domingo, 21 de outubro de 2012

diários de amantes - mamãe Dolores!



O blog, toda a criação humana, poesia, trabalho, palavra, espelha o homem, espelha a alma do homem, extensão simbólica de seu corpo que toma tempo e espaço e se expande lá para a frente... Ora, quando nosso corpo, tido como quase indevassável, de tão querido e confiável que é, nosso aliado corpo, é invadido, tomado de assalto por um visitante absconso das sombras, o qual não apenas consegue instalar-se em região nobre, escondida, vital, como ainda despejar os antigos habitantes do lugar substituindo-os por farristas forasteiros, vorazes, mal educados, sedentos - uns mortos de fome! - que só querem a Revolução do Proletariado Biológico, e assim agem espalhando a revolução permanente através de seus soldados que podem ser considerados aí simiescos, e logo do sítio invasor surge uma falência grave que vai se espalhando por todo o país corpo, comprometendo sistemas outrora perfeitamente funcionantes, tendendo assim à volta ao Caos, à destruição do equlíbrio dinâmico - ó a bela, pacífica, encantadora homeostase! - no país corpo invadido, pois bem, é natural que tal invasão, por sua importância, primariamente nefasta, se manifeste também na alma do Sequestrado.

Daí que aqueles que não suportam relativamente longos discorreres sobre la Maladie, la Mort, et aussi la Vie e l'Amour  - ás vezes quando escrevo tem essas invasões também, de expressões estrangeiras... As invasões também são bem vindas, elas são da Vida, elas são naturais...  Pois bem, os que não conseguem ler muito sobre a doença, a morte, mas também sobre a vida e o amor, terão que aguardar não o desfecho total - poemas de outra estirpe sempre os há, o Zoológico, fantástico, revisado, pronto, está no computador, é só ter força pra levar ele ali onde dizem me aguardam, o qual poderá ser útil numa overdose de melodias mielômanas, e outros escritos também podem dar um descanso pelo menos semanal...  - do embate, da batalha, da guerra, da luta autocida ou redentora em que acabei envolvido. Esse final, esse quem vence a guerra, o cisma, não pertence só a mim, sequer ás possibilidades humanas, se bem que, confesso, gostaria de triunfar, e não já ir dormir com Bactéria.

O que queria dizer, sem parecer desagradável nem mal agradecido, é que, nas listas de poesia, não precisa mais ficar só comentando o lado doentio, intesificando uma suposta fragilidade, vulnerabilidade, carência ou coisa assim, ensejando pronta e completa recuperação, falando de sofrimento, força e esperança... Isso eu já tenho, isso eu já sei, isso todo mundo diz, não é disso que estou atrás, se nada tiverem a dizer sobre o que foi escrito, não precisa dizer nada... Salvos, naturalmente, aqueles que realmente me conhecem como próximo, minhas colegas, meus irmãos, meus amigos que estão empenhados, sempre a postos, sempre gentis, carinhosos, pacientes (mão dupla!), tão educados. 

O que posso dizer é que respeito o Sr. mieloma, é de família muito antiga, não posso negar que seja de estirpe nobre, mas não aprecio muito essa coisa de pegar a pessoa à força assim como ele me pegou, o malvado, me invadiu, me instilou seu veneno, me fecundou, e agora estou aqui emprenhado, grávido da Morte, gerando filhotes minúsculos, imaturos, incompetentes, socialistas tresloucados e radicais imersos em bandeiras e um rio vermelhos, e só me resta esse discutir, esse tentar reafirmar-se diante da Vida que ameaça fugir, que ser mãe assim é tentar gozar no Inferno.

- Perséfone! Cadê você?

A terceira parte dos diários de um mieloma múltiplo é o segundo texto, crônica, artigo, ensaio, poema em prosa, como queiram - um diário é sempre um diário, acho que basta dizer o diário do Sr.  mieloma - e vai precedido por aquele que considero meu primeiro poema intencional, deliberado, maduro, verdadeiro, do qual até já falei aqui no blog, de 1984-85, quando tinha o maior medo de a Poesia me afastar da Medicina, e vivia me contendo, até porque a gente não sabe se quando cisma que pode ser poeta não está em verdade apenas enlouquecendo em um grau mais grave, ou mesmo se o futuro nos dará mais Tempo, alguma fama, uma pequena alegria... É o pequeno poema Inércia que precede os oujtros textos, sendo porém que, nesse caso atual, preciso agir, com ajuda de pessoas boas, sábias, sensatas, e competentes, do contrário, a terceira possibilidade logo virá.

A flor que grassa, encanta, perfuma e fecunda é a mesma que apodrece.

Ele hoje, cioso de uma "extrema criatividade mutante que eu tenho e você não tem, Cabra Marcado!", conforme justificou, tentou inovar na forma, mudando o lado de apoio do seu texto, dando uma inovada aí... É um poeta bem moderno, bem contemporâneo, um poeta da Net, meu ilustre sucedâneo...

Feita pois a introdução, apresentado o texto mais importante, só me resta ir deitar-me não com a mulher que eu quero na cama que não escolherei na Pasárgada de Manuel Bandeira, mas onde posso, com quem posso, aconchegando meus ossos... Meus diamantes falsos, signos em folha de papel, miragens de silício de um oásis encantado nas areias de um deserto não totalmente esquecido e pobre, mas ainda sem a devida fama...

Mas diamantes são sempre De Amantes.

- Chegue, minha Rainha, pode vir...



absaam




INÉRCIA


- Por que me reprimir?
Por que controlar?

Deixo-me-ir.
Quero ver até onde é que vou,
quero ver aonde vou parar.

Em Poesia,
Sanatório ou Flor?
- Sem alegria.



                     Antônio Adriano de Medeiros




diários de um mieloma múltiplo - 3



Há algo de extremamente poético em todo câncer.

Simples: só há poesia onde existe o improviso. E quem é o improviso, quem abandona a mesmice do cansativo e ocioso repetir sem fim na gênese mesma da vida, na multiplicação celular? Sem o câncer, sem esse tal tão mal falado, esse incompreendido, esse bode expiatório, esse eterno condenado ao bullying, à incompreensão e ao preconceito - ou seja, inclusive sem mim, sem o mieloma múltiplo - o Homem não existiria como tal, porque não haveria a Ideia do improvisar, e até do livre-arbítrio...

O câncer também é da Criação, eu também sou um Filho de Deus! E onde pensam, mesmo, que Ele foi buscar inspiração para o livre-arbítrio?... Toda a Poesia e todo o Livre-arbítrio estão potencialmente contidos no Câncer - em mim! Se Alguém que se diz todo-sábio e todo poderoso é considerado o Criador da Poesia e do Livre-arbítrio, é bom que saibam que tais criações foram inspiradas, geradas, e portanto copiadas, da essência criadora do Câncer.

A única diferença ululantemente notável entre nossas obras e aquelas atribuídas ao outro Criador, diz respeito ao Tempo, à utilidade, e à capacidade de, com alguns limites, se autoconhecer e se autodeterminar em nossas distintas, mas semelhantes obras. Somos deuses impulsivos e irreponsáveis, nós cânceres...

- Se gosto do nosso símbolo, se me apraz ser sinônimo de caranguejo? Ah, isso me é indiferente... O simples caranguejo é também uma criatura mortal, mas há que se reconhecer dois inequívocos méritos (e talvez mais um, he, he, he!) no nome com o qual os pequenos mortais de lama e ar nos identificaram: a imagem de nossos bravos, heróicos soldados guerreiros do Caos se espalhando corajosa, perene e inexoravelmente pelo que ainda resta do corpo do querido e indefeso hóspede, malgrado involuntário e teimosamente hostil, realmente lembra as pinças e patas - tão elegantemente desiguais, tão bela e metricamente anaplásicas - que partem do cefalotórax do caranguejo...

Mas - lembrando ainda que só somos conhecidos com tal nome, Câncer (desde já vou avisando de que não aprecio nem um pouco o agressivo palavrão "Cancro", que nos tentam pespegar!), pois bem, o nome Câncer nos deram no Século das Luzes - outra homenagem velada: somente quando acharam a expressão "século das luzes" para se referir a um determinado lapso do Tempo, puderam nos dar um nome adequado, os humanos presunçosos e incompetentes - naturalmente aqueles... Não gosto nem de pensar neles, me recuso aos nomear: estávamos aqui bem antes deles, e chegam, demoram mais de mil e quinhentos anos nos estudando, e terminam pensando que, por nos dar um nome, sabem tudo sobe nós... Aqueles mentirosos, ora sacerdotes, ora cientistas, ora moralistas, mas sempre uns hipócritas, pelo menos tiveram o mérito de nos daremum nome ligado a uma Constelação, esse nobre nome de Câncer - afinal, na antiquíssima China, o aglomerado de estrelas chamado "Presépio", da nossa embaixada nos céus, da nossa constelação do Câncer, é mais perfeitamente exposto e compreendido quando traduzido como "buraco por onde as almas sobem ao além".

Já notou que não perco a chance de uma brincadeira, não?  Pois a palavra "Caranguejo" também se aplica, lá na região distante e árida onde nasceu e mora a doentia vítima heroína (se bem que "o herói é aquele que não teve tempo de correr") destas crônicas supostamente diárias, a referida palavra também designa uma marca de cachaça bem popular... A cachaça Carangueijo já foi sorvida - ó, aquele passado juvenil, tão promissor, tão sudável, tão permissivo! -  com tanto empenho, com tamanha disposição,  com quase inaudita sede, pela mesma boca que ora sonha em escarrar das entranhas o sinônimo mais nobre... Haverá algo talvez de perverso em mim, pois por que será que me divrito tanto quando penso naquelas longínquas e felizes cenas juvenis em que o bobo se empolgava todo virando um copo de Carangueijo?


                                                              *                 *                *


O Câncer, pois, pode também dizer que é o caminho, a verdade e a vida... É só uma questão de ponto de partida e interpretação, que podem ser  místicos ou realistas.

Ora, agora se o caminho não leva a lugar nenhum para os  pequenos mortais, se a verdade se resume no máximo a umas tais de poesia e espiritualidade que não passam de interpretações compensatórias para um final definitivo e nunca em realidade bem aceita por enlameados e condenados preseunçosos bufantes, e se á vida não passa de sala de espera para a chegada, o casamento e o abraço triunfal da Morte - com a "precisão cirúrgica" (não digo que sou espirituoso? e hoje estou macho todo! A  Doença é mulher, bem sei, mas eu como indivíduo sou um mieloma múltiplo...), repito, porque gostei, com a precisão cirúrgica da Moira Corta Fio, não seria o caso de nos aceitar não como um patológico fenômeno da Natureza, mas sim como um dos acontecimentos  mais saudáveis, aquilo que permite o improviso, a poesia, o livre-arbítrio... Algo intrinsecamente tão ligado ao Criador que dele não pode ser afastado, que também expressa suas tentativas e erros de menino brincalhão, gerando e destruindo, aguando, queimando, soprando, cheirando, incinerando, chutando, tudo para criar de novo... O Câncer é no mínimo, um dos mais diletos e efetivos aliados do Criador, tanto que poderiam nos chamar, "a mão esquerda de Deus", termo usado inclusive sempre para fins de assassinato premeditado num certo romance literário - o que não é, sempre, o nosso caso!

Há outros seres na Criação que também merecem viver! Por que sempre, só, e definitivamente o assim chamado Homem teria Direito por sobre as demais criaturas? O Câncer é um instrumento da justiça do Verdadeiro Criador!

Percebo que tenho falado muito de mim em termos genéricos, como "Câncer em si"... Talvez já seja o caso de falar mais de mim mesmo como indivíduo original, surpreendente, rico,complexo, e sobretudo incansável e efetivo que sou, o mieloma múltiplo. Hoje não, que nos alongamos, já falamos muito, já nos expusemos demais...

Mas não vamos melindrar o poeta enfermiço... Até o meio da próxima semana, ele será ainda inteiramente meu, depois um daqueles... Sim, um daqueles "irmãos" do meu repasto, vai tentar roubá-lo de mim, incialmente com a química, depois com provável intervenção da mecânica, sendo que, mesmo que sejam usadas as destrutivas armas corretas contra mim, nunca é demais lembrar que bactérias, fungos e vírus poderão sempre nos ajudar em nosso triunfo.

E ele gosta das bactérias... Ai, como estou me sentindo um mieloma humanizado! Pois agora não resolvi abrir espaço novamente para um daqueles raros poemas - outro soneto! - em que meu poeta em quem ensaio agora minha poesia  surrealista e psicodélica  mas nem por isso infrutífera - quantas vidas resultam sempre de uma simples e individual morte? - como ia dizendo, um daqueles raros e felizes momentos em que meu poeta, ainda todo meu, e quem me dera para sempre, onde o meu querido poeta enfermiço manifesta saber do abraço supremo sobre a indissolúvel união de vida e morte... Refiro-me, amada leitora, a De Amantes.




                                                                                                      mi eloma aam




DE AMANTES


Quando formos, pequena bactéria,
dormir juntos no frio mausoléu;
quando formos, minha amante funérea,   
zombar juntos de Inferno e de Céu
e no leito profícuo da Matéria
celebrar nossa lua-de-mel,
tu, que em todos engendras a Venérea,
tu, Amada, tu me serás fiel?
Sei que enquanto de carne alguns destroços
me restarem me amarás em festa,
porém quando, para a Dança Funesta
não restarem de mim que simples ossos,
tu, Amada, tu me abandonarás...
- Como antes fizeram outras iguais.

        
           Antônio Adriano de Medeiros