segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Ficções do ser e dó




Imagem encontrada em busca no Google para "crise de Loucura".



Irônico mesmo é o Tempo, que nos destrói e reconstrói a cada dia dando-nos, enquanto o fio de areia da ampulheta se reflete na torrente sanguínea que jorra em nosso corpo, a doce ilusão da eternidade. Seridó foi a região do sertão onde nasci, região esta partilhada pelos Estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Naquele tempo - pelo amor de Deus, a citação lembra a leitura do Evangelho na Santa Missa, mas não tem nada a ver! - pois bem, naquele tempo a gente nascia através de uma cegonha, a cegonha saía entregando os bebês nas casas, e quero crer que uma cegonha meio míope me deixou em Santa Luzia, mas a encomenda era para Caicó... 

Bom, as Ficcções do Ser e Dó rezam sobre o existir e o sofrimento humanos, e naturalmente se reportam a um hospital, no caso um hospital de lunáticos, que é o tipo de serviço de saúde que conheço mais a fundo. Aí se faz um resumo, naturalmente que exagerado, da rotina do serviço, nos dias de hoje, quando uma espécie de batalha ideológica paralela disputa o "mercado da saúde mental", com os idealizados CAPS (centro de atenção psicossocial) disputando pacientes pau a pau com os hospitais, que teriam todos que ser fechados, pelo menos de início, mas à medida que outros técnicos vão aprendendo sobre os momentos do adoecer psicótico, e mesmo o lado subjetivo dos pacientes vai sendo mais respeitado (parece que alguns portadores de transtorno mental, aqueles que trabalham ou que têm algum grau de conhecimento e crítica, não se adaptam á rotina quase diária dos CAPSes, e alguns até reclamam de uma certa "infantilização" que as normas grupais e terapêuticas algo ditatoriais que ali grassam - "O sonho da razão produz monstros", dizia Goya - querem impor em seus dia a dia); também os tipos de doenças mais comuns são citadas, e algumas exigências estranhas como o atendimento em grupo para casos de urgência (parece um pouco estranho que alguém num momento muito especial, difícil e íntimo queira abrir seus conflitos para várias pessoas à sua frente...), e ainda as reações de profissionais diante das dificuldades de um serviço de urgência para problemas de comportamento, mormente psicóticos.

Esse início, creiam-me!, reporta-se ao Acolhimento, onde, grosso modo, uma assistente-social tenta evitar que os pacientes se consultem com um psiquiatra, tentando desviá-los para um psicólogo ou um CAPS onde tem uma equipe psicossocial... É a guerra do mercado!

Pois bem, as Ficções do Ser e Dó podem voltar, com os complementos necessários, mas este a seguir sempre será o original, o Número 1. A briga pelo mercado da saúde mental é basicamente entre os psicossociais e os psiquiatras, não mais uma briga hoje em dia, antes uma confusão de compreensão de causas, efeitos e conduta terapêutica, e certamente excessos há de um lado e do outro. Mas isso aqui é um poema, não é um texto técnico.





absaam



FICÇÕES DO SER E DÓ



À porta de um hospício
uma assistente-social,
semiletrada ré, lincha
pobres almas aflitas,
como a tornar públicas
as suas dores mais íntimas.

A quixotesca figura da Morte
- a magérrima Velha da Foice -
não acolhe - mente!

(O encaminhamento psicossocial
tem mais valor que a receita médica
quando tudo é fictício e mágico.)

- Crack! Crack! Crack!

- São só os estalidos dos insetos
morrendo no telhado
no calor do meio-dia
ou no choque contra a lâmpada,
barbeiros e mariposas
que aceitam viver só um dia ou uma noite,
porque são insetos perfeitos.

São muitos grilos. Os gritos altos
da maníaca são um protesto contra Deus,
que felicidade demais causa dor,
e a época dos santos e milagres é passado:
Ninguém aguenta mais sofrer de tanta alegria!

- "Uma injeção pelo amor de Deus, doutor!
Uma injeção pelo amor de Deus!"

- Já pode?
- Por enquanto, pode!

O portador de esquizofrenia também ri
quando pergunto por que ficou nu
no meio da rua, mas de um riso indiferente,
embora bem motivado:
- Não cinto muito apertado, ele diz.

O Velho Diabo, o fidelíssimo Cão,
em suas sutis metamorfoses,
ora gigantesco, ora minúsculo, mas sempre um bicho feio,
aterroriza o pobre homem
que fora atenuar a sua dor de pobre
com o tranquilizante universal da cachaça,
e agora enxotam-no do lugar que é seu de direito
antes dos quinze dias mínimos,
como mágicos ignorantes que querem deitar um João Teimoso.

Um ou outra doutora, sábia,
queria tudo limpinho, arrumadinho,
todos bem comportadinhos ali na confusão infernal
da casa dos lunáticos, e protesta aos berros
contra o caos instalado... na sua cabeça!

Uma equipe multiprofissional
exige atendimento em grupo
para amedrontar ainda mais as almas aflitas
que sofrem as suas dores intensas
e vergonhosamente tão íntimas...

Quem sabe assim elas desistam de buscar ajuda
e não venham mais incomodar o merecido
repouso dos sábios?

À porta de um hospício
uma assistente-social,
semiletrada ré, lincha
pobres almas aflitas,
como a tornar públicas
as suas dores mais íntimas.

Um coral equino de jovens pseudossábios
ecoa um mantra relinchante
em tudo concordando com a Nova Verdade
anunciada pelas Pitonisas Descerebradas.



                 Antônio Adriano de Medeiros
                 João Pessoa, 19 de agosto de 2012