segunda-feira, 28 de maio de 2012

A Peleja de Zé Piola com Diabo Louro

Cidade de São José do Egito, sertão de Pernambuco, berço de grandes poetas da viola e do cordel nordestino

Correm rumores, que não são boatos, no sertão, de que a Peleja de Inácio da Catingueira com Romano de Mãe d´Água, ocorrida na segunda metade do Século XIX em Patos, no Sertão das Espinharas, Paraíba, foi considerada a Peleja Mãe, o Desafio dos Desafios, porque ali é que surgiu o gênero do Desafio de Viola. Porém, o mais belo e bem trabalhado dos desafios é, sem dúvida, O Desafio do Auto da Catingueira, composição de Elomar Figueira de Melo, poeta e violeiro do sertão da Bahia.

Da última vez que eu tinha ficado dois anos sem ir ao São João de Santa Luzia, nos arredores da Grande Patos, foi quando, médico recém-formado, estudava psiquiatria no Rio de janeiro. Pois também em 2010 e 2011, não fui: em 2010 porque escrevia o desafio a seguir; em 2011, devido ao falecimento de minha Mãe, ocorrido em maio daquele fatídico ano. Mas esse ano eu vou, e por isso, já para a entrada de Junho, vou sertanizando o blogue.

É um desafio longo, uma peça cordelista que nem todos lerão de um só fôlego. Antes de mais nada, modesta homenagem que faço à cidade de São José do Egito, no sertão pernambuncano do Pajeú, considerada a terra dos poetas sertanejos, pois ali nasceram muitos poetas, sendo os mais famosos Lourival e Otacílio Batista, e Rogaciano Leite, entre  outros. A  cena se inicia numa cidade do sertão do Seridó, que tanto pode ser na Paraíba como no Rio Grande do Norte, e vai se encerrar em São José do Egito, havendo, pois, uma "fuga para o Egito", outra pequena homenagem que faço, dessa vez à Obra Maior.

É um desafio com final feliz: apesar dos três primeiros versos, o malungo, rapazote, Zezim, tem sua salvação, não se perdendo totalmente: ele, menino bem criado no sítio de seu pai, idealiza a cidade mais próxima como a síntese da civilização, e em um dia de feira, um sábado que vagava por lá sozinho, vê um cantador de viola fazendo seu improviso e ganhando alguns trocados, responde em versos ao violeiro, ganha sua simpatia, uma viola, e a alcunha de Zé Piola (Piola, algo em extinção, é a guimba, a ponta do cigarro; muita gente no sertão de antigamente pedia muita piola, quase não cobrando crigarros, fumando às custas dos outros, e ganhando tal epíteto), e fugindo, ou sendo raptado meio entorpecido por bebida, arte e outros meios, pelo violeiro Diabo Louro.

Diabo Louro não é flor que se cheire. Violeiro que não se sabe ao certo de onde vem, tem a má fama de que seu canto trazia a morte ou a desonra, pois a quem não lhe pagasse após ouvi-lo, sendo mulher ele violava, e sendo homem, ficava estatelado no chão, sem vida. Acontece que após encontrar Zé Piola, há uma atenuação desse "instinto ruim" de Diabo Louro, que só vai recrudescer em São José do Egito, sendo porém curado de uma vez pela interferência artístico-terapêutica de ninguém menos que o Dr. Antônio Cão, psiquiatra heterodoxo, um ser que ninguém sabe direito também de onde veio, sabendo-se apenas que descende do grande navegador português Diogo Cão, que em fins do Século XIV teria passado no litoral brasileiro, fincado o Marco de Touros no litoral norte-riograndense e, naturalmente, se encantado com a beleza das potiguaras e deixado uma semente bastarda por lá.

Em se tratando de uma cidade pequena, logo correram boatos de que o molecote Zezim teria se envolvido com um arruaceiro na feira, e o pai manda o velho João Mosca-morta ir buscar o menino; há uma bate-boca entre os três, Diabo Louro foge com Zé Piola no Comodoro (um tipo de Opala, famoso carrão dos anos 70, muito chique no sertão dos meus tempos de rapazote).

O destino da dupla quixotesca é São José do Egito, onde chegam numa sexta-feira á noite, hora funesta, que a Igreja Medieval atribuía à reunião das bruxas com o Diabo, o Mestre das Bruxas; há um livro interessante sobre a Inquisição, "Bruxas, Noivas de Satã", que refere uma encíclica papal onde um Papa do Século XI diz ter visto cruzando os céus á noite, montadas em vassouras, uma bando de bruxas lideradas pela Deusa Diana, as quais iriam para um Sabá; tal livro refere ainda que a Noite das Bruxas se reunirem com Sua Santidade o Diabo era na quinta-feira á noite, e que passou a ser uma sexta por volta daquele tempo, para coincidir com o Dia Sagrado dos Judeus, o Shabat, pois que o dia daquele admirável povo se inicia quando o sol se põe, e o Sábado se inicia pois na sexta à noitinha. O desafio de Antônio Cão com Diabo Louro é um Desafio em Noite de Sabá, mas quem vence é o Bem. À chegada na cidade está havendo um sarau pela saúde mental, razão da presença do Dr. Antônio Cão na cidade; a palavra "bespas", pronúncia com E aberto (no Brasil), "béspa", refere às "vésperas" de algo, geralmente alguma festa; no caso, o Desafio de Antônio Cão com Diabo Louro, em Noite de Sabá - um desafio perigosíssimo! Recomendamos cautela...



Há que se dizer que "rói-couro" é sinônimo de meretrício, cabaré, zona. "Já Morreu" é outro apelido sertanejo pra sujeito molenga, ou com cara de peixe-morto, de aparência sorumbática. No Capítulo IV, "Na Estrada Escura da Alma", uma das partes mais belas da presente peça, há menção a más viagens da embriaguez, quando surgem Assombrações clássicas do meu sertão seridoense, algumas citadas no Auto da Catingueira, e outras que eu mesmo inventei. Lá pra diante há a palavra "mausa", pronúncia sertaneja para Mauser, um tipo de pistola, a que Diabo Louro usa.

O poeta Gilmar Leite, nosso amigo nascido em São José do Egito, existe mesmo, como também outras pessoas citadas no poema.

Em nada mais nos restando a dizer, resta-nos a agradecer pela disntinta leitura, e ... Olhos á Obra!

absaam





A PELEJA DE ZÉ PIOLA COM DIABO LOURO, VENCIDA POR ANTÔNIO CÃO



                     "Que adonde ela tivesse, a Véa da Foice tava..."
                               Elomar, no Auto da Catingueira
                  


I - DO BATISMO DE ZÉ PIOLA

Me chamam de Zé Piola,
a cachaça e a viola
foram a minha perdição.

Sou da roça do sertão,
estudei e seio ler,
mas cedo meu coração
descobriu outro querer:
Eu vi numa feira um dia
improviso e cantoria
- Valia  a pena viver!

Apois dei de conhecer
um violeiro famoso
de quem o povo dizia
ter parte com o Tinhoso,
mode sempre que cantava
a Véa da Foice dava
seu recado doloroso.

Qual pavão misterioso
que gosta de se mostrar
tanto a voz como a cabeça
costumava levantar,
e a quem se demorasse
lhe ouvindo e não pagasse
gostava de provocar:

- "O corno não vai pagar?
Esse viado tá liso?
Cantar pra ladrão assim
só vai me dar prejuízo...
Tá se demorando em pé,
vá buscar sua mulher
que beijo, caso e batizo!

Só se não tiver juízo
eu concedo meu perdão;
mas se demorar ouvindo
eu vou chamar de ladrão
caso não deixe um trocado,
e se brigar é finado
e vai pra perto do Cão!"

À sua frente, no chão,
uma maleta de couro
recebia a doação
"em dinheiro, prata ou ouro;
só fumador de maconha,
mentiroso e sem vergonha
não aumenta meu tesouro!"

Eu ri alto, e Diabo Louro
- Tal era o nome do Cão -
volta o par de olhos negros
bem na minha direção:
- "Viadinho de Amanhã,
vá buscar mãe e irmã
pra pegar na minha mão!"

- Tens fama de valentão
mas não largas da pistola...
Eu também posso cantar,
só não sei tocar viola.
E saiba, Zé Brocoió:
estudo e sou De Menor
- Se cobrar vai pra gaiola!

Que nem num jogo de bola
quando o Brasil faz um gol
ao ouvir minha resposta
o povo todo vibrou,
e mesmo o tal Diabo Louro
vendo aumentar seu tesouro
muito animado ficou:

- "De homem na cara eu dou,
na mulher meto o chicote;
menina boto no colo,
com garota danço xote,
a mendigo eu dou esmola
e te dou minha viola
se responder, molecote!"

- Pode arrumar o pacote
que não vou mais pra escola
pois achei um professor
que, mesmo sendo gabola,
vai me ensinar cantoria,
a encrenca, a putaria,
beber e fumar piola.

- "O carro que não atola
é que tem bom condutor;
cabra que canta comigo
sai defunto ou sai doutor,
mas se tiver humildade.
franqueza e fidelidade,
tem um anjo protetor."

O famoso cantador,
conhecido e respeitado,
o violeiro temido
de Diabo Louro alcunhado,
me chamando "Zé Piola"
me deu a sua viola
e um abraço apertado.

Então foi ovacionado
e na maleta choveu
cédula, moeda, aliança,
e um milagre aconteceu:
O judeu Zé Nascimento,
da loja de instrumentos,
outra viola lhe deu.

E também assucedeu
o que chamou atenção:
pois Diabo Louro findou
a sua apresentação
e comigo ao lado foi-se,
sem que a Véa da Foice
deixasse um morto no chão.

        


II - DO PACTO COM DIABO LOURO


Me chamando de irmão,
bem disposto e educado,
pagou minha refeição
num boteco do mercado,
quis saber onde morava,
a idade, e se pensava
em trabalhar no roçado.

De tudo foi informado,
da Fazenda Solidão,
idade catorze anos,
caçula de sete irmãos,
ainda que tinha o plano
de viver que nem cigano
cantando pelo sertão.

Adispois da refeição,
no Hotel Vila Sorriso
me mostrou as posição
de acompanhar improviso
nas cordas de uma viola;
depois deu-me uma piola
que me deixou sem juízo.

Tive um acesso de riso
que quase não finda mais;
tudo que ele dizia
era engraçado demais;
foi quando tive a certeza
que na sua natureza
tinha um quê de Satanás.

Pra qu'eu recobrasse a paz,
pra parar de achar graça,
o Diabo Louro me deu
copo cheio de cachaça.
Depois disse: - "Zé Piola,
pegue já sua viola
que vou dar aula de graça!"

Então virou uma taça
de conhaque de alcatrão
e começou a tocar
a sua improvisação.
Aos poucos fui-me soltando;
quando vi, tava tocando,
depois da sua canção.

- "Sou cantador do sertão,
nascido no Seridó,
do lado da Paraíba,
já perto de Caicó;
já tive grandes amores,
também sofri muitas dores:
hoje levo a vida só.

Sou feito de pedra e pó,
tenho veneno e espinho;
a vida secou meu peito,
por isso vivo sozinho;
mas sou planta do sertão:
se chove, meu coração
se lembra do tal carinho.

Andei pelo mau caminho
pra poder sobreviver;
canto pra não passar fome,
já matei pra não morrer.
De Deus tenho a proteção:
posso até andar com o Cão
que nunca vou-me perder!

Ainda tá pra nascer
quem me vença na viola;
a quem me desrespeitou
matei à faca ou pistola;
quem vem me ouvir de graça
chateio só por pirraça:
ele foge ou se atola.

Carcará mata e esfola,
eu sou que nem Acauã:
quando canto morre um hoje,
ou dois se enterram amanhã.
Mas é boa a minha obra:
Acauã que mata cobra
se é peçonhenta e malsã.

Tarde, noite ou de manhã
posso fazer cantoria.
Hoje achei um molecote
que sabe fazer poesia;
nesse baião de viola
eu convido Zé Piola
pra me fazer companhia.

Eu lhe dou a garantia
de pano e sobrevivência;
cê fica dois ou três mês
táli como experiência.
Prometo: se não gostar
vir eu mesmo lhe deixar
lá na sua residência."

- Só não tendo inteligência;
só tendo a insanidade
de ser burro de nascença,
perdia a 'portunidade
que vale mais do que ouro:
aprender com Diabo Louro
ser cantador de verdade!

Eu juro fidelidade
a meu Mestre Professor,
e ao mesmo tempo agradeço
o imensurável favor
de entrar na sua escola
pra conhecer da viola
seus mistérios e valor.

Por onde meu Mestre for
prometo que irei consigo;
na alegria e na dor
serei sempre seu amigo;
e se tal jura trair
terei que admitir
até o mortal castigo!

- "Prometo te dar abrigo
e tratamento distinto;
a tudo que perguntar
prometo que jamais minto;
e sem mais formalidade,
saudemos nossa amizade
brindando com vinho tinto!"

         


III - DA NOVA FUGA PARA O EGITO


Eis que então no recinto
se ouviu baterem à porta.
Diabo Louro levantou-se,
a figura meio torta,
e quando a porta se abriu
foi que Zé Piola viu
o velho João Mosca-morta.

- "Se o senhor não se importa,
seu pai disse, Seu Zezim,
que o senhor fose pra casa
pois, se ele o visse assim,
podia dar confusão:
alguém ia pra prisão,
ou talvez lugar mais ruim..."

- Quem foi que disse a Paizim
o que eu andava fazendo?
- "Nossa cidade é pequena
e todo o povo tá vendo...
Logo correu o boato
de viola e assassinato
que o senhor tava bebendo..."

- "Assumo o que tô fazendo
e enfrento qualquer um!
Diabo Louro nunca teve
medo de homem nenhum:
vindo juiz, delegado,
daqui sai morto ou capado,
ou corre soltando pum..."

- "Homem, deixe de lundum...
O velho Manuel Morais
se dá bem com todo mundo
e sempre viveu em paz.
Estando um filho em apuro
não há lugar mais seguro
que a casa de seus pais!"

- Vade retro, Satanás!
Homem, que estória é essa?
Eu estou é bem demais,
eu tô é curtindo à beça!
Lá em casa é engraçado:
Só Jorge que é sempre amado,
e vive pregando peça....

Não tenho nenhuma pressa:
meu véi tá enciumado
por não poder hoje fazer hoje
o que não fez no passado?
Tô aprendendo viola...
Cê pensa que só na escola
é que se é educado?

- "Cê tá é embriagado...
Tenha cuidado, Zezim:
Já vi muito prejuízo
por causa de gente ruim..."
Nessa hora Diabo Louro,
raivoso que só um touro
na arena, diz assim:

- "Se está a falar de mim
preciso me defender:
nunca fale mal de um homem
antes de o bem conhecer;
além de não ser direito,
você mostra alguns defeitos
que procurava esconder.

Mas nós vamos resolver:
já tá passando da hora!
Vou mandar fechar a conta:
também já me vou embora.
No carro eu levo o Zezim...
Mas, já que sou gente ruim,
queira esperar lá fora!"

- "Pois não, senhor, sem demora!"
- Mosca-morta desce, aflito. -
Então disse Diabo Louro:
- "Melhor evitar atrito...
Tenho um plano a revelar:
Você já ouviu falar
em São José do Egito?"

- Final do Gênese... Bonito!
História cheia de encanto.
Era um filho de Raquel
com Jacó, e assim portanto
viveu antes que Jesus
fosse pregado na cruz...
Ôxente, mas ele é santo?

- "Bom, de santo eu não sei tanto,
mas de canto e canto, sei.
Existe um canto onde o canto
- o canto que lhe ensinei -
onde o canto é mais bonito:
É São José do Egito
- Lá onde o Poeta é rei!"

- Ah, agora me lembrei:
uma Terra de Artistas....
- "Essa mesma: em Pernambuco,
terra dos irmãos Batista
e de Rogaciano Leite...
Enquanto isso aproveite:
vá tomar banho e se vista;

vou mandar fazer a lista
e pagar a minha conta.
Nessa maleta maior
tem roupa lavada e pronta.
Certamente alguém vai vir
o frigobar conferir
enquanto você se apronta."

Com a cabeça meio tonta,
desci a escadaria.
Me vendo o véi Mosca-morta
satisfeito, já saía;
alguém foi buscar as malas,
e Diabo Louro sorria.

Assim, no final do dia,
para ficar mais bonito,
eu era o Santo Menino
em fuga para o Egito.
Comodoro fez o rapto,
pra se celebrar o pacto
lá no Pajeú bendito.


     

IV - NA ESTRADA ESCURA DA ALMA

                  "Andam monstros sombrios pela estrada,
                   e pela estrada, entre estes monstros, ando."

                                   Augusto dos Anjos


                  "Na estrada do desengano
                   andei de noite e de dia:
                   apois sim tá certo, vamo
                   cantar qualquer cantoria..."

                                   Elomar F Mello


Ainda hoje me agito
quando lembro a aventura
de ter saído escondido,
fazendo feia figura;
e enquanto voava o carro,
fumamos grosso cigarro
pra entrar na noite escura.

Sei que a uma certa altura
botei pra desconfiar
qu'estávamos sendo seguidos,
tinha alguém a vigiar...
Em tudo via malícia:
todo carro era polícia
que nos queria pegar.

Mas quando ousei perguntar
ao companheiro do lado,
vi Diabo Louro sorrir
como se fosse engraçado;
e ainda, achando pouco,
vei com assuntos de louco
e mundo mal-assombrado...

Falou de um Abilolado,
que endoideceu menino;
da jovem que correu doida
ouvindo tocar um sino;
e de Mané Catrevagem,
que depois de uma viagem
perdeu para sempre o tino.

Me contou de Celestino
que não parou de rezar,
da menina que morreu
feliz de tanto dançar,
e de um tal de Papafigo,
que se finge de amigo
pra crianças devorar.

Depois botou pra falar
da loucura cantadeira,
do amigo que endoidou
cantando em uma feira
famosa de Pernambuco,
e do poeta maluco
chamado de Zé Limeira.

E eu sentindo leseira,
idéias se indo embora,
pedaços d'alma ferida
tavam saindo pra fora,
e uma Voz me dizia
qu'eu num manhecia o dia:
ia chegar minha Hora.

Vi Saci e Caipora,
vi cabras de Lampião;
vi a Mula Sem Cabeça
correndo na contra-mão;
vi a Bruxa Bruzancã,
vi Gato Preto e Anã,
o Sapo Sunga e o Cão.

Eu vi uma procissão
só de gente degolada,
perdida, sem direção
e sem poder dizer nada,
mas me mostrando, por gestos,
que um destino funesto
era o fim daquela estrada.

Vi a Casa Abandonada
e vi a Cruz da Menina;
uma velha desdentada
maldizendo a minha sina;
e cigana cartomante
avisar que "mais adiante
essa agonia termina."

De cintura muito fina
esqueleto sensual
usando rouge e batom
prometia amor carnal,
pois inda tinha nos ossos
uns pendurados destroços
de pele cheirando mal.

Eu devo ter visto o tal
Boi Tatá dos cachaceiros;
fui vítima do Lobo Mau
que vive nos pardieiros
acuando as más viagens
com as latumia e visagens
do espíritos zombeteiros.

Xiquexiques e cardeiros,
magros e ameaçadores,
apontavam para mim
seus dedos indicadores,
e repetiam meu nome
como o causador da Fome,
da Peste e das Grandes Dores.

Ao ver meus dissabores
Diabo Louro, bicho ruim,
em vez de me ajudar
botou pra zombar de mim:
- "Acaso viu Lobisomem?
Tem medo de virar homem?
Já quer voltar pra Paizim?"

Daqui mais um bucadim
Tem a Serra do Teixeira
onde mora onça-pintada
e tamanduá-bandeira..."
Porém, teve que parar,
pois botei pra vomitar,
me deu uma tremedeira.

Vendo ter feito besteira
o homem se desculpou,
me pôs no banco de trás,
depois o carro limpou,
e disse: - "Não tenha medo,
pois ainda é muito cedo,
nem Nove Horas chegou."

Então tudo melhorou
pois eu vi, pela janela,
a minha Madrinha Lua,
bola de ouro amarela,
e, seguindo a tradição,
alevantei minha mão
e tomei a bênçao a ela.

- Ó Lua Cheia tão bela,
companheira sempre pura
não obstante as mazelas
que padece a criatura,
alumia a minha estrada,
traz a paz tão desejada,
sê o Sol da Noite Escura!

Não houve mais amargura:
Mâe Natura me acolheu
em seus braços com ternura,
e a vista escureceu.
Foi um sono de granito:
Só São José do Egito
pôde abrir os óio meu.

       
             
V - LATIDOS DE CÃO AMIGO


- "Vê se acorda, ô Já Morreu!"
- Fui desperto pelo grito
que ouvi de Diabo Louro:
- "Preguiça não é bonito!
É hora de despertar
para poder contemplar
a São José do Egito!"

Eu me sentia esquisito...
Minha cabeça doía;
uma sede muito grande
o meu corpo padecia.
Um pouco de sono e calma
na verdade a minha alma
desejava e me pedia.

- "Ressaca de cantoria,"
- Diabo Louro me explicou
- "Overdose de Poesia
foi o que lhe derrubou.
Agora já pro hotel
que está cheio o bordel..."
Então alguém nos saudou:

- "Boa Noite a quem chegou
e a quem aqui já estava!
Enfim é chegada a hora
que a cidade esperava:
Vai ter início o Sarau
Pela Saúde Mental
do Pajeú - Terra Brava!

Vou já passar a palavra
a poetas do sertão
pra declamarem seus versos
ou de algum poeta irmão;
mas para abrir o sarau
vou chamar um de Natal:
o doutor Antônio Cão!"

Ninguém na recepção
e nem também no café.
Todos estavam aguardando
alguém em quem tinham fé.
E eis que, a essa altura,
estranha e magra figura
cantou, ficando de pé:

- "Doutor, o senhor que é
padre, juiz, delegado,
grande cacique político
e bom tangedor de gado,
perdoe o verso que faz
nesse seu canto de paz
um poeta adoidaiado.

Doutor, não fique zangado
por não ver em seu curral
o povo tão satisfeito
como aqui nesse sarau,
trazendo a poesia mansa,
semente de esperança
para a saúde mental.

Nós viemos de Natal
para lutar no sertão
trazendo as nossas armas,
voz, poesia e violão,
- Deixe o poeta cantar!
Não mande seu carcará;
esqueça seu gavião.

Trazemos no coração
nosso sangue, nosso canto,
eu só derramo o cantar
porque dele vejo encanto;
deixe o sangue no lugar,
porque se o derramar
pode haver mais do que pranto.

A noite vestiu seu manto,
enfeitou-se de luar,
o povo saiu pra rua
pra ouvir nosso cantar,
daqui a pouco a sanfona
rasga a fama de cafona
e faz o povo dançar.

Deixe o poeta cantar
agora seu canto novo,
não permita que a serpente
de novo plante seu ovo:
a violência é semente
de ódio, inveja demente,
e só faz sofrer o povo.

Triste sertão do estorvo
de tiroteio e punhais,
da vingança e violência
comuns nos reinos feudais,
vamos plantar canto novo,
fazer nascer nesse povo
mais bonitos ideais!

Tem fábricas e hospitais,
tem quadrilhas e escolas,
tem fazendas e currais,
tem muito jogo de bola,
tem gente se arrastando
pelas ruas mendingando
atrás de alguma esmola.

Eu vou guardar a viola
e dar voz a meu irmão,
vamos plantar a lavoura
da cultura no sertão;
- que Deus nos livre das pragas
que impregnam estas plagas
com inveja e traição!"

Ouviu-se então no salão
a grande salva de palmas.
Diabo Louro já nervoso,
como quem enfrenta um trauma,
grita: "Alguém pode me escutar?"
Logo o abraça Gilmar,
lhe dizendo - "Tenha calma!"

A moça chamada Jalma
vem para a Recepção,
e diz para Diabo Louro:
- "Tô com superlotação"
Então Gilmar Leite arrasa:
- "Vocês ficam lá em casa
com Doutor Antônio Cão."




VI - DAS BESPAS


Muitas vezes um irmão
nos vem de outra linhagem
que não a hereditária,
aprendi nessa viagem:
comecei a melhorar
depois que o bom Gilmar
nos ofertou hospedagem.

Com muita camaradagem
o bom homem se dispôs
a nos levar para um banho,
e vir conosco depois
para que, quando o sarau
chegasse ao seu final,
pudéssemos cantar nós dois.

- "Vamo logo, ora, pois, pois!"
- Respondeu meu professor:
- "Esse tal Antônio Cão
é mesmo bom cantador?"
- "Não é tão bom violeiro
qual você, bom companheiro,
mas é poeta, o doutor."

- "E por que o tal senhor
podendo se hospedar
lá no Hotel da Capela,
veio escolher o seu lar?"
- No carro nos afastando,
os dois iam conversando,
eu atrás a escutar.

- "Além de ouvir Elomar,
de quem tenho a coleção,
foi pra ter mais liberdade
que o Doutor Antônio Cão
que há tempos é meu amigo,
de hospedar-se comigo
fez a honrosa opção.

O menino é seu irmão?"
- "É meu aluno e... Sobrinho!
Inda está engatinhando
nas cordas do nobre pinho....
Eu lhe dei essa viola
e o nome de Zé Piola:
ele gosta de um fuminho..."

- "Filho de gato é gatinho...
Ele tem a quem puxar.
Chegamos: aquela casa
em São José é meu lar."
- "Na maleta azul, Piola,
tem toalha... Não amola:
Vê se não vai demorar..."

Enquanto vou-me banhar
os dois ficam conversando.
Com o tempo escuto o grito:
- "Zé, você tá demorando!..."
Ao sair, diz Diabo Louro:
- "Vou já lavar o meu couro",
e se levanta cantando:

- "Homem, vá se preparando
para um duelo do Cão.
Nessa noite Diabo Louro,
novo Terror do Sertão,
seus versos vai derramar,
e um certo alguém vai ficar
estatelado no chão...

Sei fazer xote e baião..."
ele segue improvisando;
um cigarro fedorento
pro banheiro vai fumando.
Mas ao sair do banho
ele se mostra tacanho
ao me ver telefonando:

- "Com quem cê tava falando
que não lhe dei permissão?
- "Ele pediu pra ligar
pra casa de seu irmão..."
- "Já foi falar com Paizim
de novo, moleque ruim?
Vou te dar uma lição!...."

Eis que chega Antônio Cão
gingando e fazendo fita:
- "Ora, ora! Não me digam
que aqui temos visita...
Um dupla violeira!
A festa vai ser maneira;
a noite vai bonita!

Estela, Soraya e Rita
estão a nos esperar.
Já fizemos nossa parte,
o sarau vai terminar.
Vocês tavam demorando...
No carro estão aguardando,
eu vim aqui vos chamar."

- "Deixe eu vos apresentar
o Doutor Antonio Cão..."
A mim e a Diabo Louro
o doutor dá sua mão.
O Mestre, contrariado,
inda meio atrapalhado,
faz sua apresentação:

- "Quando morreu Lampião,
que foi o Rei do Cangaço,
Deus do Céu, vendo o sertão
sem mais ter homens de aço,
mandou fazer Diabo Louro:
- Acauã, Onça e Besouro,
de Tamanduá abraço..."

"- Todo circo tem palhaço,
tem trapézio e tem magia.
Vamos ver em qual dos três
o senhor se enquadraria...
Mas cante qual cabra macho,
se não tua lona eu racho
e roubo a tua guria..."

-"Esperava cortesia,
mas o senhor me irrita:
pois saiba que vou tomar
sua Maria Bonita.
Das três me diga o seu nome,
Assombração, Lobisome:
Estela, Soraya ou Rita?"

Uma Voz de Fêmea grita:
- "Ora, gente, por favor!
Vamos pra outro lugar,
guardem os versos de valor
pra gastar em outro canto...
Noite tão cheia de encantos,
de mistérios, de amor..."
  

       
VII - DE UM DESAFIO EM NOITE DE SABÁ

- "Mas se um da gente for
comprar comida e bebida"
- Perguntou Diabo Louro
- "Não será melhor, querida?
Muito tenho viajado,
estou um pouco cansado...
Que a maioria decida!"

- "Não havendo outra saída..."
diz Rita, contrariada.
Ela então fala seu nome,
e também são apresentadas
as outras duas depois,
como também são os dois
recém-vindos à noitada.

- "Temos cerveja gelada"
- Foi dizendo Antônio Cão
- "E cana na geladeira;
Gilmar busca outra porção.
Vamos ouvir Elomar:
depois se pode cantar
algum verso ao violão."

Diabo Louro disse - "Não!"
mas Soraya liga o som
com as "Cartas Catingueiras".
Diz Antônio - "Muito bom!
Vou pegar uma gelada..."
Diabo Louro faz piada:
- "Quero cachaça, garçom!"

Segue o papo nesse tom,
se falando amenidades.
Vez em quando se elogia
alguma das três beldades.
Gilmar traz Tonha e Côrrinha,
sendo esta a mais novinha:
deve ter a minha idade.

O doutor, muito à vontade,
com Soraya se beijou.
Diabo quis pegar Côrrinha,
a qual a custo escapou.
Me mostrei interessado,
ela veio pro meu lado,
e tudo se ajeitou.

Diabo então se levantou,
olhou pra Tonha e sorriu;
muito animado ficou
pois ela retribuiu:
se chegou para a donzela,
falou no ouvido dela;
depois o casal saiu.

Logo Antônio Cão pediu
de novo a sua viola;
Soraya a foi buscar,
ele disse - "Zé Piola,
bom garoto do sertão,
acompanha Antônio Cão
num pequeno bate-bola?"

Eu erro, ele me consola,
depois a gente acompanha;
de sextilha ou septilha
o Piola tem as manha.
E doutor Antônio Cão
eleva a voz no salão,
enquanto as cordas arranha:

- "Você hoje aqui apanha
se não responder direito
mostrando pra todo mundo
que é cantador de respeito!
Me diga, meu bom menino:
como cruzou seu destino
com o daquele sujeito?"

- O senhor tá com despeito
de meu mestre professor,
pois sabe-o mais competente
no canto que o senhor;
também mais sábio, mais forte
e mais bonito no porte,
e que ele tem mais valor!

- "Ora, me faça o favor...
Tô muito preocupado!
Um molecote tão novo
parece já transviado...
Eu faço até uma aposta:
alguém que d'outro assim gosta
deve estar apaixonado..."

- Você tá equivocado,
seu doutor Antônio Cão:
todo aluno por bom mestre
tem grande admiração.
Se da macheza duvida,
me empreste sua querida
que eu dou a comprovação.

- "Vou te dar uma lição
que vai ser sua desgraça:
seu corpo de suas vestes
em tamanho descompassa;
chegando aquele momento,
do minúsculo documento
ela ia até achar graça..."

- Eis que, vindo lá da praça
muito bem acompanhado,
Diabo Louro está de volta,
e o senhor tá desgraçado:
me tratou com zombaria,
mas agora em cantoria
você vai ser derrotado.

- "Eu estou preocupado,
poeta, e tenho razão:
O Zezinho por você
tá morrendo de paixão;
ele mal o avistou
rabo estre as pernas botou:
- quer o colo do paizão!"

- "Seu doutor Antônio Cão
eu não sei o que é pior:
se é fazer verso tão ruim
na falta de um melhor,
ou então, na sua idade,
vir para estranha cidade
e bater num De Menor..."

- "Tá se achando o maior
mas é um pobre coitado:
se aqui tem De Menor
eu estou preocupado,
pois um cabra sem vergonha
saiu pra fumar mais Tonha
e voltou muito excitado..."

- "O senhor tá enganado,
seu dotô, a meu respeito;
eu não sou cabra safado,
garanto, sou bom sujeito:
se um defeito há no Louro
é ser doido por rói-couro,
se é que isso é defeito..."

- "Cantando assim desse jeito,
com mentira e fantasia,
tá ficando cansativo,
tá me dando uma agonia...
Fico desestimulado:
proponho, Santificado,
dar pausa na cantoria!"

- "Como a vossa senhoria
convir, ou bem aprouver:
melhor que cantar com macho
é ouvir voz de mulher...
Ou cê quer parar agora
pra gente brigar lá fora?
Seja como cê quiser!"

- "Seu cantador, se puder,
peço pra não esquecer
que quem tem instinto ruim
não deve muito beber...
Pois sabe a humanidade
que no vinho a verdade
costuma de aparecer..."

- "Você não ia correr?
Não tinha pedido pausa?
Se acaso desistiu
me diga qual é a causa
pela qual parar não quer?
Cê não gosta de mulher
ou tá com medo da Mausa?"

- "Vou te dar honoris causa
pela beleza da rima...
Viola com violência:
é esta a tua obra prima?
Oh, não me faças vergonha!
Fuma de novo mais Tonha
para ver se se anima..."

- "O negócio é mais em cima:
agora o Diabo deu popa!
Me ouviu, tem que pagar,
meu canto não é estopa:
Vamos, Côrrinha e Soraya;
- Tirem a blusa e a saia;
depois, o resto da roupa!"

Uma responde: - "Me poupa!"
A outra diz: - "Assim, não..."
Porém logo se percebe
que vai dar em confusão,
e quem puder se garanta:
Diabo Louro se levanta
com uma faca na mão...

 
       
VIII - EPÍLOGO


Todos naquele salão
ficamos pinotizado.
Mas eis que Antônio Cão,
experiente  e letrado,
com sabedoria e calma
tirou do fundo da alma
outro verso assim cantado:

- "O Poeta nasce armado,
por dádiva do Criador,
com a palavra cortante,
com o verbo construtor,
e cada um que decida
que uso vai dar na vida
à tal dádiva do Senhor.

Uns cantam Paz e Amor,
outros a Guerra, a Intriga;
há o verbo que separa
e há aquele que liga.
Nós não viemos lutar,
mas sim o canto escutar:
- ninguém quer saber de briga!

A arma na mão amiga
primeiro causa surpresa;
depois, caso seja usada,
provoca grande tristeza,
e dor, e pranto, e lamento,
e grande arrependimento
em quem agiu com vileza.

O seu canto tem beleza
mesclada com amargura:
tire a faca dessa mão
que sabe usar da candura!
Sexta à noite, Diabo Louro,
é hora de mau agouro:
não faça feia figura!

Ora, que lição tão dura
queres dar a Zé Piola?
Ele só quer aprender
contigo a tocar viola;
não quer ver um corpo exangue
perdendo todo seu sangue
devido a faca ou pistola.

Como quem pede uma esmola
eu lhe peço pra soltar
essa arma, em respeito
a seu amigo Gilmar
e as cinco flores belas,
esperançosas donzelas
que querem te ouvir cantar.

Um passo te convém dar
para que tu cresças mais:
pague a quem te acolheu
com sorrisos, não com ais!
Bota essa faca no chão:
mais convém à tua mão
um instrumento de paz!"

Não esquecerei jamais
o que passou-se em seguida:
Diabo Louro solta a faca
e - Pobre alma arrependida! -
cai em um profundo pranto.
Antônio Cão pára o canto
e abraça a fera ferida.

Não houve depois dormida,
e me confesssei a Cão.
Contei da fuga de casa
e que aprendera a lição:
devolvi minha viola,
deixei de ser Zé Piola
e voltei pro meu rincão.

Paizim me deu seu perdão,
minha Mãe me abraçou;
o doutor Antônio Cão
em nossa casa almoçou;
Meus irmãos fizeram festa.
Daquela noite funesta
lembrança amarga ficou.

Muito tempo se passou
pra que eu visse Diabo Louro.
Cumprimentei-o e deixei
algo para seu tesouro.
Porém, depressa saí
e quase que não ouvi
seu canto de mau agouro.


             Antônio Adriano de Medeiros
             João Pessoa, junho e julho de 2010