segunda-feira, 14 de março de 2011

Lembrança de uma estrebaria no sertão




MEMÓRIAS DO SERTÃO DO SERIDÓ



A ESTREBARIA DE JOÃO GAVIÃO

Santa Luzia era bem menor e ao mesmo tempo muito maior ainda nos anos 60 e início dos 70 dos 1900. E isso fisicamente, em termos de limites territoriais mesmo. O fato se explica da seguinte maneira: embora a cidade em si fosse bem menor, o município de Santa Luzia do Sabugy até sessenta e pouco incluía ainda as atuais cidades de São José do Sabugy, Junco do Seridó, São Gonçalo, Várzea e São Mamede. Tudo isso contribuía para a gande feira do sábado, a qual contava ainda com a nobre presença do moradores do Talhado, os assim chamados Negros do Talhado, com seus utensílios de bela cerâmica vermelha, potes, frigideiras, panelas de todos os tamanhos, grandes caldeirões, e ferros de passar roupa, na verdade feitos pelas mãos femininas dos Talhado, como bem mostra o documentário Aruanda, de Linduarte Noronha.

Então aquela feira era uma festa, uma grande festa. Inclusive quando não tinha o grande Fogoió tocando seu fole de oito baixos, tinha sempre outro sanfoneiro, ou um tocador de pandeiro, ou ainda mesmo dois violeiros que traziam a Música, literal presença das Musas, e que deixa qualquer ambiente mais rico, ora em alegria, ora em tristeza, ora em outro sentimento, e por isso mesmo Thomas Mann fez o sábio e racional Settembrini dizer, em A Montanha Mágica, que até gosta dela, mas com a ressalva de que "a Música é politicamente suspeita".

Naturalemte que uma feira tão concorrida teria que ter meios de transporte para levar as pessoas até ela, e o meio de transporte principal do sertão naquele tempo ainda era o cavalo. Cavalos, éguas, mulas e jegues. Ma principalmente cavalos, muitos cavalos. E a estrebaria da cidade ficava exatamente defronte à minha casa. Melhor, minha casa foi construída examente defronte à estrebaria. Porque a velha casa sem reboco de João Gavião, sua grande casa que era também estrebaria, fora construída antes da "Casa de Agustim", à beira do Açude Velho, oficialmente Açude Padre Ibiapina, construído por esse futuro santo, já em proceso de beatificação. Porque os cavalos precisavam do açude para beber água e serem lavados. E outras coisas aconteciam também naquele açude em dias de feiras, coisas estranhas, eu menino descobri.

Gostava sobretudo do cheiro dos cavalos, um cheiro forte de ruralidade que tomava os arredores da velha estrebaria. Era-me expressamente proibido ir zanzar entre os bichos, examiná-los, pois havia o perigo iminente de um coice, quando não de ser atropleado pela imensidão de cavalos que todos os sábados era deixado ali por algumas horas, amarrada em frente à minha casa do outro lado da rua. E como eu gostava de olhar. Chegavam cedo, alguns solitários, outros em pequenos grupos, outros em grupos maiores de dez ou mais. Os homens desciam, e os cavlos eram amarados em tocos de pau que havia na lateral da estrebaria, e depois lhes retiravam as selas e se lhes dava milho e água. Havia água também na estrebaria, mas alguns eram levados ao açude, porque assim pareciam prgferir os próprios cavalos, gostavam de entrar na água, e também ali eram lavados. Hoje me arrependo de não ter acordado mais cedo naquelas manhãs, e de não ter ficado mais tempo contemplando aquela raríssima cena: pensava que fosse imorredoura. Hoje a ex-estrabaria é uma casa de dois pavimentos de um jovem empresário local, e o velho beco lateral onde os animais ficavam amarrados recebeu calçamento, como a rua. Meu paiscontruiu mais três casas e a passagem para o açude sequer existe mais, tendo o próprio Açude Velho sido reduzido a menos da metade de seu antigo tamanho por intervenção cirúrgica de um prefeito do passado.

O velho João Gavião, que há tempos se recolheu à dormida dos justos, era um homem de outros tempos. Se alguém se parecia com um cangaceiro em meus tempos de infãnica, esse homem era João Gavião. Magro, alto, e raivoso, parecia estar sempre bravo com alguma coisa; com seus cabelos e barba branca, costumava amolar amiúde seu enorme facão na janela de sua casa, bem defronte ao terraço da minha. Não importa sobre o quê ou com quem conversasse, parecia estar sempre com raiva, pois que falava alto, e aquele jeito bravo era seu próprio jeito de ser, homem decerto criado em tempo e lugar deveras hostil, o sertão de beatos, coronéis, e cangaceiros. Há que se avrescentar que o misterioso João Gaviião era inada um bruxo: conheicia o poder das ervas e era rezador. Já de Dona Luiza, sua boa esposa que igualmente se deitou para o sono restaurador das almas justas, eu gostava sem ter medo: era ela quem matava e tratava as galinhas lá de casa. Pegava no pescoço da galinha, dava um puxavante pra frente e depois torcia. Pronto. Era só dependurar por uma boa meia hora numa magueira, de cabeça pra baixo pro pescoço se encher bem de sangue, e em seguida depensar a bicha, abrir-lhe o bucho e "tratar", que era cortá-la em pedacinhos estrategicamente saborosos após o cozimento. Com o tempo foi-me concedido o direito de, caso não fosse sábado, inspecionar o ágild trabalho das mãos e da éixeira de Dona Luiza.

Minha Santa Luzia daquele tempo ostentava os generosos e pomposos epítetos de "Veneza Paraibana", e de "Cidade-Ilha do Sertão". É que, por causa dos três açudes, o Açude Velhos o Açude Novo, e o Açude das Freiras, o núcelo central da cidade, a cidade em si, ficava metade do ano totalmente cercada élas águas. Imagine então, rara leitora, o que é nascer em Veneza e depois descobrir-se verdadeiramente em um deserto... Mas isso deve assunto pra outro dia.

Duas lembranças principais me ocorrem agora sobre a estrebaria de João Gavião. Uma foi de uma prima, cujo nome não vou revelar, primazinha criança como eu que fora lá em casa num daqueles sábados inesquecíveis. O pai dela fumava, e dava preferência ao fumo de rolo, grossa e preta tira de fumo que se vende nas feiras, e que pode ser mascado além de fumado, sendo que ele mascado teria algum uso medicinal que já não me recordo qual. E a menina já tinha visto o rolo de fumo, obviamente, em sua casa antes. De repente chegou a hora de ir-se comprar o fumo na feira, e o bom pai pegou a filha pelo braço e ia saindo com ela para adquirir o rolo de fumo. Foi quando a atenciosa pequena, decerto querendo ajudar ao pai, mas também, quem sabe, querendo ficar mais tempo perto de mim ali em casa, viu um cavalo que estava, digamos, excitado, e apontando para o que julgava ser um rolo de fumo sob o garboso animal, exclamou:

- Ollhe, papai: tem um ali! Pegue aquele ali, papai!

O bom pai resmungou qualquer coisa tipo "aquele não serve, minha filha, já tem dono", e arrastou a pequena para a feira.

Mas a lembrança mais estranha que tive da estrebaria de João Gavião foi numa lembrança proibida.

Já era depois do almoço, e alguns cavalos já se tinham ido embora, a maioria. Acho que era já mesmo meio tarde, tipo 14 ou 15 horas, por aí Foi quando dois homens chegaram com seus cavalos para dar banho neles. E e meu irmão caçula, Decim, estávamos sobre o muro lá de casa, que dava diretamente no açude, mas a uma boa distância de onde estavam lá os dois com seus cavalos. De forma que não éramos vistos. Não sei bem por quê, mas de alguma forma achei aquelas vozes estranhas; às vezes afiunavam, às vezes engrossavam. Primeiro, bem amigos, eles lavaram seus cavalos. Depois, resolveram tomar banho, e caíram na água. Um então passou a dizer ao outro

- Sou seu amigo!

E repetiam isso um para o outro diversas vezes, gentilíssimos. Entretanto, eis que de repente, comecaram a brigar. Trocavam socos e palavrões, entre outras agressões. E eu e Decim ali assistindo tudo. E eram gritos de "Eu sou homem!". e "Tá pensando o quê, cabra safado?", e que tais. Porém, mais estranho ainda, de repente voltaram a trocar juras de amizade: "Sou seu amigo!"; "Eu também sou seu amigo!" E eis que foram amansando, e de repente se abraçaram e passaram a... se beijar na boca!

Por algum tempo ficaram naquela brincadeira de paz. Beijavam-se, e mergulhavam, os dois abraçados, e trocavam juras de amizade. E se beijavam e mergulhavam de novo. E trocavam novas juras. Só na hora de se irem embora é que de repente começaram a brigar de novo. Acho que foi pra disfraçar, pra não dar bandeira. Devia ter gente de olho ná as casas da prefeitura, do outro lado da rua, depois do beco da estrebaria de João Gavião. E aquele povo sempre foi falador...

Só muito tempo depois eu pude compreender que aquilo era coisa de cabra macho que se mete a beber cachaça no sertão que já não era mais de cangaceiros: os homens estavam ficando mais delicados.

Antônio Adriano de Medeiros
mar - 2011

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