segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Algumas Quadras de Mário Lago e um soneto meu




O saudoso poeta, compositor a ator Mário Lago, 1911- 2002, que foi ainda radialista e advogado, em foto da contracapa de um de seus discos.


Quando, numa peça de teatro, numa novela, sua presença se manifestava, a peça ou a novela adquiriam um quê de respeitável, de nobreza, tinha um input, um upgrade de valor. Falo de Mário Lago, que ganhava a vida como ator, mas que era em verdade um sambista - compositor e poeta!

Não sabia que fora programado pra ser diplomata, malgrado viesse de um família de músicos: a mãe foi a primeira a perceber-lhe o talhe nobre, e decidiu que era próprio para usar não um simples paletó, ou o terno já gasto pelos bacharéis bajuladores, aproveitadroes e mentirosos, mas sim a casaca respeitável dos diplomatas. Essa a Queda subjetiva do poeta - Sim, porque os poetas, pelo menos os respeitáveis, por que não dizer os verdadeiros, os poetas precisam sobretudo cair; imploram por uma queda; será porque desejam ser a um só tempo Criador e Lúcifer? São muito pretensiosos esses poetas... - Pois aquela era a Queda do doce Lago, não ter sido o diplomata que mamãe sonhou, não ter se adequado ao nobre figurino idealizado pela costureira que o nutriu.

Fato é que ganhei um presente raro, o psiquiatra Filipe Teodoro Gurgel de Oliveira, meu amigo, dos raros ajuizados e modestos, de alma boa e competência e amor pelos pacientes de Natal, me deu um CD com várias músicas, poemas e depoimentos sobretudo poéticos e enriquecedores de Mário Lago, autor de Amélia, Aurora e, sobretudo, de Fracasso, além de outros sambas que só os verdadeiros amantes dessa arte tão vasta, poética e genuinamente brasileira - como o citado doutor ali do início do parágrafo - conhecem.

Seguem algumas quadras belíssimas de Mário Lago, que as declama com seu sotaque de quem se orgulha e ama a ascendência portuguesa, coisa que também a tenho, mas diluída já, só não na aparência e na pele, por muitas gerações de sertanejos e sertanejas, mesclada ainda pelo sangue de uma índia que - dizem meus parentes saudosos do primitivismo que em realidade nunca conheceram, querendo parecer ainda mais selvagens - pois bem, mesclado ainda pelo sangue indígena inicial que serviu ao  legítimo português das caravelas Sebastião de Medeiros, índia que foi "pegada a dente de cachorro na serra". O problema é que outra índia, irmã da primeira, precisou servir a José Tavares da Costa, primo e em tudo semelhante a Dom Sebastião, o de Medeiros... Parece que quem foi pegada a dente de cachorro na serra teria sido em realidade a ìndia Mãe das duas, a célebre Mãe das Sete Irmás da Cacimba da Velha.

Mas o que é uma simples cacimba sertaneja diante de um Lago carioca? Demos pois um bom fim à lagoa!

Pela raridade e beleza das quadras do Diplomata do Teatro, o dono deste arremedo de Café Nice dá a mesa principal ao Sambista, reservando para seu modesto soneto o espaço ás escuras, na área dos fumantes.


absaam!


QUADRAS DE MÁRIO LAGO


Dizem que as santas são santas
porque sofreram demais.
Mas se é o sofrer que faz santas,
tu, minha mãe, que serás?

           Mário Lago


São de pecado os seus passos
- É a que se deve insultar...
Mas leva um filho nos braços
- Silêncio quando passar!

            Mário Lago



Sou teu marido e não dono,
dono em amor é ruim.
Mas como te amo com o que sinto,
que sejas dona de mim!

             Mário Lago



Dizes que nada fizeste
pra que ela esteja zangada.
Mas sua zanga é por isso:
por não teres feito nada!

            Mário Lago


Queres que eu vá á tua casa
pra ver teus pais... Isso não!
Caçador arma a armadilha,
mas não convida o leão!

            Mário Lago


Por que em meio à alegria
meus olhos querem chorar?
Há uma cadeira vazia:
meu pai não vem mais jantar!

            Mario Lago


Felicidade é tão fácil!
Uma receita lá vai:
Mulher dizendo "meu nêgo",
Nenén dizendo "papai!"


           Mário Lago


*      *      *



REFLEXÕES DE UM SONETO QUANDO NASCE


Qual se na noite de um céu sem deus e preto
se esboçasse o crepúsculo da manhã,
o mais sutil dos poemas - um soneto -
vai caminhando entre o sonho e o amanhã.
Com os precisos movimentos de um gato,
eis que um fantasma, uma luz, ou fio d'água
traça um desenho cabalístico - Eu fico estupefato
de como a fera é tão dócil quando afago-a!
Vai alto o sol, já passa do meio-dia,
mas no soneto reina o sonho e a calmaria,
porque conspiram - o ritmo, a rima e a métrica -
uma barreira de arte mefistofélica.
E quando acaba nos deixa a mensagem forte
de que o final é a antítese da morte.



             Antônio Adriano de Medeiros
             Natal, 29 de agosto de 2012