,
cometeria a insensatez de imaginar
que a Poesia na atualidade finalmente pôde
vender sua alma ao Diabo,
coisa que há muito ela desejava fazer,
e de bom grado os versos renegariam o próprio pai,
ou ainda - o que é bem mais grave -
a bela e sonhadora mãe,
para que pudessem se apresentar
no salão abrilhantado de um livro
impresso em papel especial,
e que receberia ainda mais a iluminação
dos holofotes de olhares requintados?

Temo que sim,
tenho quase certeza disso,
porque outro dia o ouvi dizer,
todo pomposo,
que "A Arte é maior do que o homem",
no único dia em que é aceito
à mesa de poetas oficiais,
num desses "Dia da Poesia"(!) que inventam por aí,
quando os poetas oficiais e os políticos
- que são talvez uma coisa só -
têm certeza de que,
além de serem sábios, bons e importantes,
são quase santos
porque promovem "a inclusão social pela Poesia"...

Na lata de lixo cabe muita coisa,
incluisive gente,
que o lixeiro um dia encontrou
um bebê na lata de lixo,
e esse poema foi realmente salvo;
como também acredito que foram igualmente salvos
(de quê não sei, mas enfim, foram salvos)
os infelizes e inúmeros fetos
que o mesmo poeta encontrou na lata de lixo,
e nessa lata poderia entrar o próprio lixeiro,
se não inteiro pelo menos partes dele,
porque o fato de alguém ser poeta e lixeiro
não o torna perfeito:
o lixeiro poeta é só um homem
como eu e você, leitor.

E o lixeiro poeta imaginava ainda,
e disso tenho certeza,
que a poesia que existe na lata de lixo
não precisa ser assim tão concreta
- se bem que muitos poemas concretos
parece que foram feitos de propósito
para a lata de lixo -
e que poderia haver muita poesia também
nas flores tão vermelhas
que uma ingrata recebera à noite
e já na manhã seguinte jaziam,
com bilhete apaixonado e tudo,
na lata de lixo.
No jantar saboroso que uma boa mãe
fez com tanto carinho,
e o maluco do filho mimado nem tocou,
saboroso jantar que tantas vezes ainda
iria parar na lata de lixo.
No bilhete terrível de despedida
de um quase suicida
que se arrependeu no último instante.
No bilhete mais terrível ainda
daquele suicida efetivo, bilhete que ninguém
teve qa delicadeza de guardar.
E sobretudo nos rascunhos iniciais
de alguém - de qualquer idade -
que acabou de aprender a escrever.

E imaginava ainda,
aquele lixeiro que era poeta,
que toda lata de lixo é um poema,
e que algumas são melhores até
que certos poemas oficiais,
ainda que perfumados;
e quando radicalizava na imaginação
- decerto com cachaça ou algo mais forte -
o lixeiro imaginava
que o poema da lata de lixo
poderia até ser melhor que
- Deus me livre! - certos livros.

Cá do meu lado
imagino
- Sim, eu também costumo imaginar -
que aquele lixeiro que era poeta
e que decerto ainda o é,
porque deve ser difícil alguém deixar
de ser poeta tendo sido
(Ou não, confesso que não sei
direito dessa coisas)
imagino, pois bem,
o que o romântico mas presunçoso lixeiro
iria pensar desse pretenso poema
tão desajeitado,
tão gauche na vida da poesia direita.

Imagino
que diria "Haja lata!" ou saco de lixo.
Eu pessoalmente prefiro o saquinho à lata,
deve ser porque moro em apartamento.
Os lixeiros gostam mais da lata,
deve ser porque é mais fácil pra eles
carregarem.

E assim aquele lixeiro
segue seu caminho
imaginando.
Nem morreu,
nem ficou rioco ou famoso,
nem deixou
de ser lixeiro. nem poeta.

Eu se tivesse a grandeza
de um lixeiro poeta
que sonha
resgatar os versos perdidos
porque os julga infelizes
sem uma leitora,
imaginaria
então um pequeno poema
sobre versos e vírus.

Versos e vírus são
parasitas obrigatórios.
Os vírus, da célula;
os versos, da senhora.

Todo verso é um vírus.

Agora eese poema aí
eu não escrevi,
só imaginei.

Tava com preguiça.

Foi só mais um pequeno poema imaginário.


Antônio Adriano de Medeiros
mar - 2011

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