sábado, 21 de maio de 2011

um romance com barbeiros




Na tenra juventude, naquela tarde em que escrevi o poema Inércia e fiz um Pacto com a Poesia, época do Regime Militar, em 1984, por aí, imaginei, e até cheguei a escrever o primeiro capítulo de um romance intitulado "Barbeiros!", em que já pretendia dissecar os vários sentidos da palavra "barbeiros" no português falado no Brasil. É que tal palavra tem muitos significados em nossa Língua: profissional que faz a barba dos outros; inseto transmissor da Doença de Chagas; pessoa que não sabe dirigir direito; incompetente de modo geral; e outros mais. Interessante que foi graças aos médicos, aos médicos-cirugiões, que os "cirurgiões-barbeiros", quer dizer os barbeiros propriamente ditos. tornaram-se "incompetentes" na técnica cirúrgica mais refinada, e daí a palavra passou a designar incompetentes, ou inábeis.

O grito de "Barbeiros!" se dirigiria a um púiblico mais amplo, aos próprios brasileiros de modo geral que viviam sob uma ditadura e não reagiram quando a emenda das Diretas Já foi derrotada no Congresso, além de a alguns médicos (seria a vingança dos barbeiros) dos quais eu não gostava naqueles bons tempos de estudante. Ora, já com tantos siginificados, barbeiros e brasileiros eram palavras tão parecidas que poderiam ser sinônimas...

Seria a história de um filho de barbeiro do interior que fora estudar Medicina (queria ser cirurgião, outro setido da palavra) porém, decidido a reavaliar sua decisão no terceiro ano do curso decidiu fazer uma pausa nos estudos para dirigir melhor sua vida (mais um sentido da palavra - barbeiros não dirigem bem), e ao contar a história ao pai, o velho se enforcou "naquela noite escura e fria". A decisão de Francisco Firmino Filho (era esse o nome do jovem) fora motivada por uma aula sobre a Doença de Chagas. Ele cismara, por motivos existenciais dele lá, que "os brasileiros são todos barbeiros", e fora dar um tempo em sua vida, recomeçar como barbeiro no interior aprendendo primeiro a arte se seu pai para - assim ele julgava necessário - só depois aprender a "a arte dos outros".

A Tempestade anti-médica foi despertada em mim pelo sub-coordenador do curso na UFPB, um desses médicos meio-aviadados meio-intelectuais-de-esquerda modernosos, fumante de cachimbo, que de tudo querem saber e resolveu me separar de minha turma original e me matricular numa turma de repetentes e transferidos de outros cursos que só tinha quatro alunos; o filho-da-puta, que era uma criatura hilária, ainda primeiro disse que na turma original não tinha mais vaga mas acabou matriculando um filho de professor na minha cara e na frente da turma toda (era bullying puro!), e afinal afirmou ali na frente de todos que eu tinha que "romper o cordão umbilical!"

Interessante que tempos depois, há uns quatro anos, encontrei outro verme médico com o mesmo biotipo, um infectologista que queria me ensinar psiquiatria, e tudo fez para me afastar do trabalho com ajuda de vermes menores.

Desde o primeiro poema gostaria de chamar a atenção do eventual leitor (sempre há uma alma gentil a esse ponto!) de que pretendo, em alguns versos, dar outro sentido às palavras e frases, juntando as letras ou deprezando-se a pontuação, e criar outro sentido para as palavras: por exemplo em "No coração, trazem a Peste" julgo que se poderia tirar a vírgula e falar da predisposição para o Mal que existe em alguns seres que "no coração trazem a Peste"; outro exemplo, se me permite o leitor tomar ainda mais seu tempo com tolas divagações, pode-se ter em "Trepam nos sonhos e cruzes", onde se poderia ler aí, escondido, o nome do protozoário causador da Doença de Chagas, o Trypanosoma cruzi; assim sendo, o próprio poema se torna um barbeiro, pois carrega em si, escondida, a semente de algo, só que essa doença seria outra, quem sabe até poesia. Precisei, quando escrevia o primieio da série de poemas, criar uma palavra nova, pois ela pediu pra existir: foi o verbo "sanguessugam".

Pois bem, dado o pontapé inicial à aventura de procurar dissecar a palavra "barbeiros" em seus significados, doravante, deixo a critério de quem lê encontrá-los, se é que os há, naturalmente.

No sétimo poema do Poema Barbeiros!, a epígrafe é de Belchior na canção "Apenas um rapaz latinoamericano".


abs, aam




BARBEIROS!



I



São bichos.
São pequenos.
São insetos.

– Barbeiros!

Falsamente belos.
Coloridos até,
Portam o Mal – Sanguessugam -
Engendram a Morte.

Abrem chagas no corpo,
No coração; trazem a Peste
Para as cidades e os campos.

Barbeiros

Se escondem nas frestas
Nas paredes, nos telhados.
Trepam nos sonhos e cruzes
Engendram, e Chagas.


II


Eles têm um carro,
Eles têm o poder.

Não há a cor do
Sinal, nunca
É vermelho, sempre
Verde, muito verde para eles.

Eu amarelo
E nunca grito

– Barbeiros!

Porque costumam usar outras armas
Além da buzina e do próprio
Carro – medalha olímpica
que precisam mostrar a todos!

Eles podem tudo.
O tráfego é deles,
O trânsito é deles,
A rua é deles,
A lua é deles,
O carro é deles,
O cargo é deles.

– Um motorista é uma autoridade, e ai
Daqueles que não o respeitarem!
Porque não é mais chique
Morrer na contramão atrapalhando o tráfego.


III


A pá lavra
A terra
E semente cultura.

Os frutos são outras palavras.

Palavra que palavras
Desta lavra
Estão além da Língua,
Porque fogem às normas
Ditadas.

Larvas de um verso diverso, pá!

Existem, mas noutro
Lugar. Onde?
– Procura!

Se o poeta é barbeiro,
Desobedece aos sinais da norma,
Curta
O neoverso: neologismo é pouco!

Não vê sentido?
Não fique sentido,
Não vá discutir, nem brigar,
Ser contra a mão
Que organiza (?) o tráfego.

– Só ria dessa loucura
Que nem nova
Talvez seja.

A barbeiragem também é
Uma forma de cegueira.

Melhor evitar
Confusão com eles...

Vamos devagar!

– O bar beiro?
Sim, moro perto,
Mas não
Fui lá ontem.


IV

Seria outro paradoxo do barbeiro
Ser antigo e atual
A um só tempo,
Mas não: é possível!

Em sua origem
Há gene
E higiene.

Face a seu espelho
A face
Animal a lâmina
Inverte
Em outra face,
E o que era
Símil ao símio
Se torna de novo
Um homem.

O rosto sem pelo
É um apelo ao belo,
E o belo
E feminino.

Seria por que
O rosto feminino
Se parece com
O de uma criança?

Foi o barbeiro que começou
A lapidar o homem.

Há um jardim
Em cada face,
E em cada uma faz-se
Necessário
Cuidados dia a dia.

É preciso crescer
Sem perder
A criança jamais.

Assim no rosto
Como no gesto
É preciso ter fé, menino!


V


Há um sacrifício
Na barbearia.

O procedimento é cirúrgico.

Uma navalha corta
Um corpo, imola
Pedaços de
Um homem; já não
Há sangue
Ou dor vermelha.

É sublime a ação.
Há muito
Ficaram no tempo
O cruel espetáculo,
O cruento,
E a Morte.

O ritual celebra
E previne.

Os peludos
Primatas,
Os terríveis barbudos,
Estão sob controle,
Mas não se pode
Esquecer
De louvar os deuses.

Um sacrifício
Acalma deuses
E animais.

São barbeiros
Modestos sacerdotes.


VI


De santo barbeiro
Nunca ouvi falar!

Embora barba
Ainda cresça no defunto,
Almas decerto não
Precisam
Fazer a barba.

Ao menos as boas almas,
Aquelas que subiram,
Já são perfeitas,
Não mais temem
O retorno das coisas
Primitivas. Aquelas malditas
Que desceram
Ao Báratro
Profundo, não sei,
Talvez exista um
Barbeiro dos diabos.

Mas santo houvesse
Um entre barbeiros
Decerto não seria o santo
Um qualquer: na hierarquia
Tal posto, tal mérito,
Tal tributo, tal honraria
Caberia
Ao barbeiro mais bem situado
Na escala evolutiva
– O nobre Cirurgião!

Uma navalha nunca
Entraria no Céu;
Um bisturi, sim.

Ora, porque também
Dificilmente
Se encontraria
Entre cabeleireiros
Um santo.

Ou uma santa.


VII

“Palavras são navalhas”


Na verdade eu já havia
Escrito o Sete,
Mas como resolvi esperar três dias,
O Poema morreu
E ressuscitou de uma forma maior.

Foi preciso ajuda pra concluir
Esses estudos que faço
Com os barbeiros.

Precisei ir procurar
O Outro.

Não.
Não foi um guru.
Desculpem, mas também não
Foi Deus – pelo menos o oficial.
Sequer fora o Diabo,
Diga-se de passagem
Ao leitor barbeiro
(Que sempre os há, perigosos...)

O Outro que procurei
Já estava dentro de mim mesmo.

Não é uma simples questão
De fé, mas de
Querer, poder e saber procurar.
E de respeitar
O Tempo.

Alguns barbeiros mataram
Um dos primeiros homens por isso.

– Pelo menos deixaram
Ele beber uma cicutazinha...

É assim.
O Outro começa a falar.
E não só
Escuto a Voz, como também
De alguma forma respondo
Porque acredito nela.
Mas não falo sozinho.
Não é preciso,
Porque é muito preciso:
Ela está dentro de mim mesmo!

– Cuidado com a Polícia da Razão!...

Sim, aqueles outros barbeiros são
Sempre perigosos,
Mas não têm poder nenhum
Sobre esse Reino, o da Poesia.

– O primeiro refúgio do Homem é a Arte?

Sem dúvida!
Nem dívida...
Não duvide: depois vêm
Os religiosos, os filósofos ou os cientistas
Explicar. Porque
Os barbeiros precisam de uma explicação.

Há uma metáfora
Na barbearia.

A metáfora da evolução do próprio homem.

Quem tem olhos pode ver.

A recusa em ser primitivo.
O engenho da navalha.
O desejo por Higiene e Estética.
O desenvolvimento da Técnica.
A especialização do Trabalho
A cotidiana dedicação a uma atividade útil.

Uma mesma palavra
Designa insetos e homens.
Incompetentes e sábios.
Abnegados modestos
E benfeitores da humanidade.

Mas não nos esqueçamos
de que uma mesma palavra
designa
homens que tratam
e insetos que transmitem
a doença.

– Há outra metáfora
Na barbearia?

Sim: assim talvez
Seja a própria Vida: cada um
Dispõe das mesmas palavras.
E cabe fazer uso delas
Como o barbeiro usa
A sua navalha.

A navalha pode ser
Uma arma para destruir a vida,
Ou um instrumento
Para torná-la melhor
E mais bela.

O Mal está adormecido
No homem.
Não devemos usar
As palavras, as navalhas,
Para despertá-lo,
Mas sim para tornar
Seu sono ainda mais
Profundo.

É isto que nos ensinam
Os Barbeiros.

Há que se falar também
Da humildade
E da perseverança
Dos Barbeiros.
Não obstante o epíteto desairoso
Que ganharam
Dos cirurgiões,
Eles perseveraram em sua lide.

– E agora, vais deixar os barbeiros?

Sim e não.
Vou deixar os barbeiros em paz
Por enquanto,
Que da presente obra
Já chegou o tempo de
Acabá-la.
Mas não posso mais deixar
Definitivamente
Os barbeiros.

Fui infectado
– Chagas de Cristo! –
Pelos barbeiros.
Sou um barbeiro.
Tenho muito ainda que aprender
Com esses modestos
E perseverantes mestres
Que são os Barbeiros.


Antônio Adriano de Medeiros
João Pessoa, 29 de janeiro de 2010.


BÔNUS DE BARBEIRO


AFASIAS DE BARBEIRO


Emaranhado de palavras,
rosto indecifrado ainda.
Bárbaro. A quem desejo
fazer a barba.

Não sei que ar fazia
na barbearia.

- Por mais que afine
o fio de minha navalha,
eu não encontro
um só verso que me valha.

Antônio Adriano de Medeiros


BARBEIROS – OS INSETOS!

Nas trevas da noite,
nas frestas escuras,
pequenos monstros
sanguinários,
barbeiros
ocultos se arrastam
em busca do néctar
vermelho.

Mal o sugam, sujam-no,
pois são distraídos – outros vermes
menores e mais nocivos
plantaram em seus dejetos
estranhas sementes
cujas flores
são Chagas.

São concretas
as flores do mal
no que toca a barbeiros e vermes.

Porque assim são os vermes:
estripam-nos os sonhos
em cruzes!


Antônio Adriano de Medeiros


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