quinta-feira, 19 de maio de 2011

O dia em que Jesus tomou cachaça com o Cão


Talvez seja este, de todos os cordéis que escrevi, aquele de que mais gostei. Não só pelo inusitado de se colocar Jesus e Satanás frente a frente tomando cachaça, mas pelas situações que surgem, pelos diálogos, as ironias, provocações, os ensinamentos que Os Dois Mestres aí me (nos) deram. Câmara Cascudo diz em "Vaqueiros e Cantadores" que o cordel de valor tem que ser descritivo com a cena ao redor, ser rico em detalhes e pormenores com relação à cena em si, não apenas a descrição geográfica, mas os motivos da eventual peleja, a assistência, quem sabe até as vestes dos protagonistas, penso eu. No cordel a seguir o mais difícl foi convencer os dois antípodas da Fé Cristã a sentarem, mesmo saber onde se passaria a peleja do Diabo com o Filho do Dono do Céu. Optei que seria no Céu, durante uma reforma que o Bom Lugar teria sofrido quando foi necessário abrigar as almas dos velhos comunistas que tiveram direito ao Céu após a Queda do Muro de Berlim. Assim, durante uma inspeção que realiza nos subúrbios do Paraíso, numa espécie de Favela do Céu (cabe dizer que os favelados também vão para lá e alguns, orgulhosos como o comunistas, preferem continuar morando em barracos, e não nas assim chamadas mansões celestiais), encontra o Diabo sentado numa mesa a beber sua cachaça. Decerto Bom Jesus bem sabe que poderia instruir a Polícia Celeste (Arcanjo Miguel e seu Batalhão, reforçado pro São Sebastião e tantos outros santos de armas) para policiar as favelas de lá, mas creio que não o faz para não constranger as boas almas dos ex-favelados da Terra. Na primeira estrofe, notar a grande apreensão que houve no Céu, não apenas pelo fato de Jesus ter ido tomar cachaça com o Diabo, mas também com o fato de o Pai ter dado um carão em Maria, ter feito uma reprimenda a Ela em voz alta. Afinal, não se sabe de outra ocasião em que Pai e Mãe discutiram na harmonia das hostes celestiais.

O Diabo, que já havia tentado a Jesus ainda na Terra, alude àquela Primeira Tentação quando O chama pra tomar cana (beber cachaça), mais ou menos querendo dizer - "Vai correr como da outra vez?", mas Jesus agora não é mais um simples mortal, e cede ao convite do Tinhoso só para lhe (nos?) dar uma lição, a de que é imune ao Mal. Vale ressalvar que, embora Jesus vá a favela beber com o Diabo, que parece ser uma espécie de traficante do Céu pois levava cachaça feita no Inferno para lá (no Céu só se bebe vinho), ele lança um olhar de censura aos presentes quando senta à Mesa do Diabo; ou seja, embora Jesus não mande a Polícia do Céu às favelas do Paraíso, Ele não gosta da libertinagem que ali ainda reina. Notar ainda que Jesus chama duas das almas presentes para que também bebam, com o intuito de que os presentes percebam logo as alterações que a Cachaça do Diabo provoca neles: um se mostra logo abobalhado, tomado de uma alegria tola, julgando que todos são bonzinhos, sem crítica alguma da situação; já o outro, digo, a outra alma, se mostra subitamente raivoso, logo quer brigar com Jesus pelo fato de Ele ter censurado o Diabo, que levara aquela relíquia (no ver da alma afetada) para o Céu.

E mais não direi da poesia, se bem que muitas provocações ainda o astutíssimo Diabo aprontará ali, até ser mais uma vez expulso do Céu.
Finalmente, cabe mais uma menção a Câmara Cascudo: reza a lenda que ele, Cascudo, que teria se formado em Medicina (mas nunca teria exercido) e era bem relacionado com os grandes poetas da época (teria morado grande parte de sua vida no Rio de Janeiro), - Nota: a respeito, ver comentári o do amigo natalense Oswaldo Ribeiro Filho, após o poema - queria tratar mais de sonetos e poesia estrangeira com outros poetas, e que foi Mário de Andrade quem um dia o inquiriu: - "Por que você não escreve sobre as coisas de sua terra?" Foi então que o Mestre se revelou, quando percebeu que a cultura popular também tinha seu valor. Por isso dediquei este cordel ao poeta português Nuno Dempster: foi ele quem, na passagem do milênio, mais me estimulou a escrever cordéis, e ainda teve a gentileza de prefaciar o Zoológico Fantástico, onde repousa o cordel da Cachaça do Cão.
AAM

UMA CACHAÇA DE JESUS COM SATANÁS


Para Nuno Dempster



No dia em que Jesus Cristo
tomou cana com o Cão,
o céu quase vem abaixo
de tanta apreensão:
Pai mandou chamar Maria
para lhe dar um carão.

"Terá perdido a razão?"
- disse-lhe o Pai, irritado -
"Como é que nosso filho,
um rapaz tão bem criado,
foi logo beber cachaça
com o Anjo Desgraçado?"

"Ó Pai, não fique zangado!"
- responde a Santa Maria -
"Decerto o Nosso Menino
agiu com sabedoria:
quem sabe se tal encontro
não vai findar em poesia?"

Na manhã daquele dia
Jesus fora averiguar
a construção de umas casas
no estilo popular,
pras almas dos esquerdistas
que acabavam de chegar.

Pois Ele ouvira falar
que alguns intelectuais
que lá no céu adentraram
julgando-se simples mortais,
viram nas mansões eternas
mordomia por demais,

e que logo foram atrás
de mudar de residência,
dizendo que casa grande
lhes parecia indecência:
quando contaram ao Pai,
Ele tomou providência.

No Lar da Onipotência
há riqueza em abundância:
a felicidade ali
se compara à da infância;
querer viver como pobre
lá parece ignorância.

Mas diante da inconstância
da fé de intelectuais,
o Bom Jesus resolveu
atender aos seus ais
com medo que eles corressem
aos braços de Satanás.

Porém desejavam mais
os radicais de esquerda:
saudosos de suas vidas,
protestaram contra a perda
da vida que há no subúrbio,
quintais com cheiro de merda.

Alma que vai pro céu herda
o direito de escolher
a forma como prefere
a eternidade viver,
por isso mandou Deus Pai
um condomínio fazer.

Jesus pois foi conhecer
os subúrbios da cidade
onde moram as almas puras
livres da iniqüidade;
mas os limites do céu
têm fronteiras com a maldade...

Bom Jesus tem liberdade
de em qualquer casa entrar.
Sendo assim, no paraíso,
ninguém deu de estranhar
ao ver o Seu semblante
surgir naquele lugar.

Quando o céu encontra o mar
há vilas de pescadores
onde o Cão costuma andar
a propagar seus rumores:
ele gosta de tentar
almas de ex-pecadores...

Dona Maria das Dores
deixou o copo cair
na hora em que Jesus Cristo
em seu umbral viu surgir;
mas, com a boca enfarofada,
disse: - "Que bom vê-Lo aqui!"

- "Eu louvo a todas daí,
almas santas e honradas!",
- Foi dizendo o Bom Jesus
palavras iluminadas,
mas lá de trás se ouviu:
- "Nem todas são as louvadas!"

Quem do Diabo ouviu cantadas
pode agora estremecer,
pois estavam frente a frente
o Mestre do Bom Saber,
e aquele vil pilantra
que o nome não vou dizer.

- "Jesus de mim vai correr,
ou senta a tomar um trago?
Acaso esteja sem grana,
pode sentar que lhe pago!
Até mesmo adversários
podem trocar um afago..."

Naquele clima aziago
Bom Jesus falou assim:
- "Não costumo, Anjo Caído,
conversar com gente ruim,
e só bebo se for vinho
na Ceia de Eloim."

- "Oh, não desfaça de mim
só por em Seu Reino estar:
respeite o lar de uma alma
que soube Lhe respeitar
durante a vida na Terra
e logrou o céu ganhar.

Quando o Senhor entrou cá
eu já estava sentado,
e do dono desta casa
portanto sou convidado:
retire-Se, ou Se comporte
qual homem bem educado!"

- "Devo dizer obrigado
por tua nobre lição?
Sei que só moram no Céu
almas de bom coração,
mas conheço tua astúcia,
incorrigível Tição!

O Mestre da Traição
fala com sinceridade?
O Eterno Inimigo
semeando uma amizade?
Cheio de boa intenção
o velho Rei da Maldade..."

- "Meu Deus, tenha piedade...
Isso é coisa muito antiga!
Vocês hoje é que alimentam
intolerância e intriga:
há muito que Os procuro
para uma conversa amiga.

Não precisa fazer figa
para sentar ao meu lado:
converse um pouco comigo,
tem medo de mau-olhado?
Só um copo de cachaça
vai deixá-Lo embriagado?"

- "Vou aceitar, descarado,
para que fiquem sabendo
quem realmente tu és
e o que estás pretendendo:
conheço a mercadoria
que aqui estás vendendo!

Mas não penses que me rendo
à tua falsa amizade;
tua liberdade, Lúcifer,
é escravidão na verdade.
E quem trouxe a tal cachaça
para beber na cidade?"

- "Digo com sinceridade,
- verdade é coisa que tenho! -
Esta cachaça foi feita
lá mesmo no meu engenho:
sempre trago umas garrafas
quando no Céu me embrenho."

Bom Jesus franziu o cenho
quando à mesa sentou,
e uma olhada inquiridora
aos circundantes mandou;
todos ali perceberam
que Ele os censurou.

E então Jesus chamou
para a mesa do Tição
dois dos que ali estavam,
para uma demonstração
de como reagiriam
quando provassem a poção.

E disse, com emoção:
- "Aqui todos têm, de graça,
um vinho de qualidade
que a ninguém embaraça,
mas vamos beber da cana
para ver quem se desgraça!"

Logo o Cão diz, por pirraça:
- "Vejo que o Senhor mudou:
Lembro que O tentei há tempos
mas que Você recusou;
se hoje aceita a oferta,
decerto Se enganou..."

O Bom Jesus retrucou:
- "Eu lembro que, no deserto,
jejuei quarenta dias
quando estavas por perto,
e naquela ocasião
o meu agir foi o certo.

Mas todos sabem, decerto,
que ao morrer ressuscitei,
e então subi ao céu
e com o Pai me irmanei:
posso provar teus venenos
porque não me sujarei!"

- "Agora entendo, Meu Rei,
a santa sabedoria:
Aqui no céu, certamente,
existe aristocracia:
uma plebe de almas puras
a Corte diferencia..."

Sem ligar pra baixaria
armada por Satanás
tentando uma desavença
entre Ele e os imortais,
Jesus prova da cachaça
e logo diz: - "Quero mais!"

Qual Dimas e Barrabás
a Seu lado no Calvário,
os convidados à mesa
provam a cana do falsário,
e logo um deles já diz,
com uma cara de otário:

- "É digna de um relicário
cachaça tão saborosa!
Confesso: nunca provei
de coisa tão preciosa
em companhia tão nobre;
por isso, estou todo prosa!

Qual beija-flor que à rosa
busca seu néctar vital,
peço ao Nobre Visitante
da Casa Celestial
que me ceda mais um copo
dessa poção infernal!"

Rindo, o Cão diz: - "Afinal
estamos em harmonia!
Este néctar é o segredo
da fruição da alegria,
e agora a meus comensais
declamo minha poesia:

Feliz e doce é o dia
prenhe de felicidade
em que a feitiçaria
da substância verdade
à nossa mente ilumina
com espiritualidade!

Ò doce ebriedade
que acalma o padecer,
trazendo saciedade
ao limitado Ser,
antes de ser só saudade
num futuro apodrecer...

Que em nós faça crescer
o amor à liberdade,
permitindo-nos esquecer
noções de moralidade:
dai-nos, substância fria,
prazer de animalidade!"

Jesus, com seriedade,
dá forte murro na mesa
provocando no recinto
indisfarçável surpresa,
e O escutam dizer:
- "Diabo, Rei da Safadeza,

tua astúcia e sutileza
por Mim já são conhecidas:
os que buscam a liberdade
em tuas muitas bebidas,
em troca se tornarão
eternas almas perdidas!

Eu conheço as feridas
e as seqüelas mentais
que essas poções urdidas
lá nas hostes infernais
trazem a quem prova delas:
mesmo a almas imortais!"

- "Jesus, assim é demais!"
- Era o outro convidado
que até este momento
permanecera calado,
mas depois de duas doses
mostrou-se muito irritado -

"O Senhor tá enganado!
Olhe, não me leve a mal,
mas o Nosso Visitante
mostrou-se um cara legal,
e eu para defendê-lo
posso até sair no pau!"

Naquela hora fatal
houve um deixa pra lá,
e a alma embriagada
levaram pra descansar:
Sabiam que o Bom Jesus
logo a iria perdoar.

E ouviu-se Ele falar:
- "Viu aqui quem tá presente
como o astuto Satanás
corrompe ao puro e inocente,
e fala de podridão
a quem vive eternamente!"

- "Acaso o povo é inocente?"
- viu-se o Diabo retrucar -
"Incapazes vigiados
que nunca podem provar
nada que os possa fazer
de Teu Poder duvidar?"

- "Lúcifer, vou-te expulsar
de novo do Paraíso,
pois queres fazer as almas
perderem o seu juízo,
e chamo a Corte dos Anjos
pra te pegar, se preciso!"

- "Bom Jesus, eu tomei siso
e já vou saindo agora,
porém permita-me mandar,
antes de ir-me embora,
lembranças ao Teu Pai,
e Àquela Bela Senhora...

Acaso não está na hora
de o Teu Pai assumir
logo o Seu Caso com Ela
que todos sabem aqui,
finalmente a São José
deixando de iludir?"

- "Tu agora vais sair
e não mais terás retorno!
Como ousas desafiar
os Mistérios sem adorno,
tratando o bom carpinteiro
como se fosse um corno?

E não mais ao fogo morno
então te condenarei
caso ouses retornar
à terra onde Sou Rei:
se aqui tornares, Lúcifer,
Eu Mesmo o destruirei!"

Nessa hora, ao que sei,
corre o Diabo em debandada.
Jesus voltou ao Castelo
com a noite iniciada,
e durante toda a semana
- se o espírito não me engana =
ouviu-se o Pai dar risada.


Antônio Adriano de Medeiros

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