terça-feira, 8 de junho de 2010

CANUDOS - A PELEJA DO CONSELHEIRO COM O CORTA-CABEÇAS




“O sonho da razão produz monstros”


Para Antoniel Campos


Eu vou contar uma história
que um dia aconteceu,
no Arraial de Canudos
foi onde a história se deu,
e é uma história triste:
muita gente ali morreu.

Certo dia apareceu
pelo sertão do Nordeste
- onde canta o Acauã
e mora o cabra da peste -
um profeta anunciando
o fim do mundo terrestre.

Por enviado celeste
o povo todo o tomou,
e como dava conselhos
sábios de grande valor,
de Antônio Conselheiro
o povo o apelidou.

Muita gente se juntou
a Antônio Conselheiro,
que saía pelo mundo
na sina de estradeiro
levando a palavra santa
de profeta verdadeiro.

E o sertão do cardeiro
- que é terra de homens sérios -
aplaudia o Conselheiro
e seu séquito de mistérios,
quando os via restaurando
igrejas e cemitérios.

Porém os tempos funéreos
prenunciavam desgraça,
teria eco o profeta
anunciando na praça:
- "Vem aí o fim do mundo
com a tragédia da raça."

Viria bomba e fumaça
sujar de sangue o sertão,
ribombar mais perigoso
que aquele do trovão,
o vento frio da morte
soprar que nem furacão.

Numa certa ocasião,
Conselheiro, com desgosto,
ouviu falar de um negócio
que chamavam de imposto
a ser cobrado do povo,
e achou coisa de mau gosto.

Depois que o rei foi deposto
e expulso pra Portugal,
mudou-se o casamento
e o sistema decimal:
para o profeta, a República
era a encarnação do Mal.

A sua ira foi tal
que ele amaldiçoou
o regime então vigente
e ao povo conclamou
a não pagar o imposto:
coisa que Deus não criou.

Quando a notícia chegou
no palácio da cidade,
o governador mandou
- usando de autoridade -
alguns soldados prenderem
o autor da iniqüidade.

Não foi com facilidade
que encontraram o profeta,
protegido pelo povo
em atitude correta,
mas deram voz de prisão
ao atingirem a meta.

Ai, se eu fosse poeta,
para poder descrever
a reação da miséria
enfrentando o padecer:
pulam em cima dos macacos
e botam o Cão pra correr.

Conselheiro pôde ver
que magoara a ferida,
daquela hora em diante
corria risco de vida,
e procurou pra seu povo
uma Terra Prometida.

De uma fazenda escondida
apossou-se com o rebanho,
lá tinha pasto e água
pra beber e tomar banho,
aboliu-se a propriedade
na terra que tinham ganho.

Audácia de tal tamanho
irritara os poderosos,
mandou-se um batalhão
com os soldados raivosos
pra remover de Canudos
os romeiros revoltosos.

Por caminhos tortuosos
faz-se a justiça divina:
de que serve a arma moderna
contra quem a fé domina?
- Bota o Diabo pra correr
a reza mais pequenina.

Não houve carnificina
- os romeiros eram de paz -
podiam ter esmagado
o batalhão de Caifás,
porém deixaram fugir
aos filhos de Satanás.

Porém isso foi demais
pro exército brasileiro:
ser derrotado e humilhado
por um general romeiro
- armaram o Corta-cabeças
pra vir do Rio de Janeiro.

Toda noite o Conselheiro
- que era ser prenhe de luz -
dava conselhos proféticos
e louvava a Santa Cruz,
cercado pelos romeiros
no Templo do Bom Jesus.

Dante não rima Jesus
e fez Divina Comédia,
eu tenho dicionário
e até mesmo enciclopédia,
mas imito o florentino
pra compor triste tragédia.

No Brasil da idade média
impera sempre o terror,
há o pobre escravizado
e o rico dominador:
se o pobre desobedece
chamam o degolador.

Sempre o desafiador
precisa de um corretivo:
não basta apenas matar
o elemento nocivo,
é preciso degolar
- de preferência, inda vivo.

Foi então que um altivo
coronel foi ao sertão
levando o Regimento
que orgulhava a nação
para aniquilar de vez
pacífica rebelião.

Se tinha parte com o Cão
o meu saber ignora,
mas a mais de cem pessoas
mandou degolar na hora,
pelos seus prisioneiros
Santa Catarina chora.

Um cavalo branco espora
à frente do Regimento,
é tão grande a arrogância
que causa constrangimento,
mas de repente cai e baba,
se espojando qual jumento.

Quando ele dá passamento
tratam logo de esconder,
não pode uma autoridade
que de ferro sonha ser
sofrer de doença assim
como algum humano ser.

Ao se restabelecer
de seu ataque epiléptico,
trazem dois prisioneiros
para o corretivo ético:
- Afaste os olhos, leitor,
o que vem não é estético!

Um pobre e esquelético
chorando pede perdão,
outro reza e amaldiçoa
a quem tem parte com o Cão,
duas cabeças que caem
ensangüentando o chão.

A isto chamam Razão,
triunfo da inteligência?
A engenharia da morte
aplicada com sapiência:
quando sonha a Razão,
o que produz é demência.

Mas a santa providência
agindo com sutileza
atrai o Corta-cabeças
e o transforma em presa:
jagunços pegam o homem
e retribuem a malvadeza.

Decerto não há beleza
em um corpo dependurado
aos galhos de uma árvore
com a cabeça de lado,
insígnias de coronel
num cadáver graduado.

Da cabeça degolado
assustou-se o Regimento,
e Canudos teve trégua
durante um breve momento,
os fiéis rezaram muito
como agradecimento.

Com sangue num juramento
lá no Clube Militar,
entre compasso e esquadro
alguns prometem vingar
a morte do coronel,
- Deus o tenha em bom lugar!

Os radicais a bufar
incendeiam alguns jornais
lá no Rio de Janeiro,
e em outras capitais
se articula um exército
pra degola de alguns mais.

O sertão não viu jamais
uma tropa igual àquela,
bem mais de cinco mil homens,
- muitos animais de sela -
maquinaria pesada
era vista na favela.

Qual no mar grande procela
chovia a artilharia
no Arraial de Canudos
e a igreja não caía,
o Conselheiro nas rezas
um milagre prometia.

Toda noite ele dizia
que El Rei Dom Sebastião
viria com seu exército
pra combater no sertão,
das profundezas do mar
para enfrentar o Cão.

Parecia assombração
aos ouvidos dos soldados
o som das rezas à noite
a ecoar nos descampados,
e muitos correram doidos
pelo mundo, alucinados.

Os generais espantados
nunca tinham visto aquilo,
o estrondo retumbava
e ouvia-se o sibilo,
mas a reza não parava
como cantiga de grilo.

E foi mantido em sigilo
algo que aconteceu,
até mesmo dos romeiros
a notícia se escondeu:
antes de cair Canudos,
o Conselheiro morreu.

E quando o Diabo irrompeu
aos urros na terra santa
à procura do beato
pra cortar sua garganta,
ao saber de sua morte,
bufa, protesta, se espanta.

Porém a ira era tanta
que o cadáver se exumou
sob dois metros de terra
onde o povo o sepultou,
e pelo bem da ciência
um médico o degolou.

O corpo se separou
da cabeça singular,
levaram pra Salvador
o crânio a analisar,
nada anormal se achou,
jogaram o crânio no mar.

Eu agora ao terminar
esta epopéia vil,
uma história de pobreza,
fé e ignorância hostil,
pede-me a mão que ponha:
- Leitor, eu sinto vergonha
da História do Brasil.


Antônio Adriano de Medeiros


Em sendo eu um nordestino e ainda mais sertanejo, não poderiadeixar de escrever cordéis. Essa é minha versão paraa Guerra de Canudos, e faz patê de um livro que tenhopronto para publicação e que se intitula Zoológico Fantastico. Segue abaixo a nota explicativa do livro referente ao cordel.

“O mais famoso dos romeiros, porém, foi Antônio Conselheiro, cuja saga é contada em Canudos: a Peleja do Conselheiro com o Corta-cabeças. A epígrafe citada, “o sonho da razão produz monstros”, é de Goya. A Guerra de Canudos foi o mais trágico e controvertido acontecimento militar brasileiro, ocorrido em fins de 1800, mais ou menos 1894-1897, sendo uma represália que tinha como motivo real implantar uma ditadura militar no país, pois julgavam os homens que tinham armas que só os militares eram "preparados" para o poder. Há tempos que Antônio Conselheiro incomodava a Igreja, pois ao restaurar igrejas e cemitérios em cidades pobres do sertão nordestino, ele atraía fiéis para seus sermões noturnos, alguns na própria igreja, outros na praça em frente. Dava conselhos conforme as antigas escrituras, e anunciava o Final dos Tempos, quando o sertão viraria mar, e o mar, sertão, os rios dariam leite, etc. Foi preso, apanhou, foi humilhado, mas voltou do mesmo jeito a consertar prédios em ruínas e fazer pregações. Tentaram interná-lo no Rio de Janeiro, o arcebispo de Salvador solicitou a internação diretamente ao Governador, mas não havia vagas; certamente os sábios da antiga corte não deram muito valor a um maluco sertanejo. A República recém implantada anunciava suas medidas em mensagens afixadas em prédios públicos, e certo dia o Conselheiro, que à essa altura já tinha seu séquito de seres esfomeados, aleijados, ex-escravos, ex-cangaceiros, putas arrependidas, beatos e afins, e mais surpreendido com as notícias de que a República acabara com o casamento religioso, com o sistema de pesos e medidas então vigente, e agora estava prestes a cobrar do povo, além do dízimo que já era pago à Igreja, ainda uns tais de impostos, arremeteu contra os editais e rasgou-os, atirando-os ao chão. Ainda hoje não há no mundo um ser mais poderoso que um juiz ou delegado do sertão nordestino, imaginem então naquele tempo: logo a polícia estava no encalço do "agitador comunista", só que os soldados, após perambularem por três dias sertão adentro procurando-o, não esperavam a reação dos seguidores, que lutaram, bateram, apanharam, mataram e morreram, e acabaram botando-os para correr. Então o Conselheiro decidiu fixar-se com seu povo em lugar seguro, escolhendo uma fazenda abandonada e improdutiva em Canudos, fundando a cidade de Belo Monte do Bom Jesus, que acabou por tornar-se, à época, a 2ª cidade mais populosa do Estado da Bahia, atrás apenas de Salvador, tal era a quantidade de pessoas que acorriam para salvar o Santo das forças militares dos poderosos donos da Lei e de Deus. Foram então se somando e sucedendo expedições militares e aumentando a rede de intrigas peculiares à histeria coletiva, que sempre tem o poder por trás: o vice-presidente do civil Pudente de Morais era o militar baiano José Vitorino, que precisava encontrar em seu Estado um local para mostrar como era poderoso e sabia mandar nos miseráveis. Tentou-se várias vezes derrubar o governador Luís Viana, que foi lúcido o tempo inteiro cumprindo apenas suas obrigações, não pendendo nem para o fanatismo religioso, nem para o jacobino. O Corta-cabeças era assim chamado o coronel Antônio Moreira César, orgulho militar brasileiro e admirador de Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro, catarinense: de uma só vez aplicou o "corretivo" no Estado de origem do Marechal de Ferro, então presidente, Santa Catarina, mandando degolar de uma só vez 180 prisioneiros. O Coronel Moreira César sofria de Epilepsia, o que é enfatizado no poema. A referência no poema a Dante deve-se ao fato de ele, na Divina Comédia, rimar a palavra “Jesus” apenas com ela mesma, o que também fiz num verso. O Arraial de Canudos está hoje sob as águas de uma grande represa hidrelétrica construída pelo Regime Militar de 1964-1994, que pretendeu assim sepultar de vez o lugar, escondendo antigas feridas. Por que então as águas insistem em baixar, exibindo as ruínas fantasmagóricas da velha igreja?” Extraído de Zoológico Fantástico, de Antônio Adriano de Medeiros, aguardando publicação.

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