segunda-feira, 22 de outubro de 2012

diários - mieloma em crise existencial



Preciso, por bem, dar antes informações digamos técnicas sobre Mr. Mieloma Múltiplo; seguem duas interessantes, uma mais amena, a outra nem tanto, que a doença tem tratamento, controle e, em tese, cura, mas é sempre um câncer, um tumor maligno da medula óssea.

"O mieloma múltiplo é uma doença crônica que pode ser tratada e controlada por tempo muito prolongado e o paciente poderá ter uma vida normal, com as atividades pouco interrompidas se seu tratamento e seguimento for realizado corretamente. Por essa razão tal patologia não deve ser encarada como uma doença fatal, em que o paciente terá pouco tempo de vida, pois com os novos avanços, a terapia para o mieloma é possível e o paciente pode permanecer anos com a doença controlada. Por essa razão converse com seu médico sobre a patologia e faça os questionamentos que julgar necessários para que se sinta seguro em relação ao seu tratamento e prognóstico."  ( http://www.abrale.org.br/doencas/mieloma/ )

"O mieloma múltiplo é uma doença rara e de diagnóstico nem sempre claro. É um tipo de câncer dos plasmócitos, que são células produtoras dos anticorpos imunoglobulinas. Ele não se apresenta na forma de tumores ou nódulos, suas células ficam espalhadas pela medula óssea. Normalmente elas representam menos de 5% da composição da medula. Quando a pessoa tem mieloma, os plasmócitos crescem em número superando os 20% do total das células da medula óssea, podendo chegar a até 90%. "Essa doença é muito sofrida e a sobrevida média de um paciente, com tratamento, é entre 3 e 4 anos", informa Vânia Hungria, professora de Hematologia e Oncologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo."  ( http://www.portaleducacao.com.br/farmacia/artigos/162/mieloma-multiplo-doenca-rara-requer-diagnostico-rapido-e-preciso )

Bom, o que posso dizer é que o Sr. Mieloma Múltiplo persiste em seu trabalho diário aqui no blogue também, e quem sou eu para recusar colaboração tão rara? Hoje ele se apresenta direitinho, diz quem é, a que veio... Vai falando, vai se expondo, vai se autovangloriando, e de repente, degringola numa crise existencial estranha, coisa só possível em um câncer poético...

Parece que não é muito agradável nem fácil defender o Mal, definir-se como sendo do Mal, dizer-se ligado ao Mal, preconizar o Mal, encarnar o Mal e dizê-lo... Durante curtos intervalos de tempo, até que se consegue, mas não dá pra ser uma coisa continuada... Lembro que, nos anos 90, senti grave mal-estar numa palestra que fui assistir de um perito do INSS, e quando ele começou a dizer que tinha "orgasmos" (sic) quando negava uma perícia, quando desmascarava alguém que se pretendia doente para fins de benefício, não consegui mais ficar na sala. Palestras com torturadores oficiais, não, felizmente não fui obrigado, sou da turma mais jovem, já sou das luzes... Mas conheci e conheço perigosos reaças machos e fêmeas (e machos-e-fêmeas), velhos e jovens, que se bem trabalhados... De esquerda  e direita, devo dizer.  Já ouvi cada uma... Outro dia um professor, isso há uns cinco ou seis anos, era diretor lá de onde trabalho, hospital psiquiátrico público, e numa crise de mudança de direção no referido hospital, que fica em Natal - RN, onde  a nova diretoria nunca tivera experiência com psiquiatria de verdade, a não ser o aludido professor, pois bem, numa crise de mudança, uma criatura lá, estranhíssima, mulher de voz bem grossa, dita psiquiatra, e um infectologista que chegou não sei de onde, de voz doce, delicada, pois bem, os dois cismaram de me impedir de presecrever medicamentos por via venosa para os pacientes... Claro, a coisa se agravou, foi longe, mas lembro que o professor, tentando ser diplomáttico, digamos, saiu-se com essas: - "Adriano, por que voce não dá uma injeção no músuclo e manda conter no leito?" - "Tudo bem, sábio e competente hipocrático, mas quantas horas ele vai ficar gritando e se debatendo?" - "Ah, Adriano, você tem que aprender a suportar ouvir gritos..."

Outros, aqueles dos patrões, dos sábios, dos bons, dos pregadroes, dos poderosos, eu já sabia, já os ouvia, e amiúde, mas ouvir gritos de sofrimento e desespero e não fazer nada para debelá-los...

- Saúde, Mental!

Pois é, os diários de um mieloma múltiplo prosseguem hoje, "os heróis do bem prosseguem na brisa da manhã..."  Como informei antes, ele tem uma crise existencial, se mostra ambivalente e contraditório ás vezes, mesmo paradoxal... Câncer também dá piti! E ao final gritou uma expressão que eu bem sei que era um pedido de poema, um soneto meu, pubicado na I Antologia de Escritas, lá em Portugal, cujo nome é Epitáfio, a inscrição sepulcral, breve elogio fúnebre encontrado em certos túmulos, nas necrópoles.

Bom, pela crise existencial do Sr. Mieloma, inclusive em respeito à mesma, resolvi colocar uma introdução anates de seus diários, e fui buscar a Pensata, uma idéia, um pensamento.

Agora, uma coisa interessantge, até engraçada: um amigo de João Pessoa, médico jovem, culto, competente, da Academia, naturalmente tem bom gosto e aprecia escritos meus... Daí que mandei uns pra ele, com o endereço do blog. Mas quando, diz ele, clica no link, o que surge é uma página de "estudos bíblicos", ás vezes até em inglês... Esse Câncer é danado!

O jeito agora é escrever o endereço letra por letra e esperar abrir.


absaam



PENSATA


E mesmo que tudo isso
- pensamentos, emoções e palavras -
fosse apenas o resultado
de secreções cerebrais,
ainda teria o valor inequívoco
de ser dirigido a um determinado fim,
além de propiciar prazer
não apenas àquele que as tem,
mas também aos que o acompanham
na aventura única  a que chamamos Vida.



                Antônio Adriano de Medeiro
                2003





diários de um mieloma múltiplo - 4



- Ai, estou exausto! Quanto trabalho: eu me gasto em soldados castos, blastos e clásticos!

Sou cáustico, sou álgido, sou hemático,  mas sou tão sutil... No início, rá, rá, que depois pego pesado, racho, quebro, fraturo, faço desmoronar, provoco caretas terríveis e gritos desesperados, horror, pavor, convulsões, delírios, desespero extremo... e depois, mato!

Se sou cruel? Que nada, isso é apenas de minha natureza... Eu sou assim, precisei ser assim para poder existir, esse mundo é muito competitivo, como dizem até aqueles... que me perseguem.

Sou um Mieloma Múltiplo. Da estirpe dos cânceres do sangue, posso dizer que, pela fama, sou o terceiro, após as leucemias e os linfomas. Mas sou danado, em minha arte sou muito competente...

Descobri, tanto por curiosidade, informações, como por uma espécie de sexto-sentido que criaturas como eu têm, que era possível, ali no âmago úmido rubro e quente das rochas vivas onde grassa o rio vermelho da vida, introduzir uns soldados jovens demais para defender o país corpo que há tempos vinha espionando... Tudo começa assim, bem simples, substituindo-se uns poucos soldados do sangue, células de defesa dizem aí, por meus plasmócitos, jovens, dispostos, imaturos, e se multiplicando mais rápido que os assim chamados leucócitos normais, e de repente a defesa do corpo percebe que foi lograda, que houve uma introdução de soldados imaturos e sabotadores nas linhas de defesa do território e do funcionamento do país...

Aí já é tarde demais, começou a diversão.

Claro que sempre preferirei o bombardeio eficaz, optaria logo pelo ataque ósseo direto, o choque osteoclástico, a fratura patológica, a compressão medular... Aí a vítima já fica com graves limitações dos movimentos voluntários, ou mesmo os perde por completo, e só nos resta apossar-mo-nos, meus blastos e clastos e a grei pequenina de fungos e bactérias, do nobre repasto, do merecido banquete, do digno e justo sacrifício aos deuses imortais.

Não sei por que, no caso específico do moribundo atrevido que me hospeda a contragosto, agi de forma diferente, dei bandeira, demorei muito com os pródromos hematológicos, ele ficou uns dois meses ou mais com aquela palidez, aquele emagrecimento, em suma, aquela gritante anemia, e poderia ter-se safado rápido, uns daqueles... até que alertaram, não sei se havia algo ou sei lá O Quê querendo avisar ao verme de ar e lama...

Mas agora já o faço sofrer mais, já comecei, felizmente, a destruir seus ossos. Preciso ser rápido, efetivo, pois fui informado que daqui a três dias começam a me dar o coquetel mortal, a mim, um legítimo dos numes eternos, um Câncer, uma aberração constelante, um deus da criação aleatória surrealista e psicodélica, um monstro, uma doença com nome de constelação... Quanta petulância, quanta ousadia, quanta... - Blasfêmia!

Está bem magrinho, vê-se facilmente as veias azuis nos antebraços, e alguns detalhes ósseos ficam bem definidos sob a pele... Há três dias precisou transfundir novamente células vermelhas, com medo, coitado, muito medo, recebeu de seus irmãos paraibanos, anônimos doadores de vida e esperança, musicais mangues cheios de vida, saudáveis filantropos que não querem aparecer nem parar de salvar vidas... Nossa, como ouviu repentes de viola àquela noite! O que diabo era aquilo, Minha Moira Má? Que felicidade estranha num corpo de moribundo, que euforia ouvindo aquelas melodias primitivas de viola e rude voz, e se acabando de alegria num galope à beira-mar... Confesso que tive medo e pena dele ao mesmo tempo, porque descobri que havia me alojado no corpo de um inocente, de um louco... Um pobre louco, no mínimo um sonhador... Será que ele é mesmo um poeta?

O filé que entra é a merda que viceja.

Poetas são grandes homens, são homens fortes, pessoas bem relacionadas, têm amigos importantes, são famosos, alguns até ricos... Mas meu moribundo não é nada disso! E mesmo que fosse um poeta, qual o problema?  A matéria de seu corpo me parece mesmo de sabor mais agradável...

Durou pouco, porém, minha apreensão, minha reflexão, minha dúvida: o que quero é a matéria, é o corpo, e tanto faz se de um louco, se de um moralista ou outro hipócrita de merda qualquer, eu preciso é fazer o meu trabalho... Essa coia de se meter com poesia é complicada...

Acredita que por vezes tenho pensado que posso ser um câncer romântico? Tenho gostado de me conhecer melhor, de pensar um pouco na própria existência, e ás vezes, penso até em adiar um pouco os efeitos mais graves, dar uma chance ao verme moribundo, pois minha natureza poética assim expressa em palavras depende dele... da sobrevivência dele...

- Xô, Coisa Ruim! Pela precisão do corte da Moira Má, o que estará acontecendo comigo? Para que invadi um corpo estranho assim, de um parente tão próximo dos loucos, dos deuses pois, estarei eu também enlouquecendo, fraquejando, amolecendo, me afrescalhando?

Vou prosseguir, já passou mais, estou voltando ao normal, mas talvez precise fazer análise... Essas coisas nunca aconteceram comigo, nem com outros membros de nossa família... Preciso rever isso, discutir com a Mãe Moira, com as Erínias, com os Gigantes, com os Ciclopes, com Hades, com Medéia...

O meu modo de agir, a estratégia bélica, é sempre, partindo da medula óssea com os plasmócitos invasores, ocupar espaços ósseos, de preferência vértebras, que são mais fininhas, mas todos os espaços possíveis, e mandar os clastos irem comendo o tecido mineral. Persisto, claro, agravando a anemia, ocupando a medula óssea com meus blastos, e logo provoco danos renais, por subprodutos protéicos bastante efetivos que os sei produzir, e ataco ainda as plaquetas, praguejando hemorragias fatais...

Assim, me sinto melhor, assim fico bem... Mas de onde vem esse cansaço, essa indisposição, esse sentimento de culpa? Qual o problema de existir?

Eu sou apenas um pobre Cãncer, um mieloma múltiplo, e não tenho culpa de ser assim...

Ai, de repente me conscientizei de que aquilo que faço não é muito bonito...

Pensa que é fácil ser deselegante, doentio, patológico, ligado á Morte, indesejado, mal vindo, feio? Eu sou um nobre, eu tenho orgulho, eu tenho sentimentos...

Olha, desculpa, hoje não me sinto muito bem, vou parando por aqui... Mas de onde vem esse desejo de gritar que façam sempre epitáfios para mim?

Agora me deu vontade de rir. Gargalhar.

Sou mesmo muito estranho...



                                                       
                                                                                   mi eloma aam







 EPITÁFIO


Quando forem ao derradeiro abrigo
os tristes e frágeis ossos meus
- separados para sempre dos teus,
ó mulher que amei; ó raro amigo; -
quando enfim estiverem num jazigo
os meus ossos raquíticos e plebeus,
indiferentes a qualquer inimigo
- lei, verme, ou qualquer pequeno deus -;
virá Cronos - motor da eternidade,
dos deuses o de maior voracidade -
devorar como pó o meu marfim.
Mas como eu sou filho da Poesia,
o bom Vento, que é pai da melodia,
fará sempre epitáfios para mim.


            Antônio Adriano de Medeiros
            Antologia Escritas número 01
            Direção de Edição: José Felíx
            Primeira Edição: janeiro 2004
            Edição: Encontro de Escritas