domingo, 16 de setembro de 2012

Pássaro - Que tanto há mar!

Na imagem acima, uma bela e sombria Safo de Lesbos prestes a se jogar do penhasco sobre o mar, em quadro de Charles Mengin - 1877




"Há quem afirme serem nove as musas. Que erro!
 Pois não vêem que Safo de Lesbos é a décima?"




Platão


Considerada a maior de todas as poetisas, contemporânea de Sócrates e Platão, Safo, da ilha grega de Lesbos, tornou-se mito, e teve sua obra poética queimada em público por monges medievais em Constantinopla e Roma no ano de 1073, sendo que o que hoje conhecemos dela é uma parcela ínfima do que escreveu, obras redecobertas em 1897. Aristocrata, bela e sábia, já aos 19 anos foi exilada de sua ilha  natal quando a burguesia local derrotou os aristocratas, retornando anos depois. Casou com um rico comerciante, teve uma filha, Cleis, e ficou viúva e ainda mais rica cedo, abrindo uma escola para moças, sendo que assim se refere ao fato a Wikipedia - "Concebeu Safo uma escola para moças, onde lecionaria a poesia, dança e música - considerada a primeira 'escola de aperfeiçoamento' da história. Ali as discípulas eram chamadas de hetairai (amigas) e não alunas. A mestra apaixona-se por suas amigas, todas. Dentre elas, aquela que viria a tornar-se sua maior amante, Atis - a favorita, que descrevia sua mestra como vestida em ouro e púrpura, coroada de flores. Mas Atis apaixona-se por um moço e, com ciúmes, Safo dedica-lhe alguns  versos"  enciumados, a moça é retirada da escola pelos pais, e Safo diz que para si teria sido melhor se a favorita tivesse morrido. Safo escreveu muitos poemas de amor dedicado a mulheres, e tendo criado a primeira escola para moças, imagino o ciúme que provocou nos homens "educadores morais", privados de terem as flores juvenis sob sua guarda. Conta-se que, apaixonada por um marinheiro que a humilhou, a Poetisa (assim chamada para contrapor-se a ninguém menos que Homero, o Poeta) dirigiu-se a um penhasco de Mitilene, capital da ilha de Lesbos, abriu os braços e se jogou no mar.

"Plus belle que Vênus se dressant sur le monde", segundo Charles Baudelaire - "mais bela que Vênus, se jogando sobre o mundo". A palavra "dresser" em francês, alçar-se, erguer-se, elevar-se, também descreve o ficar na ponta dos pés, de forma que a morte de Safo também pode ser vista como o seu balé para a imortalidade.

O palavra "lésbica" deve-se à sua fama, referindo-se á ilha, por ter tido Safo amantes mulheres e por ter escrito poemas de amor para mulheres, como também certamente "safada", "safadeza" e que tais, derivadas de seu próprio nome, que o ciúme era grande. Mas Safo amava os humanos, sem qulaquer exclusividade  de gênero. E foi por amor, nobreza, e certamente para nos ensinar algo, a Mestra amestrando a vil corja humana, que ela inaugurou a "pequena confraria dos poetas sucidas", sendo que o único efeito colateral, além de sua morte (tivesse apenas escrito um poema sobre  o voo fatal, teria sido melhor, ainda que o mesmo tivesse sido queimado pelos monges fanáticos medievais, tarados piromaníacos), pois bem, ficou o efeito colateral de enganar algumas bobinhas e bobinhos por aí que pensam que é só se matar que ficarão sendo celebrados como Grandes Poetas...

O soneto, que eu dou graças ao Grande Poeta por tê-lo escrito, é sobre os dois mares, o mar de águas e o de palavras, e o dístico final, vindo do Mais Profundo para me deixar feliz, vendo o mundo tão pequeno lá em baixo, cita Safo de Lesbos - o título do poema, não diga a ninguém, também pode ser Pássafo de Tanto Amar, um soneto com título alternativo, secreto. Interessante que o escrevi em Natal, com caneta sobre papel, e o verso final, onde se lê "está Safo de Lesbos..," eu notei que escrevi sem o acento, "esta Safo de Lesbos...", e notei que me referia á minha pobre alma. É que o poema fala de dois mares, um calmo e um tempestuoso, por sobre os quais se atira a nossa alma de poeta.

O poema Lesbos, de Charles Baudelaire, complementa a postagem, talvez um dos mais belos poemas já escritos, e que está também em outra parte deste blogue, uma elegia a Safo de Lesbos, do qual tirei a epígrafe do soneto, razão pela qual a versão original do poema de Baudelaire segue após a tradução.

Para que a alma nobre e sensível do Lector tenha uma perfeita compreensão do que senti após a escrita do soneto, destaco aqui a estrofe do poema Lesbos que muito tocou ainda criança, o qual relampeou à pobre alma naquele bendito momento:

"Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre
Pour chanter le secret de ses vierges en fleurs,
Et je fus dès l'enfance admis au noir mystère
Des rires effrénés mêlés aux sombres pleurs;
Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre."

"Pois Lesbos entre todos me escolheu sobre a terra
Para cantar o segredo de suas virgens em flor,
E desde a infância conheço os mistérios que encerram
risos frouxos mesclados a estranhos chororôs;
Pois Lesbos entre todos me escolheu sobre a terra."

Baudelaire conhecia bem nossas irmãs sonhadoras, tão sofredoras...

Notar, porém, que Baudelaire se enganou sobre o "franzido e austero" olhar de Platão com relação a Safo. O olhar que o velho Plato lançava à Poetisa era outro... Notar, também, que há duas Vênus no poema Lesbos: a deusa e a estrela da manhã e da noite, ou planeta Vênus. A que tem ciúme de Safo é a deusa, e aquela erguida sobre o mundo porém menos bela que Safo é a estrela.


Obrigado!


absaam




PÁSSARO - QUE TANTO HÁ MAR!


                 "plus belle que Vénus se dressant sur le monde!"



Além do vasto mar de vagas incessantes
por onde as caravelas escoaram dobrões,
existe um outro mar de vogais, consoantes,
por onde os caros versos escoam emoções.
Há um mar todo estúpido, salgado, lunático,
e um mar todo espírito, sagrado e lúcido;
um mar de dinossauros, terrível, antipático,
e um mar de dignos salmos, melífluo e lúdico.
Há um mar de naufrágios, monstros e procelas,
e um mar de naus frágeis, mantras e donzelas.
Um mar que nos afoga, devora, massacra,
e um mar que nos afaga, dá voz e mais sagra.
- E por sobre os dois mares, pássaro colossal,
está Safo de Lesbos em seu vôo fatal.


                  Antônio Adriano de Medeiros
                  Natal 12 09 2012




LESBOS

Charles Baudelaire

Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias,
Lesbos, ilha onde os beijos, meigos e ditosos,
Ardentes como os sóis, frescos quais melancias,
Emolduram as noites e os dias gloriosos;
Mãe dos jogos do Lácio e das gregas orgias;

Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas,
Que desabam sem medo em pélagos profundos,
E correm, soluçando, em maio às colunatas,
Secretos e febris, copiosos e infecundos,
Lesbos, ilha onde os beijos são como as cascatas!

Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,
Onde jamais ficou sem eco um só queixume,
Tal como Pafos as estrelas te veneram,
E Safo a Vênus , com razão, inspira ciúme!
Lesbos, onde as Frinéias uma à outra esperam,

Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,
Onde, diante do espelho, ó volúpia maldita!
Donzelas de ermo olhar, dos corpos amorosas,
Roçam de leve o tenro pomo que as excita;
Lesbos, terra das quentes noites voluptuosas,

Deixa o velho Platão franzir seu olho sério;
Consegues teu perdão dos beijos incontáveis,
Soberana sensual de um doce e nobre império,
Cujos requintes serão sempre inesgotáveis.
Deixa o velho Platão franzir seu olho sério.

Arrancas teu perdão ao martírio infinito,
Imposto sem descanso aos corações sedentos,
Que atrai, longe de nós, o sorriso bendito
Vagamente entrevisto em outros firmamentos!
Arrancas teu perdão ao martírio infinito!

Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?
Ou condenar-te a fronte exausta de extravios,
Se nenhum deles o dilúvio pôde ver
Das lágrimas que ao mar lançaram os teus rios?
Que Deus, ó Lesbos, teu juiz ousara ser?

De que valem as leis do que é justo ou injusto?
Virgens de alma sutil, do Egeu orgulho eterno,
O vosso credo, assim como os demais, é augusto,
E o amor rirá tanto do Céu quanto do Inferno!
De que valem as leis do que é justo ou injusto?

Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo
Para cantar de tais donzelas os encantos,
E cedo eu me iniciei no mistério profundo
Dos risos dissolutos e dos turvos prantos;
Pois Lesbos me escolheu entre todos no mundo.

E desde então do alto da Lêucade eu vigio,
Qual sentinela de olho atento e indagador,
Que espreita sem cessar barco, escuna ou navio,
Cujas formas ao longe o azul faz supor;
E desde então do alto da Lêucade eu vigio

Para saber se a onda do mar é meiga e boa,
E entre os soluços, retinindo no rochedo,
Enfim trará de volta a Lesbos, que perdoa,
O cadáver de Safo, a que partiu tão cedo,
Para saber se a onda do mar é meiga e boa!

Desta Safo viril, que foi amante e poeta,
Mais bela do que Vênus pelas tristes cores!
- O olho do azul sucumbe ao olho que marcheta
O círculo de treva estriado pelas dores
Desta Safo viril, que foi amante e poeta!

- Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida,
A derramar os dons da paz de que partilha
E a flama de uma idade em áurea luz tecida
No velho Oceano pasmo aos pés de sua filha;
Mais bela do que Vênus sobre o mundo erguida!

- De Safo que morreu ao blasfemar um dia,
Quando, trocando o rito e o culto por luxúria,
Seu belo corpo ofereceu como iguaria
A um bruto cujo orgulho atormentou a injúria
Daquela que morreu ao blasfemar um dia.

E desde então Lesbos em pranto lamenta,
E, embora o mundo lhe consagre honras e ofertas,
Se embriaga toda noite aos uivos da tormenta
Que lançam para os céus suas praias desertas!
E desde então Lesbos em pranto lamenta


Charles Baudelaire, em francês
Flores do Mal
trad. Ivan Junqueira



Lesbos


Mère des jeux latins et des voluptés grecques,
Lesbos, où les baisers, languissants ou joyeux,
Chauds comme les soleils, frais comme les pastèques,
Font l'ornement des nuits et des jours glorieux,
Mère des jeux latins et des voluptés grecques,


Lesbos, où les baisers sont comme les cascades
Qui se jettent sans peur dans les gouffres sans fonds,
Et courent, sanglotant et gloussant par saccades,
Orageux et secrets, fourmillants et profonds;
Lesbos, où les baisers sont comme les cascades!


Lesbos, où les Phrynés l'une l'autre s'attirent,
Où jamais un soupir ne resta sans écho,
À l'égal de Paphos les étoiles t'admirent,
Et Vénus à bon droit peut jalouser Sapho!
Lesbos où les Phrynés l'une l'autre s'attirent,


Lesbos, terre des nuits chaudes et langoureuses,
Qui font qu'à leurs miroirs, stérile volupté!
Les filles aux yeux creux, de leur corps amoureuses,
Caressent les fruits mûrs de leur nubilité;
Lesbos, terre des nuits chaudes et langoureuses,


Laisse du vieux Platon se froncer l'oeil austère;
Tu tires ton pardon de l'excès des baisers,
Reine du doux empire, aimable et noble terre,
Et des raffinements toujours inépuisés.
Laisse du vieux Platon se froncer l'oeil austère.


Tu tires ton pardon de l'éternel martyre,
Infligé sans relâche aux coeurs ambitieux,
Qu'attire loin de nous le radieux sourire
Entrevu vaguement au bord des autres cieux!
Tu tires ton pardon de l'éternel martyre!


Qui des Dieux osera, Lesbos, être ton juge
Et condamner ton front pâli dans les travaux,
Si ses balances d'or n'ont pesé le déluge
De larmes qu'à la mer ont versé tes ruisseaux?
Qui des Dieux osera, Lesbos, être ton juge?


Que nous veulent les lois du juste et de l'injuste ?
Vierges au coeur sublime, honneur de l'archipel,
Votre religion comme une autre est auguste,
Et l'amour se rira de l'Enfer et du Ciel!
Que nous veulent les lois du juste et de l'injuste?


Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre
Pour chanter le secret de ses vierges en fleurs,
Et je fus dès l'enfance admis au noir mystère
Des rires effrénés mêlés aux sombres pleurs;
Car Lesbos entre tous m'a choisi sur la terre.


Et depuis lors je veille au sommet de Leucate,
Comme une sentinelle à l'oeil perçant et sûr,
Qui guette nuit et jour brick, tartane ou frégate,
Dont les formes au loin frissonnent dans l'azur;
Et depuis lors je veille au sommet de Leucate,


Pour savoir si la mer est indulgente et bonne,
Et parmi les sanglots dont le roc retentit
Un soir ramènera vers Lesbos, qui pardonne,
Le cadavre adoré de Sapho, qui partit
Pour savoir si la mer est indulgente et bonne!


De la mâle Sapho, l'amante et le poète,
Plus belle que Vénus par ses mornes pâleurs!
— L'oeil d'azur est vaincu par l'oeil noir que tachète
Le cercle ténébreux tracé par les douleurs
De la mâle Sapho, l'amante et le poète!


— Plus belle que Vénus se dressant sur le monde
Et versant les trésors de sa sérénité
Et le rayonnement de sa jeunesse blonde
Sur le vieil Océan de sa fille enchanté;
Plus belle que Vénus se dressant sur le monde!


— De Sapho qui mourut le jour de son blasphème,
Quand, insultant le rite et le culte inventé,
Elle fit son beau corps la pâture suprême
D'un brutal dont l'orgueil punit l'impiété
De celle qui mourut le jour de son blasphème.


Et c'est depuis ce temps que Lesbos se lamente,
Et, malgré les honneurs que lui rend l'univers,
S'enivre chaque nuit du cri de la tourmente
Que poussent vers les cieux ses rivages déserts.
Et c'est depuis ce temps que Lesbos se lamente!


                                   — Charles Baudelaire