quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

os conselhos de Satã

A tentação de Cristo - Botticelli


Acredito piamente que quem conseguir ler o cordel abaixo desprovido de preconceitos religiosos verá nele um grande poema. Porque a situação criada é plausível, os argumentos são muito bem elaborados, e, do ponto de vista materialista mesmo para uma pessoa do senso comum, o protagonista poderia estar com a razão. Além disso trata-se de um cordel em septilhas com a pegada da deixa, essa coisa de se começar uma estrofe sempre rimando primeiro verso com o último da estrofe precedente. E há ainda o fato de ser abordado aí uma das passagens mais conhecidas da literatura ocidental, a saber, a Tentação de Cristo, quando Jesus cumpre o rito de passagem de ser testado quanto à magia, ao orgulho e à fidelidade.

O homem que viu a criatura havia por três meses ingerido bebida de alto teor alcooólico, cachaça, diariamente até o coma alcoólico, e de repente para a ingesta; é natural pois que sofra a síndrome de abstinência com delírio, o chamado Delirium tremens, que é, apesar da duração de cerca de uma semana, uma das "formas de loucura" mais assustadoras que existem, para quem a vê: a pessoa sua intensamente, tem tremores notáveis e inclusive pode ter convulsões (casos mais crónicos), e acusa visões aterrorizantes, julgando que está sendo perseguida, ameaçada, e querem destruí-la fisicamente; as visões, que se movem e se expressam através da voz humana, variam de acordo com o nível cultural da pessoa, mas geralmente incluem bichos e seres monstruosos, sendo basntante comum a presença do Sr. Diabo. Tais bichos ou monstros ou seres mitológicos (um europeu que pude acompanhar era acossado por sátiros e centauros) podem ser diminutos ou gigantescos, e inclusive alternarem o tamanho; o Diabo mais comum é preto e tem os olhos vermelhos, e é meio pigmeu, pelo menos onde pude conhecê-lo, isto é, saber de sua aparência, na Grande Natal e cidades da redondeza num raio de mais ou menos 100Km.

Mr. Devil quando se apresenta no cordel é um monstro pequenino mas logo se agiganta e, por estar em um poema, em seguida adota a forma de um homem normal, para poder ser mais convincente. Lamentando ter falhado em sua intenção de livrar Jesus da cruz, relembra alguns fatos narrados no Evangelho de Mateus, mas dando a eles uma interpretação idiossincrática, que poderia ser a do sneso comum: alguém que conhecendo sua sina prefere morrer, e fica mesmo vários dias sem comer nem beber nem fazer sexo, certamente estaria com sintomas inequívocos de uma síndrome depressiva; igualmente se alguém chega pra você emagrecido, sujo, e se dizendo rei ou Filho Dileto de Deus, seria de se esperar que você julgasse que ele estava delirando... Embora não fosse, evidentemente, o caso ali, mas o Sr. Diabo teria que argumentar de quê forma? Imaginemos então um filho normal que julga que ser morto da forma mais cruel é desejo de seu pai: não seria delírio grave aos olhos de hoje?

Vale salientar ainda que todos os argumentos de Satã, se dizendo bem intencionado, apresentando argumentos racionais mas que do ponto de vista cristão são blasfêmias sérias, e principalmente no final se dizendo triste por ter "falhado" e que até chorara diante da Morte de Jesus contribuem para reforçar ainda mais a imagem de Mentiroso e Fingidor do Velho Diabo, dando assim mais veracidade ao poema.

Há ainda um bônus curtinho, que ninguém se dedica impunemente a conselhos de tal naipe. É sobre o que somos.

absaam


OS CONSELHOS DE SATÃ


"Então foi conduzido Jesus pelo Espírito
ao deserto, para ser tentado pelo diabo" (Mt, IV, 1)



Não são para ti leitor
- eu digo originalmente -
os conselhos que Satã
oferta neste repente:
foi um certo Galileu
quem do Diabo recebeu
tais conselhos de presente.

Porém são de toda a gente
e também para ti são,
já que são versos do vento
que vagam pelo sertão
qual aboio de vaqueiro,
versos de cão Conselheiro,
estes conselhos do Cão.

Sou um homem da Razão,
não creio em feitiçaria,
mas vou contar ao leitor
uma história de magia
que se passou com Tonhão
certa noite, no sertão.
Foi lá em Santa Luzia.

Pois Tonhão, naquele dia,
decidira interromper
os dois meses de cachaça
que vinha sempre a beber
até que adormecia;
era assim que conseguia
sua tristeza esquecer.

De noite deu pra tremer
de frio, pavor, loucura...
Viu coisas de lodo e vício
e flores da sepultura.
Mas então ouve um pipôco,
pensa ter ficado louco...
- Então surge a Criatura!

Era pequena a figura,
mas logo deu pra crescer.
Virou um homem normal,
o convidou a beber.
E falou assim pra Tonho:
- "Eu sou o Cão, o Medonho.
Prazer em te conhecer!"

E fez Tonho adormecer
com uma estranha canção,
de ladainha e lamento,
de saudade e perdição...
Viu-se o Cão, amargurado,
lamentando ter falhado
na "chance da Tentação."

- "Tenho Jesus como irmão,
pois qual Anjo fui gerado
pela vontade do Pai;
só depois fui Enjeitado...
E foi qual Anjo de Luz
que fui procurar Jesus,
e lamento ter falhado...

Eu disse ao Condenado
para não se iludir
com a humana criatura
que o iria trair...
Mas ele, cabeça dura,
respondeu com amargura:
-‘Eu sei onde quero ir!' -

Bem que tentei impedir:
dei conselhos, fiz sermão...
Quis livrar do mau caminho,
lhe abri meu coração
e disse: - 'Não vale a pena
por gentalha tão pequena
se sacrificar, irmão!'

Falei da vera paixão,
de sexo, prazer e glória;
dinheiro e corrupção,
da guerra - Mãe da História!
Contei de Roma e Egito,
e do poder infinito
que nos concede a vitória.

Que sua luta era inglória,
seu sacrifício era em vão;
que a tal da raça humana
não merece a Salvação;
que do que valia a pena
uma certa Madalena
sabia qualquer lição...

Foi quando a Depressão
deu seus primeiros sinais...
Eu vi o Irmão chorar
e não querer comer mais...
Era tão profunda a mágoa
que nem mais quis tomar água
em seus delírios banais...

Mas insisti: Satanás
é sempre bom conselheiro
quando identifica alguém
com jeito pra feiticeiro;
e Jesus tinha talento:
com o meu conhecimento
dominava o mundo inteiro...

Não só pra catimbozeiro:
levava jeito também
pra ser um grande estadista
ou outro homem de bem;
advogado famoso,
um médico... mas, orgulhoso,
só pensava no além...

Eu muito tentei: ninguém
pode dizer - 'Satã trai
quando vê que um dileto
perto do abismo vai...'
Pois eu gritei pro Irmão:
- 'O que queres, fanfarrão?
Tomar o lugar do Pai?

Pois Ele dali não sai!
Mesmo que chegasses lá
te unirias a Ele
para poder governar;
porque Deus é A Direita:
Ele sempre se ajeita,
fica no mesmo lugar...'

Sei que tive com Jeová
desavenças no passado...
Isso foi há muito tempo:
quero ser Seu aliado!
Gosto muito do Inferno...
Além disso sou eterno,
E nem fui crucificado!

Vi Jesus alucinado
dizendo coisas sem nexo;
quase morrendo de fome,
de sede e sem fazer sexo.
Querendo igualar-se ao Pai,
empurrou-me e gritou - 'Sai!',
quando quis dar-lhe um amplexo...

Num discurso desconexo
falava em 'Boca de Deus',
depois chamou os humanos
de 'queridos filhos' seus...
Magro, sujo, desnutrido,
se dizia o escolhido
pra ser o rei dos judeus...

Eu disse: 'Jesus, os teus
outros sonhos eu respeito,
mas esta história de rei
me deixa insatisfeito...
Cuidado com os romanos:
os veros reis são tiranos,
podem te pegar de jeito...'

Mas se dizendo o eleito
para salvar os humanos
ele não me dava ouvidos
em seus desejos insanos:
tudo já estava escrito;
ia só cumprir o rito
de desígnios soberanos.

Eu conheço pais tiranos
- tenho muitos nos Infernos -
porém nunca entenderei,
pelos tempos sempiternos,
como alguém bote botar
o filho crucificar
entre os desejos paternos...

E por motivos fraternos,
de Jesus apiedado,
levei-o a lugares altos
e lhe mostrei meu reinado:
que tudo seria seu,
caso se tornasse meu
- bastava vir pro meu lado!

Mas ele, alucinado,
deu de me tratar tão mal...
Me chamou de mentiroso,
de falso, vil, imoral...
Nada mais pude fazer
a não ser me recolher
triste ao reino infernal.

Quando penso no final,
em seu sofrimento, tanto...
Sempre sinto alguma culpa,
às vezes caio em pranto...
Pra meu sofrer minorar
eu resolvi confessar
o que contei neste canto..."

E então, qual por encanto,
foi-se embora Satanás,
porém sua razão Tonho
não recuperou jamais.
Não julga que teve um sonho;
Sentiu pena do Medonho
e quer vê-lo uma vez mais!

Mas sendo Tonho um rapaz
cristão e semiletrado
como pôde colocar
na boca do Degredado
tão terríveis argumentos?
Tão blasfemos pensamentos
de onde os terá tirado?

Eu ando preocupado
com o caso de Tonhão,
pois era muito complexa
a sua alucinação:
delírio tão trabalhado
pode ter sido inspirado
na verdade pelo Cão?

Sou um homem da Razão,
porém não sou radical.
Toda humana criação
me parece natural.
Creio no poder do Bem,
mas deve existir também
terríveis Forças do Mal.

Estou chegando ao final
desta história de pavor,
porém devo confessar
- em respeito ao leitor -
que além de cachaceiro
Tonhão é bom violeiro
e exímio cantador.

E assim o meu labor
termina tal qual queria:
sem truques, sem pilantragem,
sem mentira nem magia.
Pois com poeta acontece
de, mesmo quando enlouquece,
estar fazendo poesia.

Antônio Adriano de Medeiros


(bônus)


SOBRAS DA ORGIA

Ali no Éden,
quando o Criador
soprou o pó
e criou Adão,
já tinha aspirado muito?

Antônio Adriano de Medeiros