sábado, 16 de julho de 2011

meu primeiro soneto

os retirantes - Portinari


Em junho de 1986 eu fiquei o mês inteirinho em Antenor Navarro, hoje São João do Rio do Peixe, no alto sertão da Paraíba, cumprindo o Estágio Rural Integrado, obrigatório aos doutorandos em Medicina pela UFPB, pra que se conheça a realidade da vida do médico no interior do Estado. Pois foi lá que tive, sozinho, uma das mais difíceis experiências de minha vida, o meu primeiro diagnóstico de morte de um paciente. Ficara eu sozinho no hospital, o médico, pessoa muito educada que já fora prefeito da cidade, acho que era "Dr.Benício" o nome dele, me avisou que ia a uma cidade vizinha, fazer uma cirurgia ou outro atendimento qualquer. Aí me chamaram pra atender um paciente, entre outros. Era um menininho de mais de um ano já e a mãe chegou com ele no braço, balançando-o, como a fazê-lo se mexer. A pele estava muito fria, lembro, mas ele parecia estar dormindo, e uma enfermeira foi quem me fez ver a realidade. Foi muito ruim ter que dizer àquela mãe que o seu filho estava morto, era como se fosse eu o responsável por aquela morte, se bem que a criança já chegou morta ao hospital, mas vá dizer isso a um estudante do último ano que acha que vai curar todo mundo... Sei que eu, que levara comigo As Flores do Mal e o Eu, Baudelaire e Augusto dos Anjos para Antenor Navarro, devo àquela cidade o meu primeiro soneto, escrito naquela noite. Há um verso de Augusto dos Anjos em "Queixas Noturnas" assim: "o coração do poeta é um hospital onde morreram onde morreram todos os doentes"; eu não conseguia deixar de pensar naqueles versos, que se eu me tornasse médico, seria tão incompetente que todos os pacientes de meu hospital morreriam... O soneto é tipicamente de gente de Medicina, com termos como "longilíneo" e "membros inferiores", e o sonho de que a enfermaira é um lugar sagrado, mas já tem uma idéia interessante, metáforas, e uma ironia bem aguda. O segundo quarteto quer dar a idéia de que os leitos da enfermaria estão ocupadois por cadáveres.

Interessanet que meus colegas estudantes e mesmo residentes em psiquiatria da UFPB a quem mostrei o soneto diziam sempre algo tipo "O esquizofrênico também escreve coisas interessantes..." Eles tinham apenas (alguma) cultura médica, se é que se pode dizer isso diante da gentileza com que recebiam o neófito sonhador.

Bom, o título do poema, "de agnóstico", pode ser visto de muitas maneiras: é um diagnóstico de algumém que não acreditava nem na seu próprio sacerdócio, um agnóstico de si mesmo também, como veremos ao lermos o soneto.

Enfim, devo dizer que Caicó, uma cidade do Rio Grande do Norte, me aceitou como diretor-médico de um hospital lá em 1990, e só mais de dois anos depois, uma paciente assistida por outro médico, veio a a falecer.

O mais é poesia.

absaam



DE AGNÓSTICO

às noites queixosas de Augusto

Não fora a Peste. O que teria sido?
Por que havia cadáveres demais no necrotério?
Mesmo o gripado tinha falecido...
No outro dia muita gente foi chorar no cemitério.
Nos poucos leitos ocupados de uma enfermaria
- lugar onde sempre deve haver uma esperança! -
repousava apenas uma dor tão fria
que gelava os ossos de toda a vizinhança.
Todos os pacientes do hospital estavam mortos!
O último a morrer, um velho rouco
- longilíneo e de membros inferiores tortos -
gritou. Um grito abafado por um compromisso ético.
Ele falava de um assassino louco...
E esse maníaco, soube-se depois, era o próprio médico.


Antônio Adriano de Medeiros

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